Os cultos locais, enraizados nas práticas religiosas e rituais de diferentes culturas, oferecem um reflexo direto da estrutura social, econômica e simbólica das civilizações que os cultivaram. Tais cultos revelam não apenas a forma como as sociedades se organizavam em torno do sagrado, mas também como viam a si mesmas, os seus mortos, os deuses e os ciclos da natureza. Nas tradições agrícolas e tribais, por exemplo, o culto aos espíritos dos antepassados era muitas vezes central, funcionando como uma continuidade da linhagem e como garantia da fertilidade dos campos. O espírito ancestral era simultaneamente memória e poder presente, força tutelar e elo com os ritmos da terra.

A presença marcante de cultos à água, ao fogo, aos animais ou à lua demonstra o quanto os elementos naturais eram personificados e divinizados, não apenas como expressão de admiração, mas como forma de controlar o imprevisível. A sacralização da natureza era também uma forma de inscrição do humano no cosmos. Entre os povos pastoris, os cultos solares ou relacionados aos deuses do céu estavam mais presentes, enquanto nas sociedades agrícolas, as divindades da terra e da fecundidade feminina assumiam papel predominante. O matriarcado simbólico, muitas vezes refletido no culto à deusa mãe ou às figuras femininas divinas, sugere que o sagrado feminino ocupava lugar de fundação nos ciclos de regeneração e morte.

Há também a sobreposição entre religião e organização política. Os cultos de chefes, reis ou imperadores revelam o processo de divinização da autoridade. O líder não apenas exercia poder terreno, mas incorporava um princípio sagrado, tornando-se mediador entre o mundo visível e o invisível. Nisso, o culto ao herói fundador, ao aristocrata deificado ou ao profeta morto aponta para a fusão entre memória coletiva e transcendência. O que se homenageia no herói não é só sua façanha, mas a fundação de uma ordem

Quais práticas espirituais ancestrais persistem entre os povos não letrados da Ásia?

Entre os povos não letrados da Ásia meridional, sudeste e oriental, observa-se uma persistente continuidade de formas religiosas arcaicas. Apesar de viverem em contato com sociedades mais desenvolvidas ou terem sido absorvidos por religiões universais, esses grupos conservaram traços profundos de cultos animistas, totêmicos e xamânicos. A religião aqui não se apresenta como um sistema teológico abstrato, mas como um complexo enraizado no cotidiano, na caça, na natureza, no corpo da família e nos ciclos de vida.

Entre os andamaneses, os tabus alimentares estavam associados aos ritos de passagem da adolescência, marcados por longos períodos de restrições dietéticas que variavam entre um e cinco anos, sendo geralmente mais longos para as meninas. Nada se sabe sobre as crenças específicas relacionadas a essas iniciações, mas a estrutura espiritual da sociedade era centrada nas figuras dos xamãs, indivíduos dotados da capacidade de se comunicar com os espíritos — entidades que personificavam forças naturais e, simultaneamente, os mortos. Esses espíritos, com frequência, eram percebidos como perigosos, revelando uma cosmovisão onde a natureza era, em sua essência, hostil e ameaçadora.

O elemento mitológico mais significativo para os andamaneses era Pulug, a personificação das tempestades e dos ventos monçônicos, considerada superior mesmo ao Sol e à Lua. Pulug tornou-se objeto de apropriação missionária cristã, sendo utilizado como tradução para "Deus" em textos religiosos. Paralelamente, as narrativas mitológicas giravam em torno de Torno, o ancestral primordial e herói cultural, aquele que ensinou aos humanos as habilidades e os ofícios essenciais.

Os Vedda do interior do Sri Lanka, embora há séculos em contato com cingaleses e tâmeis, mantêm práticas espirituais arcaicas. Sua religião é centrada no culto aos espíritos e não aos deuses, salvo as figuras divinas incorporadas de mitologias vizinhas. Esses espíritos estão intimamente ligados à atividade cinegética: recebem orações e oferendas antes das caçadas. É notável a quase completa ausência de magia ou feitiçaria entre os Vedda — um fato singular considerando o nível tecnológico e socialmente pouco complexo desse grupo. A relação com o espiritual é direta e pragmática, mais devocional do que ritualística, desprovida de uma classe sacerdotal formal.

Os Ainu,

Como funcionava o sistema totêmico entre os povos nativos da Austrália?

Antes da colonização europeia, os povos nativos da Austrália viviam em tribos nômades, sem práticas agrícolas, criação de animais, cerâmica, tecelagem ou metalurgia. A estrutura social era organizada em pequenos grupos territoriais denominados hordas, que funcionavam como a base da vida comunitária. A divisão do trabalho seguia critérios de idade e gênero, e os anciãos exerciam certa liderança. As relações matrimoniais mantinham traços arcaicos, coexistindo resquícios de casamento grupal com a emergência do casamento por pares. Essa base social homogênea refletia-se também na uniformidade das crenças religiosas e mágicas, apesar de variações locais.

O núcleo ideológico da religião dos povos aborígenes era o totemismo: a crença numa ligação sobrenatural entre um grupo humano e um grupo de objetos, geralmente animais. A Austrália é considerada o território clássico do totemismo, onde essa forma de religião manifesta-se com clareza incomparável. Essa estrutura religiosa divide-se entre o sujeito (grupo humano) e o objeto (o totem). O sujeito é geralmente o clã primitivo, ou grupo totêmico, que pode ou não coincidir com o grupo local. A divergência entre os dois explica-se, muitas vezes, pela permanência do sistema matrilinear de descendência e herança totêmica, ainda que a residência pós-maritária já fosse patrilocal.

Grupos totêmicos são sempre exogâmicos – ou seja, o casamento entre seus membros é proibido. A exogamia, ainda que de natureza social e não religiosa, é um sinal histórico inseparável do totemismo, que se constitui como sua superestrutura ideológica. Clãs podem se agrupar em metades tribais exogâmicas chamadas fratrias. Em certas tribos, essas fratrias possuíam nomes totêmicos – Fratria do Canguru, da Ema, da Águia, do Corvo, da Cacatua –, e a elas podiam estar associados mitos e crenças específicos.

Algumas tribos do sudeste apresentavam formas particulares de totemismo, associadas ao sexo: todos os homens possuíam um totem (como um morcego), e todas as mulheres outro (como o bacurau). Essa diferenciação, embora não comprove ser mais antiga, indica uma divisão social por gênero e, ao mesmo tempo, uma possível paridade simbólica entre os sexos, derivada da especialização funcional entre homens e mulheres.

Outro tipo de totemismo é o individual, quando além do totem do clã, cada homem – geralmente xamãs, curandeiros ou chefes – possui um totem próprio, herdado do pai ou recebido durante ritos de iniciação. Esse fenômeno representa a incipiente individualização da experiência religiosa e é considerado um estágio posterior na evolução do totemismo.

Os totens eram quase sempre animais, por vezes plantas, e raramente objetos. Sua escolha refletia o ambiente geográfico e as condições de subsistência locais. Em quase toda a Austrália, predominavam animais terrestres ou voadores – ema, canguru, gambá, dingo, cobra, lagarto, corvo, morcego. Não se tratava de animais perigosos; a própria ausência de predadores no território australiano desfaz explicações simplistas que atribuem o surgimento do totemismo ao medo de feras. Em áreas mais áridas, como ao redor do lago Eyre, onde havia escassez de caça e consumo de substitutos alimentares (como insetos ou larvas), os totens incluíam também plantas e insetos, mas apenas nessas regiões.

No centro da Austrália, onde vivia a tribo Aranda, o sistema totêmico era especialmente desenvolvido, com uma variedade incomum de totens que incluíam até fenômenos naturais como a chuva, o vento quente ou o sol. Mesmo assim, os aborígenes não veneravam os totens como divindades, tampouco os viam como objetos sobrenaturais. A relação era de pertencimento misterioso, quase físico. Tribos do sudeste chamavam seu totem de “nosso amigo”, “nosso irmão mais velho” ou “nosso pai”. Em alguns casos, diziam “nossa carne”, como se houvesse um laço de identidade. No centro do continente, muitos chegavam a se identificar diretamente com o totem.

Essa ligação era principalmente expressa pelo tabu de matar ou consumir o animal-totem. Mas o grau de observância variava. No sudeste, matar o totem era proibido, mas comer sua carne, desde que abatido por outro, era tolerado. No centro, o contrário: comer era proibido, mas matar não violava o costume. Durante os rituais totêmicos, havia momentos em que se exigia o consumo de parte do totem, com o propósito de reforçar a conexão mágica. A quebra desse equilíbrio – tanto a abstenção total quanto o consumo excessivo – era vista como prejudicial ao elo espiritual com o totem.

O universo totêmico era povoado por mitos sobre ancestrais heroicos que, embora não devam ser confundidos com o culto aos antepassados (um estágio religioso mais tardio), constituíam o cerne simbólico do sistema. Esses ancestrais eram figuras fantásticas, de forma indefinida, às vezes representados como animais, outras como humanos com nomes de animais. Podiam ser homens, mulheres, grupos inteiros. Caçavam, migravam e realizavam ritos – como os próprios aborígenes –, e segundo muitos mitos, deslocavam-se debaixo da terra, para depois emergirem ou desaparecerem, transformando-se em rochas, árvores ou pedras.

A complexidade do totemismo australiano evidencia não apenas a antiguidade dessa forma religiosa, mas sua profundidade simbólica e social. Reduzir o totemismo a simples “culto de animais” é um erro conceitual grave. Trata-se de uma rede de relações entre homem, natureza e mito que estruturava inteiramente o tecido social dos povos nativos da Austrália.

É fundamental compreender que o totemismo não funcionava como um sistema isolado de crenças, mas como uma engrenagem que articulava o parentesco, os interditos sociais, os rituais, a identidade pessoal e coletiva, a geografia espiritual do território e a própria concepção de humanidade. A relação com o totem não era simbólica apenas: era prática, territorial, corporal e mágica. O totem era tanto um espelho quanto uma raiz – não um deus, mas um vínculo, um princípio de organização do mundo.

Como a Casta e o Karma Definiram a Religião Brahmanica na Índia Antiga?

O período brahmânico na história da religião indiana é caracterizado por uma profunda transformação social e religiosa que refletiu a complexidade crescente da sociedade indiana. Durante essa fase, a casta dos sacerdotes, os Brahmanas, ganhou uma importância central, e as práticas cultuais se tornaram ainda mais sofisticadas e exclusivas. As divindades que antes personificavam forças da natureza e eram celebradas nos hinos dos Vedas foram progressivamente substituídas por novos deuses, com Brahma emergindo como o deus supremo.

O conceito de Brahma, originado de Brahmanaspati, a personificação da oração, foi transformado durante o período brahmânico em uma figura divina que encarnava todas as qualidades possíveis. A ideia de que o mundo estava subordinado aos deuses, e que esses deuses, por sua vez, estavam subordinados aos cânticos dos Brahmanas, refletiu uma mudança profunda: os Brahmanas se tornaram os verdadeiros "deuses" do povo. Esse desenvolvimento também coincidia com o surgimento de outras divindades importantes como Vishnu e Shiva, que, embora relacionados aos deuses do período védico, ganharam novos significados e funções dentro da estrutura religiosa de castas.

Os Vedas, que inicialmente celebravam divindades relacionadas à natureza, cederam espaço a uma panteão mais estruturado, onde as divindades masculinas, como Vishnu, Shiva e Brahma, se destacavam. Cada uma dessas divindades se associava a uma função social específica, refletindo diretamente a estratificação da sociedade indiana. Vishnu se tornou o deus dos Kshatriyas (guerreiros), enquanto Shiva, oriundo de Rudra, passou a ser venerado pelos Vaisyas (agricultores). Já os Sudras, a classe mais baixa, foram sistematicamente excluídos dos rituais oficiais e relegados a um papel submisso.

Além das divindades masculinas, o culto às deusas passou a ganhar força, o que refletia uma mudança nas práticas religiosas. Deuses como Lakshmi, associada a Vishnu, e Parvati, consorte de Shiva, passaram a ocupar um lugar importante no panteão brahmânico, substituindo as representações mais impessoais das divindades anteriores.

Na estrutura social rigidamente hierárquica que se consolidou nesse período, as leis de Manu tornaram-se fundamentais para a manutenção da ordem. O culto aos ancestrais, que antes era secundário, passou a ganhar destaque. De acordo com as "Leis de Manu", o rito em honra aos manes (ancestrais) era considerado até mais importante que o culto aos próprios deuses, especialmente para aqueles que eram considerados "duplamente nascidos" (Brahmanas, Kshatriyas e Vaisyas).

A exclusão dos Sudras de qualquer prática religiosa pública refletiu a crescente desigualdade entre as castas. Como as cerimônias eram realizadas em privado, sob a supervisão dos Brahmanas, os rituais se tornaram inacessíveis à grande maioria da população, composta pelas classes mais baixas. Não existiam templos públicos, e as cerimônias eram caras, sendo acessíveis apenas aos ricos e poderosos. Essa exclusão social e religiosa aprofundou ainda mais as divisões entre as castas, consolidando a ideia de que o destino de cada um era determinado não só pelas ações da vida presente, mas também pelo cumprimento das regras de sua casta.

Foi também nesse período que a ideia de reencarnação, até então desconhecida na religião védica, se enraizou. Originalmente derivada das crenças locais dos Dravídicos e Mundas, a doutrina da migração da alma foi incorporada ao sistema brahmânico e associada ao conceito de karma. A crença na reencarnação afirmava que as ações de um indivíduo na vida presente determinariam sua condição na vida futura, com base na observância ou violação das normas da casta. A adesão rigorosa aos deveres de sua casta era vista como o caminho para uma vida futura melhor, enquanto a transgressão poderia resultar em reencarnação em uma casta inferior ou até mesmo em um animal, caso os pecados fossem mais graves. A ideia de karma, que se baseia na causalidade e no destino, tornou-se o alicerce filosófico dessa visão, determinando que a ação de uma pessoa geraria consequências diretas em sua próxima existência.

As doutrinas da reencarnação e do karma foram codificadas e detalhadas nas obras filosóficas e teológicas do período, como os Upanishads, que surgiram como uma reflexão profunda sobre a natureza da alma (Atman) e sua relação com o Brahman, o princípio universal. Nesse contexto, o pensamento filosófico se dividiu em várias escolas, incluindo as tradicionais como Vedanta, Mimamsa, Sankhya e Yoga, que abordavam desde o panteísmo até o materialismo, refletindo as complexas interações entre as diferentes classes sociais e suas necessidades ideológicas.

Essas escolas filosóficas não apenas explicavam os aspectos espirituais da vida, mas também forneciam uma base teórica para justificar a ordem social de castas. No entanto, a desigualdade e a exclusão de classes como os Sudras eram justificadas através de uma visão de mundo onde cada indivíduo, independentemente de sua posição social, estava sendo recompensado ou punido com base em suas ações passadas, em uma lógica de karma e reencarnação.

Essa visão da reencarnação, que inicialmente estava distante da religiosidade védica, se consolidou ao longo do período brahmânico e transformou a forma como a espiritualidade e as práticas religiosas foram vividas na Índia. A castidade, a pureza das ações e a obediência às leis sociais tornaram-se não apenas normas sociais, mas princípios espirituais que moldaram a religiosidade de uma sociedade profundamente hierárquica.

A introdução do conceito de karma e reencarnação alterou radicalmente a forma como as pessoas viam o mundo e a si mesmas, promovendo uma filosofia que tinha a capacidade de, ao mesmo tempo, ser profundamente libertadora para os que seguiam a rigidez das normas, e cruelmente excludente para os que não conseguiam se adaptar a essa ordem estrita e imutável. Essa estrutura filosófica e social continuou a influenciar a Índia ao longo dos séculos, criando uma base para o hinduísmo tal como o conhecemos hoje.

Qual é o verdadeiro caminho da libertação segundo o ensinamento original de Buda?

O amor no budismo primitivo não é um sentimento ativo e engajado, mas sim uma disposição serena e universal de benevolência. Não distingue entre o bem e o mal, entre pessoas e animais, entre amigos e inimigos. Qualquer afeto particular por um indivíduo é desencorajado, pois se vê nisso uma forma de apego. O amor budista manifesta-se como não resistência ao mal, perdão diante das ofensas e ausência de vingança. Revidar o mal apenas intensifica o ciclo de hostilidade e sofrimento, tornando-se assim moralmente inaceitável até mesmo defender-se ou proteger outros da violência. A resposta correta diante do mal, segundo a doutrina, é a imperturbabilidade emocional, a paciência e a recusa em se envolver com o mal.

A filosofia budista primitiva subordina os aspectos cognitivos e metafísicos à ética. O próprio Buda desencorajava questionamentos metafísicos, por considerá-los inúteis para a salvação. Ele comparava a curiosidade metafísica à de um homem ferido por uma flecha envenenada que, em vez de buscar tratamento, insiste em interrogar sobre a identidade do agressor. Enquanto se entretém com perguntas vãs, morre sem cura. Assim, para o discípulo de Buda, o importante não é compreender a origem ou a essência do mundo, mas trilhar o caminho designado da virtude, que conduz à libertação.

A doutrina da alma, tal como entendida em outras tradições, é rejeitada no budismo. A unidade e a imortalidade da alma são negadas. O que constitui o ser são as dharmas — elementos espirituais, qualidades impessoais que compõem a psique humana. Esses dharmas não são permanentes, nem são atributos de uma entidade eterna. São os portadores de sinais, as manifestações transitórias de qualidades sensoriais, mentais e espirituais. Ao morrer, o indivíduo não perpetua uma alma, mas suas dharmas se dissolvem, sendo reorganizadas por influência do carma — as ações acumuladas — em uma nova configuração, gerando uma nova personalidade. Assim se perpetua o ciclo de renascimentos: a roda dolorosa da existência, da qual só se escapa pelo abandono do próprio desejo de existir.

Essa concepção filosófica culmina na doutrina das doze nidanas — uma cadeia causal que descreve o nascimento do sofrimento e sua perpetuação: desde a ignorância até a velhice e a morte. Cada elo se encadeia ao seguinte com rigor intransigente, revelando uma visão profundamente determinista da existência.

O budismo, por essa razão, é frequentemente rotulado como uma “religião sem deus”. Embora Buda não negasse explicitamente os deuses do bramanismo, atribuía-lhes uma completa impotência diante do sofrimento humano. A salvação não poderia vir senão por esforço próprio. Apesar de parecer, à primeira vista, uma exaltação da vontade e da ação individual, esse esforço não é ativo, mas consiste, paradoxalmente, no abandono. A libertação é entendida como renúncia à existência, não como conquista do mundo. Viver é sofrer; libertar-se é cessar o desejo de viver.

Essa moral estrita exigia dos seguidores uma vida monástica. As primeiras comunidades budistas eram compostas por bhikshus e bhikshunis — monges e monjas que viviam na pobreza extrema, renunciando à propriedade, à sexualidade e ao consumo. Vestiam-se de amarelo, a cor das castas “impuras”, comiam apenas uma vez ao dia antes do pôr-do-sol e dependiam inteiramente da caridade dos leigos. Estes, por sua vez, chamados upasaka e upasika, mantinham-se no mundo secular, seguindo preceitos morais mínimos e sustentando as comunidades monásticas com doações. O budismo não apenas aceitava esses leigos: deles dependia.

A força do budismo não residia apenas em seu conteúdo doutrinário, mas em sua linguagem e organização. Ele falava ao povo em seu idioma cotidiano, não nos hinos védicos arcaicos. Sua estrutura monástica disciplinada contrastava com o formalismo e elitismo do bramanismo. A promessa de dignidade e igualdade nas comunidades budistas atraiu membros das castas inferiores, que ali encontravam um espaço de reconhecimento negado pelo sistema tradicional. Sua recusa a rituais caros e sacrifícios dispendiosos oferecia uma religião mais acessível às massas.

O sucesso da nova doutrina foi impulsionado também por fatores políticos. Em Magadha, no século III a.C., o budismo tornou-se religião dominante. Ali, os reis da dinastia Maurya — oriundos de castas inferiores — apoiaram o budismo como contraponto ao poder dos brâmanes. As comunidades budistas ofereciam uma base ideológica e institucional alternativa ao domínio religioso tradicional, permitindo aos governantes consolidar seu poder sem a intermediação do sacerdócio bramânico.

Importa ainda compreender que, embora o budismo tenha rejeitado os deuses e os rituais bramânicos, ele não aboliu a religiosidade. Transfigurou-a. O ideal religioso tornou-se a superação da existência através do caminho ético e contemplativo. A disciplina interna substituiu o sacrifício externo. A verdade deixou de ser algo a ser revelado por um ser divino e passou a ser o fruto da transformação interior. O foco deslocou-se da adoração à compreensão, da submissão à transcendência silenciosa.