O problema começou com o homem sentado ao lado do motorista. Seus olhos eram de um azul claro, frios, como se penetrassem a alma. Quando ele me olhou, percebi a atenção meticulosa com que me observava, como se soubesse mais sobre mim do que eu gostaria. Naquele instante, a sensação de estar sendo vigiado tornou-se tangível. O instinto foi claro: precisava evitar o carro, mudar o percurso. Dirigi-me para os portões de ferro, pensando que poderia passar despercebido. Mas o homem com a voz inglesa, que já havia me analisado na livraria da Universidade de Moscou, estava mais atento do que eu imaginava. Como que por uma habilidade quase sobrenatural, a porta traseira do carro se abriu rapidamente. Um terceiro homem estava ali. Sem uma palavra, o homem dos olhos azuis me convidou a entrar. "Agradeço pela carona", murmurei, tentando manter a calma enquanto me acomodava no banco traseiro. A porta se fechou e, em um movimento fluido, o carro saiu pela entrada do hospital.

O clima estava tenso, a situação, imprevista. Sentado ao meu lado, o homem de óculos, com um olhar sério e um tom que evidenciava seu preparo intelectual, disse: "Foi bom que não o fizemos esperar." "Harvard?" perguntei. "Princeton, na verdade", respondeu. A constante presença de indivíduos das universidades de elite entre as agências de inteligência nunca deixou de me intrigar. Eles sempre pareciam ser atraídos por esse mundo misterioso e oculto. A presença deles era garantida, como abelhas em busca do néctar. "Para onde estamos indo?", perguntei. "Ankara." Não ousava questionar mais, embora quisesse entender como souberam do meu movimento. Eu tentava controlar minha raiva por ter sido seguido, especialmente após ter feito o meu melhor para ser discreto enquanto caminhava pelos corredores do hospital. O que eu não percebia era que meu movimento já havia sido antecipado, monitorado com precisão enquanto eu estava inconsciente. Fui um alvo fácil, uma presa em uma armadilha invisível.

A sensação de vulnerabilidade me dominava. A caminhada confiante, a tentativa de evitar olhar para trás, tudo isso havia sido um erro. Estava claro que eles já tinham alguém observando, talvez horas antes de eu tomar qualquer ação. A rapidez com que fui seguido indicava um planejamento impecável. Atrapalhei-me em minha própria ingenuidade. O carro agora avançava por um caminho que parecia me levar cada vez mais para longe da segurança, rumo a um destino incerto. A tranquilidade que inicialmente parecia se oferecer se dissipava à medida que a realidade da situação se impunha.

Durante a viagem, a sensação de que eu estava em um plano maior, orquestrado e muito bem controlado, tomou conta de mim. O homem dos olhos azuis, com quem comecei a trocar algumas palavras, falava sobre o russo que tinha aprendido. "Seu russo melhorou bastante nos últimos dias", comentou. “Será útil para você”, respondi, mais por diplomacia do que por real interesse.

Eu estava ativamente buscando um momento para me livrar deles, ou pelo menos para provocar uma distração. Eles acreditavam que eu estava fisicamente enfraquecido, mas eu sabia que poderia dar uma resposta enérgica. No entanto, a ideia de criar um tumulto poderia revelar mais do que eu queria sobre minha capacidade de resistência. O que eu realmente queria era fazer com que acreditassem que estavam lidando com algo muito mais significativo do que uma simples captura. Isso me dava uma vantagem psicológica. Eu sabia que tinha apenas três dias até cumprir a promessa feita a Edelstam. Três dias para mantê-los ocupados, confusos, sem perceberem que sua estratégia estava falhando.

Chegamos rapidamente a um pequeno aeroporto. O carro parou ao lado de uma casinha de embarque, e em poucos minutos, estava sendo conduzido até um avião. Em contraste com a situação, o voo parecia quase confortável. O piloto, indiferente ao que acontecia ao redor, fez sua checagem no avião e iniciou a partida sem pressa. A viagem até Ankara foi tranquila, sem maiores percalços. Eu estava começando a me acostumar com a ideia de que minha situação estava se tornando ainda mais complexa do que eu poderia prever.

Ankara, no entanto, não parecia o destino seguro que eu imaginara. Ao invés de ser levado a uma prisão militar fortemente guardada, fui conduzido a uma casa grande em uma avenida tranquila, parecendo até sofisticada à primeira vista. Contudo, ao ser finalmente colocado em uma cela, a realidade de que minha situação estava longe de ser simples se tornou clara. A cama dura e a janela gradeada eram detalhes que contrastavam com o ambiente anterior, muito mais agradável à primeira vista. Mas o desconforto físico era insignificante em comparação ao fato de que estava vivo, em boa saúde, e que minha visão, algo que eu temia ter perdido permanentemente, estava de volta.

A interrogação veio mais tarde. A sala de interrogatório era fria e impessoal, e quem me aguardava ali não eram os esperados agentes, mas um russo de expressão rígida e de aparência militar. Havia também dois intérpretes, que se mostraram cruciais para a dinâmica da conversa. Eles me questionaram sobre minha jornada desde Moscou. Minha resposta foi direta, até certa medida planejada: "Meu contato foi meu pai." O silêncio que se seguiu foi quebrado quando o homem de Princeton folheou uma pasta e revelou que, segundo suas informações, meu pai havia morrido cinco anos antes. Eu sabia, claro, que isso era uma jogada para tentar me desestabilizar, mas o que me surpreendeu foi a entrada de uma mulher que se tornaria uma figura marcante naquele momento. Ela era jovem, vestia um uniforme militar russo e tinha uma beleza que não podia ser ignorada. Sua presença era uma espécie de força silenciosa, mas sua utilidade seria logo revelada.

Esses momentos de tensão e jogo psicológico são comuns em situações de captura e interrogatório. Através deles, o comportamento humano se altera, e os próprios protagonistas começam a se questionar sobre o limite entre a sobrevivência e o sacrifício. A confiança em nossa capacidade de manipular situações e nossa percepção da realidade podem ser os elementos chave que nos garantem algum controle, ainda que momentâneo, sobre um jogo cujas regras são constantemente alteradas.

Quem detém o poder: humanos, máquinas e a memória dos mortos?

Atravessar o passo não era apenas uma questão de sobrevivência física, mas um jogo estratégico no qual cada peça tinha o seu lugar. A noção de ser “descartável” – tanto para o transportador da carga como para aquele que planeou a missão – revela a natureza fria e condicional do plano. Se o mensageiro não sobrevivesse, não haveria pontas soltas nem testemunhas que pudessem denunciar a existência contínua do artefato. Sobrevivendo, porém, tornava-se guardião, herdeiro involuntário de um segredo.

Edelstam não se apresentava como vilão, mas como intermediário. A sua motivação, dizia ele, não era poder nem política, mas conhecimento. Era-lhe permitido aprender, contanto que seus motivos fossem “puros”. A confiança depositada nele pelas entidades incandescentes era pragmática: um humano curioso, mas útil, que não se desviava do seu propósito. No entanto, o protagonista questiona essa pureza – lembra-lhe os operários turcos, vítimas de uma estratégia que não era dele. O dilema moral paira no ar: é possível alegar inocência quando se executa um plano alheio?

O diálogo entre Peter e Edelstam oscila entre filosofia e ciência. Quando Peter o confronta com a ideia de que ambos são “programados” – ele pelos Incandescentes, Edelstam pelo mundo – surge uma fenda na segurança intelectual do interlocutor. Se cada um é programado por forças maiores, em que consiste afinal a liberdade? Ser “programado” por uma inteligência deliberada seria superior a ser moldado por um acaso cego? Essa inversão – na qual o humano se torna um acidente aleatório e o robô um produto de design intencional – abala a noção de dignidade humana. Edelstam hesita, procura uma justificação para a profundidade do propósito humano, mas não consegue garanti-la universalmente.

A especialidade do pai de Peter intensifica este questionamento. Ele não era apenas um agente de “contrainteligência”, mas possuía circuitos radiativos únicos que lhe permitiam interagir com o núcleo da bateria. Nem Peter nem Edelstam, com todo o seu conhecimento de física experimental, podiam fazê-lo. Um dom peculiar, estritamente delimitado. Exatamente como uma função desenhada num robô. Paradoxalmente, a singularidade do pai não o elevava acima dos humanos comuns; reduzia-o a uma função, um mecanismo de utilidade.

O verdadeiro choque, porém, está no interior da bateria. Não se trata apenas de energia bruta, mas de um banco de dados ordenado, uma matriz de informação que, segundo Edelstam, armazena as memórias dos mortos. O pai de Peter falava em “manter a fé com os mortos”, e agora compreende-se o significado: talvez a sua própria memória esteja ali, preservada. Um robô pode ser restaurado, diz Edelstam; e com ele, as memórias, os padrões, as consciências. A ideia reconfigura radicalmente a relação entre vida, morte e poder.

Essa descoberta transforma Peter no novo custodiante dos mortos, um papel herdado do pai. Ele percebe que tudo – desde gestos banais como o círculo de um braço até a memória infalível de cartas de Sam Ossett – pode ser peça de um plano condicional, um programa sofisticado que reage a cada variável. Sobreviveu ao episódio dos operários turcos? Então ativa-se o “plano B”. Não sobreviveu? O segredo desaparece com ele.

Como a Sobrevivência e o Mistério se Entrelaçam em uma Viagem Desesperadora

A figura do homem do museu, escondida sob um casaco de pele e um chapéu que quase o engolia, parecia carregar consigo mais do que o peso de uma jornada longa. Suas palavras, impessoais e diretas, deixavam claro que a urgência da missão não permitia desperdício de tempo. "Você encontrará seu contato em breve", disse ele com uma voz grave e tranquila. "É imperativo que siga imediatamente para a fronteira Russo-Turca. Seu contato está em grande perigo. Cada momento perdido só aumenta o risco." A intensidade de sua mensagem não deixava espaço para questionamentos.

Eu apenas assenti, sentindo a gravidade da situação. A visão do inglês na livraria ainda me intrigava, mas a advertência do homem do museu me deixava claro: "O inglês que você viu... não é seu amigo." Isso bastou para que eu entendesse que a realidade em que estávamos imersos era muito mais complexa do que eu poderia imaginar. "E a menina com covinhas?", perguntei, mais por curiosidade do que por necessidade. Sua resposta foi curta e evasiva: "Você não precisa saber disso. Nunca é vantajoso saber demais."

Em um mundo de sombras e alianças veladas, o que era permitido saber e o que deveria ser ignorado se tornava uma linha tênue e perigosamente fluida. Seguindo as instruções, sem mais explicações, fui orientado a seguir para o local designado. Mapas, o único guia confiável em um terreno que parecia não ter fim, foram entregues com a instrução de que a travessia da fronteira era vital e deveria ser feita sem hesitação.

Nos momentos seguintes, já com o equipamento preparado e a tensão crescente, o cenário ao nosso redor transformava-se lentamente. O som do vento, cortante e implacável, misturava-se ao nosso esforço para manter o ritmo. O silêncio do ambiente, intercalado com o som de nossos esquis cortando a neve, parecia tão denso quanto a própria missão que estávamos cumprindo. O conhecimento tácito de que cada passo nos aproximava de algo mais perigoso e desconhecido aumentava a pressão.

Foi no inverno rigoroso da República da Geórgia que a verdadeira natureza da jornada se revelou. A travessia do terreno acidentado, sem momentos de grande dramatismo, parecia mais uma marcha incessante do que uma jornada épica. A progressão era lenta e constante, a cada curva da floresta e clareira o peso da missão aumentava, sem que qualquer palavra fosse trocada, a não ser o estrito necessário. O esforço físico parecia ser a única válvula de escape.

A paisagem ao redor era a de uma natureza crua e impiedosa, onde a vida e a morte se confundem. A travessia de um riacho congelado, cujas margens, cobertas de neve, guardavam as primeiras flores da primavera, parecia quase uma ironia da vida: a persistência da vida mesmo nos cenários mais áridos e desoladores. Em meio a esse cenário, o fluxo constante da jornada tornava-se uma linha contínua, difícil de distinguir, como se o tempo tivesse perdido seu significado.

O encontro com meu pai, após tantos anos, trazia um estranho conforto, apesar da constante tensão. A cada nova etapa, ele parecia mais distante, não apenas fisicamente, mas também emocionalmente, como se o passado e o presente não mais se encontrassem em uma linha reta. As perguntas que fervilhavam em minha mente eram reprimidas, pois sabíamos que as respostas, quando viessem, não seriam dadas de forma fácil ou imediata. Cada parte da viagem, cada passo dado, parecia seguir uma lógica própria, distante de tudo o que eu já conhecia.

Quando o objetivo final parecia estar ao alcance, as surpresas continuavam a surgir. O conteúdo das mochilas revelava mais do que simples necessidades para a sobrevivência. A descoberta de um objeto estranho no saco de meu pai, um artefato incomum que desafiava qualquer descrição simples, fez-me questionar o que realmente estava em jogo. Não era um simples dispositivo ou ferramenta, mas algo com uma forma enigmática, que parecia carregar consigo um significado que não era dado para entender naquele momento.

É importante que, ao refletir sobre essas experiências, o leitor entenda que em momentos de tensão extrema, como os vividos nessa jornada, o processo de desvelar o mistério não é linear. Em uma missão de tal natureza, onde cada detalhe conta, a busca pela sobrevivência torna-se entrelaçada com o conhecimento progressivo, e muitas vezes incompleto, das forças invisíveis que agem sobre os protagonistas. Entender isso é compreender que, muitas vezes, o que está em jogo vai além da simples travessia física ou da resolução de um enigma imediato. O verdadeiro perigo pode residir no próprio processo de descobrimento, na construção de uma verdade que nunca chega a ser completamente revelada.