A construção da identidade racial nos Estados Unidos não é uma questão de simples polarização de classes, mas sim um fenômeno profundamente enraizado no histórico da escravidão e na reação contra a ascensão dos direitos civis. A classe trabalhadora branca, especialmente no Sul, foi habilmente manipulada por elites políticas e econômicas que exploraram o medo e o ódio racial como um meio de preservar a ordem social. Ao contrário da visão tradicional de que os brancos pobres agiam de maneira inconsciente ou "falsa", como muitos teóricos marxistas sugerem, Du Bois entendeu que a identidade de "brancura" era mais do que um fenômeno econômico; era também uma construção psíquica poderosa que fornecia à classe trabalhadora branca um valor simbólico que não poderia ser facilmente desafiado, nem mesmo por sua própria sobrevivência material.

Essa construção racial tornou-se um fator crucial não apenas na dinâmica social, mas também na estrutura política dos Estados Unidos. O temor de perder esse valor simbólico fez com que os brancos pobres se opusessem ferozmente ao progresso dos negros, muitas vezes apoiando as políticas de segregação e participando ativamente de linchamentos. A psicologia da "brancura" em questão fazia com que eles vissem qualquer avanço no status dos negros como uma ameaça direta à sua própria identidade e à sua posição na sociedade.

Este racismo estrutural persistiu e se manifestou de maneira poderosa, até mesmo na década de 1960, durante o movimento pelos direitos civis. A luta por dessegregação e igualdade, que incluiu marcos importantes como o caso Brown v. Board of Education, a dessegregação parcial do exército e uma série de legislações progressistas, encontrou uma forte resistência. Essa resistência não se limitava à violência explícita ou ao preconceito aberto, mas se expressava também em políticas econômicas que ignoravam as questões raciais, criando um sistema de "neutralidade racial" que, na prática, perpetuava a desigualdade.

A eleição de um presidente negro em 2008 foi outro marco que, à primeira vista, poderia ser visto como um sinal de progresso. Contudo, essa vitória também provocou uma reação que acabou sendo explorada pelos líderes políticos conservadores, que viandaram pelas feridas raciais não curadas da sociedade americana. A ascensão de figuras como Donald Trump ilustra como a retórica racial ainda exerce uma influência profunda nas eleições e no cenário político americano. Trump não se tornou um líder político eficaz por conta de habilidades excepcionais de comunicação, mas devido à habilidade de explorar e canalizar as frustrações raciais de uma vasta parcela da população, mantendo vivos os ressentimentos em relação aos avanços raciais.

As cidades do Cinturão de Ferrugem, como Detroit, são um exemplo claro de como a reação racial e a decadência urbana se entrelaçam. Muitos pensam nas cidades industriais abandonadas simplesmente como vítimas da desindustrialização e da perda de empregos, mas isso é apenas uma parte da história. O colapso econômico dessas cidades deve ser visto também através da lente da "reação racial", um fenômeno que resultou em políticas que desvalorizavam sistematicamente as populações negras e marginalizadas. Essas cidades não apenas sofreram um colapso físico, mas também se tornaram símbolos de uma agenda política de privação, amplamente utilizada desde os anos 1970 para galvanizar os eleitores conservadores e justificar a imposição de limites à autonomia local.

Ao longo dos anos, a decadência das cidades industriais foi instrumentalizada pelos políticos conservadores, que transformaram imagens de pobreza e desolação urbana em ferramentas de manipulação política. As representações da queda das cidades serviram como uma espécie de "sinal subliminar", um código para apelar a brancos ressentidos com as mudanças raciais e sociais. A retórica política que associava as cidades degradadas à ameaça dos negros não era apenas uma forma de criminalização, mas também uma maneira de justificar a retirada de recursos essenciais, perpetuando o ciclo de empobrecimento e declínio.

Além disso, o conceito de "declínio urbano" tornou-se um recurso simbólico valioso em disputas políticas mais amplas, afastando o foco das desigualdades estruturais e focando a atenção em um suposto "problema urbano" que precisava ser resolvido. Esse discurso serviu, em muitos casos, para desviar a atenção dos verdadeiros responsáveis pela devastação social e econômica, colocando a culpa nas próprias vítimas dessas políticas.

A consequência mais direta disso foi o afastamento de investimentos e a aceleração da fuga de capital humano e financeiro dessas áreas, que, em muitos casos, já enfrentavam desafios econômicos significativos antes do início das décadas de desindustrialização. As cidades do Cinturão de Ferrugem, ao longo de décadas, tornaram-se sinônimos de pobreza e falência. Contudo, o fator racial desempenhou um papel central em como essas cidades foram tratadas tanto pelos governos locais quanto pelo federal, além de influenciar diretamente as escolhas políticas de eleitores que se viam como defensores de uma "ordem natural" da sociedade.

É importante perceber que esse fenômeno não é apenas uma questão de política econômica ou de colapso industrial. O declínio das cidades americanas, especialmente as de predominância negra, foi também uma construção ideológica. As elites políticas utilizaram o medo e o ressentimento racial para fortalecer um sistema político e econômico que, de outra forma, teria dificuldades em justificar as profundas desigualdades que marcaram a história dos Estados Unidos. O imaginário coletivo sobre essas cidades foi, assim, não apenas formado por eventos reais, mas também por narrativas manipuladas, que buscavam esconder as raízes do problema na dinâmica racial e política do país.

Como as limitações do domínio eminente e o financiamento diferenciado moldam o desenvolvimento urbano e a desigualdade nas cidades industriais do Meio-Oeste

Nos últimos anos, conservadores em diversos estados dos EUA vêm impondo restrições significativas ao uso do domínio eminente, que é uma das poucas ferramentas eficazes que os governos locais possuem para impulsionar o desenvolvimento econômico. Embora em cidades periféricas suburbanas essa restrição não afete tanto, devido à abundância de terrenos não desenvolvidos e propriedades concentradas em poucos donos, nas cidades industriais centrais em crise, onde os terrenos são fragmentados em milhares de lotes com inúmeros proprietários, essa limitação torna-se um obstáculo quase intransponível para a revitalização urbana. A impossibilidade de exercer plenamente o domínio eminente restringe drasticamente a capacidade dessas cidades de implementar políticas de desenvolvimento que poderiam transformar áreas degradadas.

Outra dimensão crucial dessa intervenção estatal reside nas decisões sobre o financiamento dos programas municipais e na seletividade na aplicação das leis. Cidades, que possuem menos instrumentos de geração de receita em comparação aos estados, continuam dependentes dos recursos estaduais para financiar áreas essenciais. No entanto, desde a década de 1960, especialmente em estados do Rust Belt com legislaturas dominadas por interesses rurais brancos, tem-se observado um padrão claro: o aumento expressivo dos investimentos em policiamento, construção de prisões e desenvolvimento econômico voltado para centros urbanos, enquanto os cortes severos atingem serviços sociais, habitação subsidiada, educação e programas de tratamento de drogas. Esse modelo de financiamento desigual reflete uma governança que privilegia a proteção e o estímulo ao capital privado e ao desenvolvimento de grandes projetos, como estádios e cassinos, em detrimento do atendimento às necessidades básicas da população mais vulnerável.

O impacto dessa priorização se estende também ao campo penal. A criminalização dos comportamentos está distribuída de forma desigual, com tolerância e pouca fiscalização sobre violações cometidas por investidores e proprietários, enquanto os cidadãos pobres, sobretudo os inquilinos, são submetidos a políticas de tolerância zero e maior repressão. Durante as epidemias de drogas nas décadas de 1980, em cidades como Detroit e Cleveland, legislaturas estaduais intensificaram a repressão contra usuários, sobretudo negros, por meio da ampliação do orçamento policial, endurecimento das leis e expansão do sistema prisional. A disparidade no tratamento penal entre usuários de diferentes drogas evidenciou um viés racial, com usuários de crack, majoritariamente negros, sofrendo punições muito mais severas do que usuários de cocaína em pó, mais comuns entre brancos.

Além dos efeitos imediatos da repressão, a superlotação carcerária e as barreiras pós-prisão criam um ciclo vicioso de exclusão social e econômica. Ex-detentos enfrentam dificuldades extremas para conseguir emprego formal ou moradia, o que agrava a desordem social e fragiliza o tecido comunitário dessas cidades. Paralelamente, a construção das prisões tende a favorecer áreas rurais brancas e conservadoras, que recebem maior representação política nos estados, reforçando a influência conservadora nas legislaturas e aprofundando a ênfase em políticas de encarceramento.

Por outro lado, a ausência de fiscalização e penalização efetiva sobre proprietários ausentes, como os grandes investidores imobiliários, contribui para a deterioração do tecido urbano. Violações de código e inadimplência tributária são mais comuns entre esses proprietários, mas as cidades frequentemente carecem de recursos para agir, ou são impedidas por legislações estaduais que restringem a atuação municipal. Essa proteção desproporcional favorece a especulação imobiliária e perpetua condições precárias para moradores vulneráveis, que são mais facilmente multados ou despejados.

Programas recentes de "rightsizing" – que buscam administrar a abundância de terrenos vagos concentrando populações em corredores de crescimento e criando espaços verdes em áreas desocupadas – enfrentam o mesmo filtro conservador. Embora a demolição receba financiamento generoso, iniciativas para construção de habitação acessível, criação de parques e remediação ambiental são insuficientemente apoiadas pelos estados. Na prática, esses planos acabam promovendo deslocamentos e gentrificação disfarçada, prejudicando os residentes mais vulneráveis.

É fundamental compreender que essas dinâmicas não são meramente consequência de políticas locais ou de escolhas isoladas, mas sim o resultado de um alinhamento estrutural entre governos estaduais conservadores e interesses econômicos privados, que priorizam o capital e a ordem sobre a justiça social e a equidade urbana. Para além das questões técnicas de urbanismo, o leitor deve perceber que o desenvolvimento urbano nestas cidades está profundamente imbricado em relações de poder que perpetuam desigualdades raciais e econômicas. A compreensão dessa intersecção entre política, economia e direito é crucial para pensar alternativas efetivas que possam superar a estagnação e o empobrecimento das cidades industriais.

Como as Práticas Restritivas de Habitação Impactaram a Mobilidade Social nos EUA

As restrições habitacionais, particularmente aquelas que envolvem "pactos restritivos" (restrictive covenants), têm sido um elemento central na perpetuação das disparidades sociais e raciais nos Estados Unidos. Esses pactos eram cláusulas inseridas em contratos de venda de imóveis, que proibiam a venda de propriedades a determinadas raças ou grupos étnicos, comumente afro-americanos, judeus e outros grupos minoritários. A prática, embora ilegal hoje, teve um impacto duradouro nas cidades norte-americanas e na segregação racial, especialmente nas áreas urbanas.

Os pactos restritivos tiveram seu auge na primeira metade do século XX, com a sua aplicação mais prevalente nas décadas de 1920 e 1930. Eles representavam uma forma formalizada de racismo institucional que não apenas segregava fisicamente as comunidades, mas também limitava a mobilidade social das famílias excluídas. A habitação era (e ainda é) um dos principais meios de acumulação de riqueza nos Estados Unidos, e ao negar acesso à propriedade para certos grupos raciais e étnicos, a mobilidade ascendente dessas comunidades foi severamente restrita.

Um exemplo paradigmático disso pode ser encontrado em grandes cidades industriais como Detroit e Chicago, onde a população negra foi sistematicamente segregada em bairros periféricos e subvalorizados. Não apenas os pactos restritivos, mas também políticas públicas como a "redlining" (delimitação de áreas de risco para empréstimos), contribuíram para a marginalização econômica dessas comunidades. O redlining foi uma prática adotada por instituições financeiras e de seguros, que negavam empréstimos e seguros em áreas predominantemente habitadas por negros e imigrantes, independentemente da situação econômica dos indivíduos.

A perpetuação dessas práticas não se limitou apenas ao passado. Embora a implementação de políticas como o Fair Housing Act de 1968 tenha banido oficialmente os pactos restritivos, os efeitos desses pactos ainda podem ser observados nas disparidades econômicas e sociais entre diferentes grupos raciais e étnicos. As consequências dessas políticas históricas são profundamente enraizadas nas cidades e bairros dos Estados Unidos. Bairros segregados continuam a sofrer com a falta de acesso a boas escolas, hospitais e outras infraestruturas essenciais, criando um ciclo de pobreza que é difícil de quebrar.

As cidades que mais sofreram com as consequências dessas práticas são, muitas vezes, as que ainda lidam com os maiores índices de pobreza e violência. Detroit, por exemplo, ainda enfrenta grandes desafios de revitalização urbana, com vastas áreas de terrenos abandonados e edifícios deteriorados. A urbanização, por décadas, foi marcada por uma fuga de capital e uma desvalorização imobiliária, onde os pactos restritivos tiveram papel central, ao garantir que os investimentos se concentrassem em áreas mais "brancas" e "seguras". Como resultado, a classe trabalhadora negra foi empurrada para a periferia, sem acesso a políticas de investimento em infraestrutura e educação.

Além disso, a recuperação dessas cidades afetadas pela desindustrialização, como Detroit e Flint, enfrenta uma enorme dificuldade. A escassez de recursos, aliada a políticas fiscais austeras, piora a situação dessas cidades. Tais políticas têm um impacto direto na qualidade de vida dos residentes, limitando o acesso a serviços públicos essenciais. O caso de Flint, por exemplo, onde uma crise de água contaminada afetou milhões, ilustra como políticas de austeridade e má gestão podem afetar de maneira devastadora as populações mais vulneráveis, que já estavam marginalizadas devido à segregação histórica.

É importante ressaltar que a dessegregação urbana e a promoção da justiça habitacional não podem ser reduzidas apenas a ações de reabilitação física ou programas de transferência de recursos. São necessárias reformas mais profundas que envolvam a revisão de políticas fiscais, educacionais e de saúde, além de uma mudança no entendimento sobre o papel da habitação no fortalecimento da classe trabalhadora. A verdadeira reparação histórica exigirá que se enfrente não só a segregação habitacional, mas também as barreiras à mobilidade social imposta por décadas de exclusão sistemática. As ações de reabilitação urbana devem ser acompanhadas por políticas de inclusão que busquem corrigir as distorções passadas e construir um futuro mais equitativo.

Além disso, é essencial entender que as questões habitacionais estão intimamente ligadas à segregação social, econômica e racial. A habitação não é apenas um lugar para viver, mas um espaço de poder e de oportunidade. Políticas públicas focadas em habitação devem levar em consideração a diversidade de necessidades das populações, principalmente as que foram historicamente excluídas das oportunidades de crescimento econômico. Essa abordagem integral pode permitir uma recuperação mais justa e sustentável para as comunidades afetadas.