Com uma invocação à benevolência e à justiça, Lincoln exorta à caridade para com todos, sem malícia para ninguém, mantendo firmeza na busca do que é correto segundo a visão divina. Seu chamado é para cicatrizar as feridas da nação, cuidar dos que lutaram, suas viúvas e órfãos, e promover uma paz justa e duradoura entre os povos. Esta visão ética clara, ancorada na distinção entre o certo e o errado, justiça e injustiça, estabelece um paradigma moral elevado para a liderança política.

Contrastando profundamente com essa herança, o período de Donald Trump marcou um afastamento radical da linguagem moral na presidência americana. Ao contrário de seus predecessores, como Obama, G. W. Bush e Kennedy, que discursavam em termos de dever cívico e responsabilidade social, Trump se manteve notavelmente silencioso sobre a moralidade. Sua retórica "America First" rejeita o apelo universalista e altruísta para uma convocação coletiva pela liberdade humana. Ele enfatiza que a nação existe para servir seus cidadãos, invertendo o chamado ao serviço cívico em favor de uma visão centrada no interesse próprio nacional.

A diferença fundamental reside no caráter da liderança: enquanto Lincoln, Jefferson, Adams e Washington eram cuidadosamente conscientes da força das palavras e da integridade ética, Trump emergiu do mundo do espetáculo televisivo e do capitalismo sem freios. Seu livro mais famoso, The Art of the Deal, revela uma filosofia baseada na ganância e na promoção de si mesmo, usando "hipérbole verdadeira" — uma forma inocente de exagero que visa excitar as fantasias das pessoas, não educá-las moralmente. Esta estratégia comercial, embora eficaz para vendas, torna-se perigosa e perversa no contexto da liderança política.

Trump se tornou sinônimo de mentira habitual, com dezenas de milhares de falsidades publicamente registradas, incluindo a negação repetida da derrota eleitoral de 2020. Embora mentiras sejam parte do repertório político histórico, o que define o perigo do autoritarismo não é a mentira em si, mas a justificação dessa mentira como expressão do poder excepcional do tirano. A manipulação da verdade, a aparência de virtude e piedade, e a utilização da violência e do medo são ferramentas clássicas dos tiranos, como já discutido por Platão e Maquiavel. Ambos apontam para a complexidade do poder que se baseia no engano e na construção de uma imagem de invencibilidade.

O problema teológico central reside na natureza de Deus em contraposição à tirania: Deus não é tirano, não engana, não celebra a glória secular, não recompensa mentirosos, buscadores de poder ou tiranos, e condena a violência. Esta distinção oferece um horizonte ético que denuncia a manipulação, a mentira e a violência como incompatíveis com a verdadeira justiça divina.

Além da análise apresentada, é fundamental compreender que a ausência da moralidade pública e a legitimação do egoísmo político geram uma erosão profunda da confiança social e do tecido democrático. A cultura política construída sobre a distorção da verdade e a promoção do interesse individual em detrimento do bem comum desmantela os mecanismos que sustentam uma convivência civilizada e justa. É importante também perceber que a ética na liderança não é mero discurso vazio, mas a base para a construção de instituições que respeitam a dignidade humana e promovem o desenvolvimento coletivo. A ausência dessa base abre caminho para a polarização, o autoritarismo e a violência institucionalizada.

Como a soberania e a tirania desafiam a legitimidade do poder democrático?

A transição legítima do poder em uma democracia está intrinsecamente ligada à questão da soberania, da revolução e da origem do consentimento dos governados. Na tradição política cristã, o soberano era uma figura situada fora da lei, considerada a fonte e administradora da mesma. Contudo, na tradição do contrato social, a soberania é reinterpretada: ela se associa às constituições, às estruturas políticas majoritárias e aos princípios legais ou morais que são, ou independentes da lei, como os direitos naturais, ou fruto de algum acordo originário.

Na teoria liberal-democrática, persistem dúvidas sobre o status do poder executivo. O poder não tirânico é limitado e funcional, determinado pelos papéis e funções dentro do sistema constitucional. Já o poder tirânico ultrapassa a lei e seu limite funcional para assumir um poder excepcional que reside na pessoa e não no cargo. Carl Schmitt destacou que “soberano é aquele que decide sobre a exceção”, apontando que o soberano exerce um poder que está, em certa medida, fora do sistema constitucional, podendo suspender a lei em momentos de crise ou emergência. Tal decisão, na sua essência, não está orientada por normas, mas pela vontade do soberano. Quando essa vontade é absoluta, a tirania se instala.

Esse conceito voltou à tona em contextos políticos contemporâneos, como na era Trump, onde a discussão sobre a possibilidade de um presidente em exercício ser investigado ou indiciado por atos ilegais, incluindo ameaças ao sistema eleitoral, questiona a própria natureza do poder soberano. A pergunta fundamental não é apenas prática — se o presidente pode cumprir suas funções enquanto investigado — mas filosófica: o presidente está sujeito à lei durante seu mandato? Pode ele perdoar a si mesmo? Estas indagações resgatam questões profundas sobre a origem e o status da lei.

A autonomia individual também se conecta a essa questão de decisão soberana. Para Schmitt, a soberania é poder de decisão. A pessoa humana é autônoma na medida em que pode decidir e estabelecer a si mesma as normas que obedecerá. No pensamento ocidental, especialmente em Kant, a autonomia se dá quando a pessoa se sujeita voluntariamente à lei moral. Assim, a decisão moral não é caprichosa ou egoísta, mas submetida a um princípio universal.

A tirania, por sua vez, ocorre quando essa autonomia se torna arbitrária e anárquica. O tirano rejeita a lei moral, substituindo-a por sua própria vontade, que é caprichosa, incoerente e egocêntrica. A moralidade que o tirano aceita é apenas aquela que o favorece; ele declara seu próprio desejo como lei, recusando a legitimidade das normas. Sem sentimento de culpa ou remorso, o tirano percebe as regras como restrições ilegítimas e se vê acima delas, como um deus capaz de criar novas leis. Essa personalidade tirânica é marcada por um narcisismo extremo, indiferença à verdade e uma guerra constante contra a moralidade.

No mito de Édipo Tirano, o coro diz que a hybris — traduzida como insolência, arrogância ou orgulho excessivo — gera a tirania. Alguns argumentam que a tirania também gera hybris, numa relação circular onde o poder inflama a arrogância, e esta, por sua vez, alimenta a busca pelo poder. O tirano acredita merecer seu domínio, vendo-se superior aos demais, enquanto o poder alimenta essa convicção, criando um ciclo autossustentável. Esse excesso de confiança inflada leva ao desejo de controle absoluto e ao abuso do poder, que inevitavelmente conduzem à queda, quando a hybris é “jogada de volta à terra”.

Além da reflexão sobre o poder e a tirania, é importante entender que o funcionamento saudável da democracia depende do equilíbrio entre a soberania como função institucional e o respeito à lei que limita o exercício do poder. A tensão entre a decisão soberana e o império da lei reflete uma luta constante para evitar que o poder se transforme em tirania. A compreensão da autonomia moral, da necessidade de limites e da legitimidade das normas é fundamental para preservar a democracia e impedir que o poder absoluto corrompa os princípios básicos de justiça e governança.

O que é a verdadeira natureza da hubris e como ela se relaciona com a tirania e a queda?

A tradição ocidental alerta há milênios que a hubris, a ambição desmedida e a vaidade exagerada são fontes de crime e ruína. Na obra de Shakespeare, "Macbeth" nos mostra a “ambição desmedida” que ultrapassa seus limites e conduz à queda inevitável. O livro de Provérbios da Bíblia reforça essa ideia: “O orgulho precede a destruição, e o espírito altivo precede a queda”. O termo grego hubris, presente na tradução grega do hebraico, associa-se a kakophrosyne, que significa julgamento ruim ou tolice. No latim, hubris torna-se superbia, traduzido como soberba, orgulho ou altivez, sugerindo um orgulho que emerge das alturas – uma sensação de superioridade que se eleva acima dos demais, como Macbeth ambiciona. Esse orgulho não é simples; ele carrega a ideia simbólica de uma queda desde uma posição elevada.

Importante destacar que, embora hubris seja traduzida como orgulho, o orgulho nem sempre é um vício. A ausência de orgulho, em alguns casos, representa um defeito – o chamado complexo de inferioridade. O orgulho justificado é reflexo do valor real da pessoa. Quem vence uma corrida ou realiza uma descoberta deve sentir orgulho legítimo. A verdadeira estima própria envolve uma avaliação honesta do próprio mérito, reconhecendo conquistas e a altura alcançada, mas sem exageros. Aristóteles já distinguia esse orgulho adequado – a magnanimidade ou “grandeza de alma” – como virtude oposta tanto à falsa humildade quanto à vaidade imoderada. O orgulho genuíno está ligado à virtude e à bondade, imune à bajulação vazia, pois quem se conhece bem e tem mérito verdadeiro não se deixa enganar por elogios sem valor.

A distinção entre autoestima e autorrespeito também é crucial para compreender a hubris. Autoestima refere-se ao julgamento de si mesmo como bom, enquanto autorrespeito significa considerar-se um agente moral autônomo, merecedor de respeito básico. Todos os seres humanos merecem autorrespeito, mas nem todos são dignos de alta autoestima. Um criminoso, por exemplo, pode possuir uma autoestima inflada devido à hubris, apesar de, moralmente, merecer baixa autoestima e, ao mesmo tempo, reconhecer seu valor humano fundamental. A falha moral do criminoso ou do tirano reside na superestimação equivocada de si mesmo: eles não reconhecem suas falhas e acreditam merecer o que tomam, numa ilusão delirante de superioridade que confunde grandeza com bondade.

Essa distorção da dignidade e do respeito implica que o tirano acredita que apenas ele é digno de respeito, desconsiderando e abusando dos outros. Para ele, as pessoas são meros instrumentos a serem usados para manter seu poder. A estima que ele tem por seus súditos é puramente instrumental, baseada no interesse, não em reconhecimento moral verdadeiro. A hubris é, assim, uma forma de delírio de superioridade, uma arrogância desmedida que ignora a mortalidade humana e a igualdade moral entre os homens.

Além disso, a hubris está intrinsecamente ligada à violência e à crueldade. No grego, ela significa “violência gratuita”, originada do orgulho da força ou da paixão descontrolada. Estudos recentes enfatizam que a hubris se manifesta pela violação desprezível da dignidade moral alheia, frequentemente por meio da violência, tortura ou humilhação, com o propósito de afirmar ou desfrutar de uma posição de preeminência. Essa disposição torna a hubris um vício essencialmente antidemocrático, pois nega a igualdade moral entre as pessoas, promovendo a tirania que se alimenta da exaltação do poder sem bondade.

No contexto contemporâneo, podemos aplicar essa análise ao slogan “Make America Great Again” de Donald Trump. A ênfase na “grandeza” não recai sobre a bondade, mas sobre a glória, o poder e a superioridade quantitativa, aspectos externos e pagãos da “grandeza”. A verdadeira bondade, por outro lado, é uma qualidade interna, ligada a princípios morais, virtudes, respeito e dignidade, e não à ostentação de poder. A busca pela grandeza externa, destacada por Trump e seus seguidores, revela o problema moral da hubris e da tirania: o valor da pessoa medido em termos de poder e prestígio, e não em termos éticos e virtuosos.

É fundamental compreender que a hubris não é simplesmente excesso de orgulho, mas um vício complexo que distorce o sentido da dignidade e da moralidade, levando ao abuso, à violência e à opressão. O equilíbrio entre orgulho legítimo e humildade verdadeira é necessário para evitar a armadilha da arrogância destrutiva que conduz à queda e ao sofrimento, tanto individual quanto coletivo.

Como distinguir sabedoria e estupidez em um mundo polarizado?

Em uma era marcada por divisões políticas e culturais profundas, a linguagem do insulto e da desqualificação tornou-se uma ferramenta comum para expressar hostilidade e diferenciação ideológica. A retórica do ex-presidente Donald Trump exemplifica essa dinâmica ao empregar termos como “dummy” e “moron” para desmerecer adversários políticos, num exercício de poder simbólico que não se baseia em avaliações objetivas, mas em estratégias de ataque e deslegitimação. Palavras que carregam uma história complexa e dolorosa, como “moron”, originalmente utilizadas em contextos eugênicos para classificar pessoas com deficiências intelectuais, foram apropriadas para o discurso político moderno como armas de guerra verbal.

Essa prática não é exclusiva de um lado do espectro político; tanto Trump quanto seus adversários recorrem a ataques ad hominem, reforçando uma lógica de polarização onde o outro é invariavelmente “estúpido” ou “cego”. Essa disputa verbal revela muito mais que simples animosidade: ela evidencia uma disputa sobre o que significa ser sábio ou tolo, e sobre quem detém a legitimidade do conhecimento e da verdade.

A antiguidade já refletia sobre essa tensão entre sabedoria e loucura. No Novo Testamento, Paulo usa o termo grego “moros” para indicar que a sabedoria do mundo pode ser tola, enquanto a “loucura” de Deus é verdadeira sabedoria. Essa ideia, que a sabedoria humana é limitada e que o que parece insensato pode esconder uma verdade mais profunda, contrapõe-se diretamente à visão contemporânea de que o insulto e a desqualificação são apenas prova de ignorância.

A tradição ocidental, por meio de filósofos, dramaturgos e poetas, sempre explorou essa relação ambígua entre sabedoria e loucura. Personagens como o bobo da corte ou o profeta cego representam figuras que, embora marginalizadas ou ridicularizadas, trazem verdades que desafiam a visão dominante. Nietzsche, por sua vez, critica essa tradição como cúmplice da negação da razão, acusando o cristianismo de valorizar o que ele chama de “idiotice”.

O problema central da polarização não é apenas o conflito de perspectivas, mas a incapacidade de estabelecer um critério objetivo para a justiça, a sabedoria e a virtude. A figura do tirano, que busca um poder absoluto e arbitrário, e seus seguidores, considerados “morons” no sentido de cegos e ignorantes, personificam a tragédia política. A defesa contra essa tragédia depende da existência de uma norma objetiva que defina o que é justo, o que é sábio, e que responsabilize moralmente os atores políticos.

A filosofia, desde Platão e Aristóteles até a modernidade iluminista, sustenta a crença na possibilidade dessa objetividade. Personagens como Tirésias, o vidente cego da tragédia grega, simbolizam a sabedoria que transcende a aparência e o consenso popular, enquanto o coro nas peças encena a voz da razão compartilhada. Sem essa base, a discussão política se reduz a uma disputa de versões subjetivas e relativas, onde a verdade se dissolve na manipulação e no insulto.

Compreender esse contexto é fundamental para o leitor contemporâneo que deseja navegar nas águas turvas da política atual. É preciso reconhecer que a polarização, alimentada por insultos e desqualificações, não apenas distorce o debate público, mas também ameaça a própria possibilidade de convivência democrática baseada em princípios racionais. A batalha entre o que é “sábio” e o que é “tolo” não pode ser decidida apenas por preferências ou animosidades, mas deve ser ancorada em critérios compartilhados de justiça, responsabilidade e verdade.

Além disso, é importante perceber que as categorias de sabedoria e estupidez não são fixas nem universais. O que uma pessoa pode considerar uma ideia brilhante, outra pode julgar absurda. Assim, a humildade intelectual e o diálogo são instrumentos indispensáveis para ultrapassar a polarização, abrindo espaço para a possibilidade de reconhecer a validade do outro mesmo quando discordamos. A polarização extrema, ao eliminar essa possibilidade, transforma o debate em uma guerra simbólica que empobrece a democracia e o entendimento humano.

O que torna a tirania possível numa democracia?

A figura do tirano, ainda que não plenamente realizada, se manifestou de forma perturbadora durante os eventos do dia 6 de janeiro nos Estados Unidos. Donald Trump desempenhou o papel clássico do tirano em potencial – um indivíduo que busca romper com as normas constitucionais sob a justificativa de ser excepcional. A tentativa de ruptura da ordem institucional e legal não foi bem-sucedida graças às salvaguardas do sistema constitucional americano, mas o episódio revela padrões históricos que remontam à Grécia Antiga e se repetem ciclicamente: o tirano, o sicofanta e a massa ignorante.

A tirania política, como fenômeno, é sempre um excesso. Ela ultrapassa os limites do que é comum e aceitável dentro de um regime legal e racional. Quando as leis cessam, como afirmou Locke, a tirania começa. O tirano se vê fora da jurisdição da legalidade e, ao invés de se submeter às regras, as despreza, convencido de que possui um direito quase divino à exceção. Este sentimento de superioridade é nutrido e amplificado pelos sicofantas – aqueles que orbitam o tirano e lhe servem de intermediários com a massa – e pela adulação coletiva, que não apenas reforça o narcisismo do líder, mas também transforma a própria multidão em cúmplice de sua exceção.

Essa dinâmica de reforço mútuo é essencial: o tirano massageia o ego das massas com promessas de grandeza e reconhecimento – “vocês são especiais”, disse Trump à turba –, enquanto os seguidores, sentindo-se escolhidos, retribuem com fidelidade incondicional e violência emocional. Acreditam, inclusive, que têm acesso a verdades ocultas e revelações que os distinguem do cidadão comum. O culto à exceção substitui o compromisso com a razão e com a legalidade.

O papel do sicofanta é duplo. Ele racionaliza a tirania perante os mecanismos legais, oferecendo discursos pseudo-jurídicos que dão verniz técnico à barbárie. Simultaneamente, atua como animador da plateia, inflamando emoções e criando narrativas messiânicas. Nesse jogo duplo, o sicofanta alimenta o delírio do tirano enquanto prepara o terreno para que a massa o siga com fervor. Giuliani, nesse contexto, não apenas argumentou juridicamente em prol de uma causa sem provas, mas também lançou a retórica do "julgamento por combate", preparando emocionalmente a multidão para a violência que se seguiria.

A linguagem da tirania é sempre emocional e frequentemente violenta. O sistema jurídico, fundado na razão e na moderação, não possui remédios eficazes contra ataques dirigidos ao próprio fundamento da legalidade. Assim, a tirania se instala não apenas por meio de decretos ou golpes de Estado, mas através da erosão paulatina da racionalidade pública. O apelo ao combate, à bravura e à recuperação de uma grandeza perdida é emocionalmente eficaz porque toca em registros arcaicos e primitivos da psique coletiva. A multidão responde não com argumentos, mas com gritos, marcha e destruição.

A previsibilidade da violência é um elemento crucial. Não é necessário que o tirano diga explicitamente “invadam o poder”. A estrutura emocional e discursiva já está montada para que a ação violenta surja como conclusão lógica. A negação formal do apelo à violência, como o pedido posterior de Trump para que os manifestantes fossem para casa, serve apenas para preservar uma frágil plausibilidade negacional – o que não anula sua responsabilidade moral e simbólica.

Mas a história mostra que essa relação entre tirano, sicofanta e multidão não é nova. Platão e Sófocles já haviam descrito essa tríade com lucidez. Palavras como "tirano", "sicofanta" e "moron" (tolo, ignorante) provêm diretamente do grego antigo. Platão condenava veementemente o papel dos aduladores do poder e da massa ignorante que, cega pela emoção, se torna instrumento da criminalidade política. Para Platão, a tirania emerge quando os cidadãos se submetem a um demagogo que manipula suas paixões e fraquezas, afastando-os da razão e da virtude.

O caso de Sócrates é paradigmático: acusado e condenado por corromper a juventude, foi vítima de um sistema manipulado por sicofantas e legitimado pela estupidez da maioria. A tragédia de Édipo, analisada por Sófocles, mostra o tirano cego que acusa o profeta de ser um tolo, sem perceber que a verdadeira ignorância é sua. O “moron”, portanto, não é simplesmente aquele que desconhece, mas aquele que recusa o conhecimento e opta pela cegueira voluntária. É essa cegueira coletiva que permite ao tirano prosperar.

É importante compreender que a manutenção de uma democracia não depende apenas das estruturas legais, mas da educação dos cidadãos e do cultivo da virtude pública. Onde há ignorância deliberada e culto à exceção, a tirania encontra terreno fértil. O Estado de Direito é frágil diante das emoções descontroladas, e somente a racionalidade compartilhada, sustentada por cidadãos vigilantes e éticos, pode impedir a sua erosão.