Evocar a imagem de Plutão era, para ele, um reflexo natural da alma. Sob o encanto hipnótico do violino, o próprio reino das sombras parecia deter o fardo de suas penas. Ixíon parava a roda de seu suplício, Tântalo esquecia a sede eterna e Sísifo repousava sob a montanha imóvel. Até as Erínias, de rostos convulsos, sorriam diante das notas que pareciam conter a clemência do próprio Hades. A lira de Orfeu, outrora instrumento do consolo, cedia lugar à vibração profunda do arco que arrancava da madeira um lamento humano e divino ao mesmo tempo. A música, assim compreendida, tornava-se não apenas arte, mas redenção; um antídoto contra o medo e contra o dogma, uma ponte entre o homem e o abismo.

Mas tudo o que é sonho conhece o instante de seu esfacelamento. Franz, arrancado do delírio sonoro, reencontrou o chão da realidade ao chegar à cidade universitária onde vivia seu antigo mestre, Samuel Klaus. Este, uma figura quase medieval, de traços grotescos e ternura infinita, acolheu o discípulo com a doçura de um pai tardio. Vendo-o despojado de tudo — fortuna, amor e direção —, tomou-o pela mão e disse: “Fica comigo. Abandona a vida errante e busca a glória. Eu serei teu pai; viveremos apenas para o nome que ainda há de ser teu.”

Sob a orientação vigilante de Klaus, Franz reencontrou o ardor da ambição. As notas voltaram a pulsar com força renovada, cada concerto era um degrau rumo à consagração. As cidades rendiam-se; os críticos chamavam-no de prodígio, o público de gênio. Mas Paris — Paris, que fabrica reputações como quem molda ídolos de argila — manteve-se impassível. Três anos de luta e de espera. Até que o nome de Paganini irrompeu como um raio. A cidade inteira estremeceu: o novo Orfeu havia chegado.

Paganini — o homem que fazia chorar Rossini e desmaiar princesas. O músico cuja arte parecia suspender as leis da natureza, dominando corpos e almas como um hipnotizador divino. Diante dele, o público não aplaudia: prostrava-se. E como toda grandeza inexplicável, a sua foi cercada de sombras. Dizia-se que o diabo lhe inspirava os arpejos; que o seu violino era feito de fibras humanas; que cada nota continha o eco de um pacto selado nas trevas. A lenda cresceu, nutrida pela superstição e pela necessidade de explicar o inexplicável.

Tartini, antes dele, já havia confessado que compusera a sua “Sonata do Diabo” após sonhar com Satanás tocando-a diante de si. E desde então, todo artista que ultrapassava o humano era suspeito de um trato com o inferno. A voz de Pasta viera, diziam, do céu; a de Malibran, de um demônio benevolente. Entre o celestial e o abissal, a fronteira se dissolvia em pura vibração sonora. O público não compreendia que o gênio é, em si mesmo, uma forma de possessão.

A música torna-se um rito quando o intérprete abandona a razão e deixa que algo maior — ou mais profundo — se expresse através dele. Não há pacto mais terrível do que o de servir à beleza sem jamais possuí-la. Paganini, Franz, Tartini — todos foram tocados por essa febre divina, em que o corpo é apenas o invólucro de uma força que exige som e silêncio, êxtase e ruína.

É importante compreender que essas lendas, embora nascidas do medo, revelam um segredo essencial: o poder da arte de transcender o humano. O que o mundo chama de diabólico pode ser, na verdade, a expressão pura do ilimitado. O artista, ao tocar o limiar entre o real e o invisível, desafia não os deuses, mas a própria natureza da criação. O violino, então, não é mais um instrumento — é uma alma. E aquele que o domina torna-se, ele mesmo, ensinado por algo que vem de além da vida.

O que realmente significa trabalhar?

Trabalhar é, antes de tudo, um ato de deslocamento. Não apenas físico, mas simbólico. Ao acordarmos e “irmos ao trabalho”, atravessamos um limiar: saímos do espaço da vida íntima para o espaço do desempenho, da utilidade, da produção. Essa transição marca uma ruptura com a espontaneidade da existência e exige um certo tipo de presença — muitas vezes performática — que serve a um propósito exterior. Trabalhar, nesse sentido, não é apenas fazer algo. É alinhar-se a uma lógica de tempo, valor e função que define o que é considerado produtivo e o que é descartado como desperdício.

No entanto, o trabalho não é apenas o que fazemos por dinheiro. Essa é a visão empobrecida do trabalho — uma redução funcionalista. Trabalhar pode ser também cultivar, manter, insistir, persistir. Há um tipo de trabalho que não aparece nos contratos nem nas folhas de pagamento, mas que sustenta a realidade: o trabalho emocional, o cuidado, a escuta, a atenção. A mãe que embala seu filho à noite; o amigo que ouve em silêncio uma dor alheia; o artista que pinta mesmo sem garantias — todos trabalham. Não por obrigação econômica, mas por fidelidade a algo que insiste dentro deles.

O trabalho, então, não se define apenas pela atividade em si, mas pelo tipo de relação que estabelecemos com ela. Há trabalhos que aprisionam e há trabalhos que libertam. Alguns nos reduzem ao que fazemos, outros revelam quem somos. Trabalhar pode ser um exílio — uma fuga de si, um modo de sobreviver anestesiado. Mas pode também ser uma forma de retorno — de reencontro com uma vocação, com uma verdade interior, com uma potência criativa.

Ao longo do tempo, fomos ensinados a pensar o trabalho como uma obrigação externa, algo a ser suportado até que a “vida real” — o descanso, o lazer, a aposentadoria — finalmente comece. Mas e se essa distinção for ilusória? E se a maneira como trabalhamos moldar a qualidade de toda a nossa vida? Talvez seja preciso reaprender o sentido de trabalhar. Não como uma tarefa que nos consome, mas como um espaço onde também se constrói sentido.

O corpo sabe disso. Ele registra no cansaço, na ansiedade, na dor nas costas, os sinais de um trabalho que não está em consonância com a alma. Há uma sabedoria silenciosa no esgotamento: ele não é apenas um colapso, mas um chamado. Um grito que exige escuta. Porque, no fundo, o trabalho que esgota é aquele que não tem lugar para o sujeito. Que exige presença, mas nega existência.

Entender o que é trabalhar, portanto, exige uma escuta fina das camadas que compõem o gesto cotidiano de produzir, repetir, oferecer. Exige perceber quando estamos sendo usados e quando estamos nos ofertando. É uma distinção sutil, mas fundamental. Porque ser usado é ser reduzido; ofertar-se é se expandir.

É também crucial compreender que nem todo trabalho tem valor reconhecido socialmente — e, ainda assim, pode ter valor essencial. Vivemos em uma cultura que monetiza a eficácia e marginaliza o invisível. Mas há trabalhos que sustentam o mundo mesmo sem salário. E há empregos que, embora pagos, não sustentam ninguém por dentro.

O desafio está em reconstruir o vínculo entre trabalho e vida. Entre fazer e ser. Entre o que nos pedem e o que somos capazes de oferecer sem nos perdermos. Essa reconstrução não é simples nem rápida, mas talvez seja uma das tarefas mais urgentes de nosso tempo: resgatar o trabalho como possibilidade de expressão, e não apenas como mecanismo de sobrevivência.

Trabalhar, por fim, pode ser um ato de resistência: resistir à alienação, à pressa, ao vazio. E também um ato de cuidado: com os outros, com o mundo e consigo mesmo. Quando isso acontece, o trabalho deixa de ser apenas uma função — torna-se um lugar. Um lugar onde a vida, enfim, também pode acontecer.

É importante, além disso, lembrar que o conceito de trabalho é histórico e culturalmente construído. O que uma sociedade define como "trabalho" está diretamente ligado às suas crenças sobre valor, tempo, corpo e comunidade. Por isso, repensar o trabalho é também repensar a própria ideia de sociedade. A quem serve o modelo atual? Quem está incluído e quem está excluído? O que estamos chamando de produtividade — e a que custo? Trabalhar sem refletir sobre isso é correr o risco de se tornar peça de uma máquina que não sabemos para onde vai.