Isaac Emanuelovich Babel
 
Conarmia
 
Afon’ka Bida
 
   Lutamos sob Leshniuv. A muralha da cavalaria inimiga surgia por toda parte. A mola da estratégia polonesa, fortalecida, desenrolava-se com um assobio sinistro. Fomos empurrados. Pela primeira vez em toda a campanha sentimos nas nossas costas a agudeza diabólica dos golpes de flanco e as perfurações do retaguarda — as mordidas daquela arma que tão felizmente nos servira.
   A frente sob Leshniuv era mantida pela infantaria. Ao longo de covas mal cavadas inclinava-se um povoado pálido, descalço, camponês da Volínia. Aquela infantaria fora recolhida ontem da ara para formar uma reserva de infantaria na Conarmia. Os camponeses vieram com vontade. Lutavam com o maior afinco. Sua impetuosa selvageria camponesa deixou pasmos até os budennovistas. O ódio deles contra o latifundiário polonês fora forjado de material invisível, mas robusto.
   No segundo período da guerra, quando o clamor deixou de agir sobre a imaginação do inimigo e os ataques a cavalo contra um adversário entrincheirado se tornaram impossíveis — essa infantaria caseira teria sido de enorme utilidade à Conarmia. Mas nossa miséria prevaleceu. Aos camponeses deram uma arma para três e munições que não serviam para os fuzis. O plano teve de ser abandonado, e essa milícia verdadeiramente popular foi dissolvida e mandada de volta para casa.
   Voltemos agora às batalhas de Leshniuv. A infantaria se entrincheirara a três verstas da localidade. À frente de sua frente caminhava um jovem curvado com óculos. Ao lado dele pendia uma sabre. Movia-se a saltos, com expressão insatisfeita, como se as botas lhe apertassem. Esse atamã camponês, por eles escolhido e amado, era judeu, um jovem judeu com vista debilitada, rosto magro e concentrado de talmudista. Em combate mostrava uma coragem cautelosa e um sangue-frio que pareciam a distração de um sonhador.

   Entrava no terceiro hora daquele extenso dia de julho. No ar brilhava a teia irisada do calor. Por detrás dos morros cintilava a faixa festiva de uniformes e crinas de cavalos trançadas com fitas. O jovem deu sinal para se prepararem. Os camponeses, batendo com os sapatos de palha, correram aos seus postos e se puseram em prontidão. Mas o alarme era falso. À estrada de Leshniuv saíam esquadrões coloridos de Maslak [Masliákov — comandante da primeira brigada da quarta divisão, irreconciliável guerrilheiro, que logo depois se virou contra o governo soviético]. Seus cavalos magros, mas vigorosos, avançavam em passo largo. Em lanças douradas, carregando borlas de veludo, tremulavam em colunas de pó flamejantes bandeiras luxuosas. Os cavaleiros vinham com uma majestade e ousadia geladas. A infantaria kamikaze saiu de suas covas e, de boca aberta, seguia o gracioso e elástico fluxo não veloz.
   À frente do regimento, montado num pequeno cavalo encurvado, ia o combrig Maslak, impregnado de sangue bêbado e podridão de seus sucos gordurosos. Sua barriga, como um grande gato, repousava no arco da sela, encimada de prata. Avistando a infantaria, Maslak ficou alegremente escarlate e fez sinal ao comandante de pelotão Afon’ka Bida. O comandante de pelotão era apelidado entre nós de "Makhno" por sua semelhança com o pai. Falaram em voz baixa por um momento — o comandante e Afon’ka. Depois o comandante de pelotão se virou para o primeiro esquadrão, inclinou-se e ordenou com voz baixa: “Pavód!” (Pavód = ânimo / avanço!). Os cossacos, por pelotão, passaram ao trote. Incitaram os cavalos e dispararam contra as trincheiras, de onde a infantaria olhava com admiração o espetáculo.
   — À batalha! — soou a voz tristonha e, como que distante, de Afon’ka.
   Maslak, arfando, tossindo e deleitando-se, afastou-se para o lado, e os cossacos lançaram-se ao ataque. A pobre infantaria avançou, mas tarde demais. Os chicotes cossacos já açoitaram seus maltrapilhos uniformes. Os cavaleiros rodopiavam pelo campo com extraordinária perícia, girando nagai­kas nas mãos.
   — Por que brincam? — gritei a Afon’ka.
   — Para diversão, — respondeu ele, inquieto no sela, puxando um rapaz escondido nos arbustos.
   — Para diversão! — repetiu, remexendo no rapaz inconsciente.
   A diversão acabou quando Maslak, amolecido e imponente, acenou com sua mão rechonchuda.
   — Infantaria, não vacilem! — gritou Afon’ka, altivo, endireitando o corpo frágil. — Vai caçar pulgas, infantaria…
   Os cossacos, rindo, convergiam em fileiras. A infantaria perdeu o ímpeto. As trincheiras ficaram vazias. E apenas o judeu curvado permaneceu no local, examinando os cossacos através dos óculos, atento e arrogante.
   Do lado de Leshniuv a troca de tiros não cessava. Os poloneses nos cercavam. Pelo binóculo viam‑se figuras isoladas de exploradores a cavalo. Eles saltavam da localidade e caíam, como bonecos que retornam. Maslak arrumou um esquadrão e o dispersou pelos dois lados da estrada. Sobre Leshniuv ergueu-se um céu resplandecente, inexprimivelmente vazio, como sempre nas horas de perigo. O judeu, erguendo a cabeça, assobiava dolorosa e fortemente numa flauta metálica. E a infantaria, aquela infantaria brutal, retornava aos seus lugares.
   Balas voavam densamente em nossa direção. O quartel-general da brigada entrou numa faixa de fogo de metralhadora. Correndo, embrenhamo-nos na floresta e tentamos galgar o mato ao lado direito da estrada. Galhos disparados rangiam sobre nós. Quando saímos dos arbustos — os cossacos já não estavam mais nos locais anteriores. Por ordem do chefe da divisão, haviam se retirado para Brody. Apenas os camponeses disparavam, de suas trincheiras, raras rajadas de rifles, e Afon’ka retardado perseguia seu pelotão.
   Ele avançava pela beira da estrada, olhando e cheirando o ar. A sonar de metralhadora enfraqueceu por um momento. O cossaco resolveu aproveitar o descanso e se mover em carreira. Nesse instante uma bala perfurou o pescoço de seu cavalo. Afon’ka progrediu mais umas cem passadas e então, entre nossas fileiras, o cavalo arqueou as pernas dianteiras e caiu no chão.
   Afon’ka calmamente tirou o pé pisoteado do estribo. Agachou-se e mexeu na ferida com um dedo de cobre. Depois, ereto, fitou o horizonte brilhante com olhar melancólico.
   — Adeus, Stepan, — disse com voz de madeira, afastando-se do animal que expirava, e inclinou-se junto a ele, — como vou voltar sem ti para a stanitsa silenciosa? Que faço com a sela bordada que era tua? Adeus, Stepan, — repetiu mais alto, sufocando-se, chiou como rato capturado, e uivou. O uivo se propagou até nós, e vimos Afon’ka prostrando-se em súplicas, como um clérigo na igreja. — Bem, não me curvarei ao destino‑pele, — gritou ele, afastando as mãos do rosto já morto, — bem, impiedosamente decapitarei a insensata nobreza! Até ao suspiro cardíaco chegarei, até ao suspiro dela e ao sangue materno… Diante dos habitantes da stanitsa, ó irmãos queridos, prometo-te, Stepan…
   Afon’ka tombou o rosto sobre a ferida e silenciou. Voltando ao dono seus grandes olhos violetas, o cavalo ouvia o ofegar rouco de Afon’ka. Em suave esquecimento movia sobre a terra a cabeça caída, e correntes de sangue, como duas tiras de rubi, escorriam pelo peito do animal, revestido de músculos brancos.
   Afon’ka permaneceu imóvel. Movendo lentamente as grossas pernas, aproximou-se Maslak do cavalo, enfiou-lhe um revólver no ouvido e disparou. Afon’ka saltou e virou o rosto manchado para Maslak.
   — Reúna a arreada, Afanásii, — disse Maslak docemente, — vá até o pelotão…
   E nós, do monte, vimos Afon’ka, curvado sob o peso da sela, rosto molhado e vermelho como carne fendida, caminhar para seu esquadrão, solitário extremo nas poeirentas e flamejantes planícies do campo.
   Já no fim da noite encontrei-o no comboio. Dormia sobre a carroça que guardava seu pertences — sabres, casacas e moedas de ouro furadas. A cabeça empastada do comandante de pelotão, com boca morta distorcida, jazia como crucificada na dobra da sela. Ao lado estavam a arreada do cavalo morto, roupas engenhosas e extravagantes do corcel cossaco — peitorais com borlas negras, tiras flexíveis de crina adornadas com pedras coloridas, e a embocadura com gravação prateada.
   A escuridão se aproximava de nós cada vez mais densa. O comboio girava arrastado pela estrada de Brody; estrelas simples rolavam pelos caminhos leitosos do céu, e vilarejos distantes ardiam na frescura da noite profunda. O ajudante de esquadrão Orlov e o de longos bigodes Bitsenko estavam ali mesmo, sobre a carroça de Afon’ka, discutindo sua tragédia.
   — De casa leva o cavalo, — disse Bitsenko, de bigodes longos, — onde achas um cavalo assim?
   — O cavalo é amigo, — respondeu Orlov.
   — O cavalo é pai, — suspirou Bitsenko, — salva a vida incontáveis vezes. Para Bida, sem cavalo…
   E de manhã Afon’ka desapareceu. Tinham começado e terminado as lutas sob Brody. A derrota fora sucedida por vitória temporária, vivemos a troca de chefe da divisão, mas Afon’ka ainda não aparecera. Apenas o rumor ameaçador nos campos, o rastro malvado e selvagem do banditismo de Afon’ka nos indicavam seu difícil caminho.
   — Procura cavalo, — diziam sobre o comandante de pelotão no esquadrão, e nas noites infinitas de nossas errâncias ouvi muitas histórias da busca rude e selvagem dele.
   Combatentes de outras unidades encontravam Afon’ka a dezenas de verstas da nossa posição. Ele sentava-se em emboscadas a poloneses cavaleiros atrasados ou percorria florestas à procura de manadas camponesas escondidas. Incendiava aldeias e fuzilava starostas poloneses por ocultamento. Chegavam até nós ecos desse furioso duelo, ecos de ataque furtivo de lobo solitário contra comunidade.
   Passou ainda uma semana. A amarga raiva do dia expulsou de nosso convívio os relatos da audácia sombria de Afon’ka, e “Makhno” começou a ser esquecido. Depois correra o boato de que em alguma floresta fora esfaqueado por camponeses da Galícia. E no dia da entrada nossa em Berestechko, Emelian Budiak do primeiro esquadrão já fora à presença do chefe de divisão rogar pela sela amarela de Afon’ka. Emelian queria desfilar com a sela nova, mas não foi possível.
   Entramos em Berestechko a 6 de agosto. À frente de nossa divisão marchava um beshmet asiático e um kazaki novo do chefe de divisão. Levka, criado enlouquecido, conduzia uma égua de fábrica atrás do chefe de divisão. O marcha de combate, cheio de ameaça prolongada, ecoava pelas ruas empobrecidas e ornamentadas do vilarejo. Beco calhaus velhos, bosque pintado de tábuas corroídas e estribos tortos atravessavam o local. Seu núcleo, corroído pelas eras, exalava uma decomposição triste para nós. Contrabandistas e hipócritas se abrigavam em suas casas espaçosas e sombrias. Somente o senhor Ludomirski, sineiro com fraque verde, nos recebeu junto ao costelo.
   Cruzamos o rio e penetramos na zona burguesa. Aproximávamo-nos da casa do padre quando, numa curva, surgiu Afon’ka montado num garanhão altaneiro.
   — Salve, — pronunciou com voz rouca e, empurrando os combatentes, retomou seu posto nas fileiras.
   Maslak encarou o vazio sem cor e pigarreou sem se virar:
   — Onde arranjaste o cavalo?
   — Meu, — respondeu Afon’ka, apertou um cigarro e com breve movimento da língua o molhou.
   Os cossacos se aproximavam dele um a um e saú­davam-no. Em vez do olho esquerdo, no rosto carbonizado aparecia uma horrível tumor rosa.
   Na manhã seguinte Bida caminhava. Ele quebrou no costelo da igreja o relicário de São Valentim e tentou tocar órgão. Vestia uma jaqueta feita de tapete azul, com flor-de-lis bordada nas costas, e sua cuca suada era penteada sobre o olho perdido.
   Depois do almoço montou no cavalo e atirava com o fuzil nas janelas arrombadas do castelo dos condes Raciborski. Os cossacos ficavam em semicírculo à sua volta… Eles levantavam a cauda do garanhão, apalpavam as pernas e contavam os dentes.
   — Cavalo figurativo, — disse Orlov, ajudante de esquadrão.
   — Cavalo decente, — confirmou Bitsenko, de longos bigodes.

Argamak
   Decidi entrar na linha de frente. O chefe de divisão fez cara feia ao ouvir isso.
   — Pra onde vais?.. Bocas caídas — logo te despacharão pro outro mundo…

   Insisti no meu intento. Elegeu-se para mim a divisão mais combativa — a sexta. Fui designado ao 4º esquadrão do 23º regimento de cavalaria. O esquadrão era comandado pelo metalúrgico da fábrica de Bryansk, Baulin, um garoto para seus anos. Para parecer grosso, ele deixara a barba crescer. Mechas cinzentas enrolavam-se em seu queixo. Aos vinte e dois anos, Baulin desconhecia qualquer aflição. Essa qualidade, comum a milhares de Baulins, tornou-se um dos elementos importantes na vitória da revolução. Baulin era firme, pouco falante, teimoso. O caminho de sua vida estava decidido. Dúvidas sobre sua correção nunca o visitaram. Privações eram para ele leves. Sabia dormir sentado. Adormecia com uma mão comprimir a outra, e despertava de modo que a transição do esquecimento à vigília passava despercebida.
   Sob o comando de Baulin não se podia esperar clemência. Meu serviço começou com um presságio raro de sorte — deram‑me um cavalo. Cavalos não havia nem no estoque equino nem entre os camponeses. Ajudou o acaso. O cossaco Tikhomolov matou sem consultar dois oficiais prisioneiros. Recebeu a incumbência de escoltá‑los até o quartel‑general da brigada; os oficiais poderiam revelar informação importante. Tikhomolov não os conduziu ao destino. Resolveram julgá‑lo no Tribunal Revolucionário, depois mudaram de ideia. O comandante de esquadrão Baulin impôs-lhe castigo pior que um tribunal — tomou dele o garanhão apelidado Argamak e o mandou ao comboio de suprimentos.
   A tortura que suportei com Argamak quase excedeu os limites da força humana. Tikhomolov trazera o cavalo do Terek, de sua casa. Ele fora adestrado no trote cossaco especial — seco, furioso, repentino. O passo de Argamak era longo, estendido, obstinado. Com esse passo diabólico levava-me para fora dos fileiras; defendia-me do esquadrão e, privado de senso de orientação, vagueava por dias tentando achar minha unidade, caía em território inimigo, pernoitava em ravinas, acoplava-se a regimentos estranhos e era expulso por eles. Minha habilidade equestre limitava-se ao fato de que, na guerra germânica, servira em uma unidade de artilharia junto à 15ª divisão de infantaria. Mais frequentemente ficava sobre caixas de munição, e vez por outra participava de escoltas de canhões. Não tive onde me acostumar à trote rígido, oscilante, de Argamak. Tikhomolov deixara ao cavalo toda a maldição de sua queda. Trepidei como saco sobre o lombo longo e seco do garanhão. Machuquei sua espinha. Sobre ela surgiram úlceras. Moscas metálicas corroíam essas feridas. Aros de sangue coagulado negro abraçavam o ventre do animal. Por falhas de ferraria, Argamak começou a mancar; suas patas traseiras inchavam nas articulações e tornavam-se elefantinas. Argamak emagrecera. Seus olhos ardiam com brilho singular de cavalo martirizado, com fogo de histeria e obstinação. Ele recusava-se a ser montado.
   — Anulaste o cavalo, quatro-olhos, — disse o comandante de pelotão.
   À minha frente, os cossacos calavam-se; atrás de mim, preparavam-se como predadores em lentidão traiçoeira. Nem cartas pediam que eu escrevesse…
   O exército a cavalo conquistou Novogród‑Volynsk. Por dia percorriamos sessenta, oitenta quilômetros. Aproximávamos de Rovno. Os dias de descanso eram insignificantes. De noite em noite sonhava o mesmo sonho: galopo em Argamak. À beira do caminho ardiam fogueiras. Cossacos cozinham. Eu passava por eles; eles não erguiam os olhos para mim. Uns saudavam, outros ignoravam: não era hora para mim. O que isso significava? A indiferença deles dizia que não havia nada de especial em meu assento; cavalgo como todos, sem razão de me olhar. Cavalgo meu caro e feliz. A sede de paz e felicidade não se saciava na vigília, por isso me vinha esse sonho.
   Tikhomolov não era visto. Aparecia-me, de longe, nas margens da marcha, nos caudais lentos de carroças abarrotadas de trapos.
   O comandante de pelotão uma vez me disse:
   — Pashka insiste em saber quem és…
   — E por que ele precisa de mim?
   — Parece que precisa…
   — Ele supõe que o ofendi?
   — Não seria estranha a hipótese…
   O ódio de Pashka vinha até mim através de florestas e rios. Sentia‑o na pele e estremecia. Olhos inflamados de sangue estavam presos ao meu caminho.
   — Por que me fizeste inimigo? — perguntei a Baulin.
   O comandante de esquadrão passou por mim bocejando.
   — Isso não é minha dor, — respondeu sem olhar para trás, — é tua dor…
   O dorso de Argamak ia secando e depois se reabriam feridas. Colocava sob a sela três mantas de arreio, mas a cavalgada correta não existia, os cistos não fechavam. Da consciência de que montava uma ferida aberta, coçava-me todo.
   Um cossaco de nosso pelotão, de sobrenome Biziukov, era conterrâneo de Tikhomolov; conhecia Pashka pai lá no Terek.
   — O pai dele, Pashka, — disse-me uma vez Biziukov, — cria cavalos por paixão… Cavaleiro bravo, rechonchudo… Quando vai à manada — escolhe cavalo na hora… Trazem-lhe. Ele fica frente ao cavalo, pernas afastadas, observa… “Que queres?” — pergunta. E ali vai: bate com o punho e, entre os olhos — cavalo se foi. Tu por que, Kalystrat, decidiste sobre o animal? Ele diz que com esse cavalo não monta… Minha paixão mortal… Cavaleiro bravo, não há o que dizer.
   E assim Argamak, deixado vivo pelo pai de Pashka, escolhido por ele, veio a mim. Que fazer depois? Sumi inúmeros planos em mente. A guerra me livrou das preocupações.
   O exército a cavalo atacou Rovno. A cidade foi tomada. Ficamos nela por dois dias. Na noite seguinte os poloneses nos empurraram. Deram combate para permitir que suas tropas em retirada fossem conduzidas. O manobra teve sucesso. O furacão, a chuva cortante, a pesada tormenta de verão que caiu sobre o mundo em torrentes de água negra serviram de cobertura para os poloneses. Limpamos a cidade por um dia. Naquela batalha noturna caiu o sérvio Dundich, o mais bravo dos homens. Nessa escaramuça lutou também Pashka Tikhomolov. Os poloneses atacaram seu comboio. O terreno era plano, sem cobertura. Pashka dispunha suas carroças em ordem de batalha, apenas ele as conhecia. Ao modo dos romanos orgulhosamente alinhavam suas rodas. Pashka possuía uma metralhadora. Supõe-se que a roubara e a escondesse para emergências. Com essa metralhadora Tikhomolov repelira o ataque, salvara os bens e retirara todo o comboio, salvo duas carroças cujos cavalos foram baleados.
   — Por que demora soldados? — disseram a Baulin no quartel‑general da brigada dias depois dessa batalha.
   — Sim, é necessário, se os demorar…
   — Cuidado, pode dar ruim…
   Pashka não foi anistiado, mas sabíamos que viria. Veio de galochas e pés nus. Seus dedos haviam sido cortados, e deles pendiam fitas de musselina preta. As fitas se arrastavam atrás dele como manto. Pashka caminhou até a praça da aldeia Budyatychi, em frente à igreja, onde nossos cavalos estavam amarrados. Baulin sentava nos degraus da igreja e afundava os pés numa bacia. Seus dedos estavam necrosados. Eram rosados, como ferro que começa a temperar. Faixas de palha juvenil grudavam-se à sua testa. O sol ardia nos tijolos e na telha da igreja. Biziukov, ao lado do comandante de esquadrão, enfiou-lhe um cigarro na boca e acendeu. Tikhomolov, arrastando sua manta rasgada, dirigiu-se à cocheira. Suas galochas estalavam. Argamak estendeu o pescoço e relinchou ao encontro de seu dono, relinchou baixo e estridente, como cavalo no deserto. Em seu dorso o sangue se entrelaçava em rendas entre tiras de carne rasgada. Pashka ficou ao lado do cavalo. As fitas sujas permaneciam imóveis no chão.
   — Parece que sim, — disse o cossaco em voz baixa. Avancei.
   — Reconciliemo‑nos, Pasha. Alegro-me que cavalo vá para ti. Não posso lidar com ele… Reconciliemo‑nos, que dizes?..
   — Ainda não é Páscoa para reconciliação, — murmurou o comandante de pelotão, enrolando cigarro atrás de mim. Suas calças estavam desabadas, a camisa aberta no peito bronzeado, repousava nos degraus da igreja.
   — Abençoa‑te com ele, Pashka, — murmurou Biziukov, conterrâneo de Tikhomolov, conhecedor de Kalystrat, pai de Pashka, — convém que ele se benza contigo…
   Eu estava só entre aqueles homens cuja amizade não conseguir obter.
   Pashka ficou imóveis diante do cavalo. Argamak, forte e livre para respirar, estendeu o focinho para ele.
   — Parece que sim, — repetiu o cossaco, virou-se abruptamente para mim e disse cara a cara: — Não vou me reconciliar contigo.
   Arrastando as galochas, ele partiu pela estrada calcária, varrendo com as ataduras a poeira da praça da aldeia. Argamak seguiu-o como cão. A rédea balançava sob o nariz, o pescoço longo repousava baixo. Baulin continuava esfregar no lodaçal o ferrugem vermelhado de seus pés.
   — Fizesse de mim inimigo, — disse a ele, — e por que sou culpado?
   O comandante de esquadrão ergueu a cabeça.
   — Eu te vejo, — disse ele, — vejo‑te todo… Procuras viver sem inimigos… És feito para isso…
   — Abençoa‑te com ele, — murmurou Biziukov, virando-se.
   No rosto de Baulin quedou-se uma marca incandescente. Ele sacudiu a face.
   — Sabes o que isso dá? — disse ele, com dificuldade para controlar a respiração, — isso vira tédio… Vai‑se de nós pra mãe lavada…
   Tive de partir. Transferi‑me para o 2º esquadrão. Lá as coisas melhoraram. Seja como for, Argamak ensinou‑me a montar no estilo de Tikhomolov. Passaram meses. Meu sonho se cumpriu. Os cossacos deixaram de me seguir com os olhos a mim e ao meu cavalo.