O mercado é muitas vezes visto como um antidoto ao racismo, e muitos argumentam que, se bem conduzido, ele poderia gerar uma sociedade mais igualitária. Essa lógica sustenta que qualquer declínio social ou econômico se deve a forças políticas anti-mercado. Alguns conservadores levam esse argumento ainda mais longe, sugerindo que o verdadeiro problema é a hostilidade dos negros em relação aos brancos e ao mercado. A narrativa aponta que os negros, ao cometerem crimes, iniciarem tumultos e elegerem políticos radicais, como Coleman Young, prefeito de Detroit, causaram a fuga dos brancos das cidades. Esses políticos, por sua vez, supostamente buscavam afastar os brancos para garantir seu sucesso eleitoral.

Esse ponto de vista sugere que os políticos negros, como Young, não se preocuparam com a ordem pública nem com a segurança jurídica, e investiram excessivamente em serviços considerados desnecessários, sem atenção suficiente para empresas ou residentes de classe média. Para muitos conservadores, esses líderes são acusados de construir cidades inseguras e desordenadas que forçaram a migração dos brancos para os subúrbios. Nessa visão, negros e políticos negros são descritos como movidos por rancor retroativo, enquanto os brancos são considerados seres racionais e econômicos, cegos para as questões raciais.

Embora essa visão seja amplamente criticada por sua falta de lógica e empatia, além de ser desacreditada por muitos acadêmicos, ela encontra grande apoio entre conservadores. No entanto, é fundamental analisar como essas narrativas se conectam com outras literaturas que abordam o racismo estrutural e seus impactos na dinâmica social e econômica das cidades. O racismo contra os negros, de fato, tem um efeito profundo sobre o fluxo de capital e pessoas nas cidades, um fenômeno bem documentado, mas raramente sintetizado de forma abrangente.

A presença da ameaça racial, que se reflete no declínio urbano, pode ser explicada através de diferentes formas históricas e sociais. Primeiro, o efeito legado do período de segregação legal, que restringiu drasticamente o acesso dos negros ao capital e à propriedade. Cidades do cinturão industrial, como Detroit, Cleveland, Milwaukee e Chicago, abrigaram algumas das primeiras e mais marcantes áreas de segregação, onde os negros foram confinados a guetos construídos formalmente, muitas vezes vítimas de violência física por tentarem se mover para áreas mais prósperas ou predominantemente brancas.

Dentro desses guetos, os negros enfrentaram condições precárias, com prédios degradados e sem recursos para manutenção. O acesso à posse de imóveis era limitado a contratos hipotecários que mais endividavam do que favoreciam a aquisição de propriedade. As práticas de redlining, onde os bancos se recusavam a conceder empréstimos a moradores de áreas predominantemente negras, ainda são sentidas em muitas dessas regiões. O ambiente jurídico que permitia, e até incentivava, essas práticas discriminatórias, começou a mudar apenas no final da década de 1960, com a promulgação de leis como o Ato de Habitação de 1968, que proibia a discriminação no aluguel e na compra de imóveis. No entanto, a eficácia dessas reformas foi limitada, sendo que medidas significativas contra o redlining só surgiram na década de 1970, com o Ato de Divulgação de Hipotecas (1975) e o Ato de Reinvestimento Comunitário (1977).

Essa desigualdade histórica é um fator crítico para entender o racismo contemporâneo, pois, como argumenta Ta-Nehisi Coates, a sociedade parece acreditar que os danos causados pelo racismo se curam rapidamente, sem a devida reparação das desigualdades estruturais que foram criadas ao longo do tempo. Em outras palavras, a segregação e a discriminação deixaram um legado profundo, que é ignorado ao se tentar “curar” a sociedade sem enfrentar as desigualdades criadas por essas políticas passadas.

Além disso, o fenômeno da "fuga dos brancos" para os subúrbios, alimentada por políticas públicas, como a construção de rodovias e a concessão de hipotecas subsidiadas, também contribuiu para a persistência da segregação racial nas cidades americanas. Embora a dessegregação legal tenha ocorrido após a década de 1960, o processo de “fuga” não cessou, e, de fato, muitas cidades como Detroit, Cleveland e Gary acabaram por se tornar predominantemente negras ao longo das décadas seguintes.

É essencial compreender que, apesar do avanço legislativo contra a discriminação racial, as cidades ainda lidam com a continuidade dessas práticas de segregação, muitas vezes sob formas mais sutis, mas igualmente prejudiciais. O que temos hoje é uma combinação de fatores históricos, sociais e econômicos que resultam em um ciclo contínuo de exclusão e marginalização das populações negras. Portanto, ao discutir o declínio urbano e suas causas, é fundamental reconhecer o papel central que o racismo institucionalizado desempenha nesse processo.

O Poder das Cidades: O Desafio da Autonomia Municipal no Contexto das Leis de Preempção

Nos últimos cinquenta anos, as cidades americanas têm enfrentado desafios crescentes na tentativa de se governar e proteger seus interesses. Em um contexto onde as legislações estaduais têm cada vez mais restringido o poder das administrações municipais, as cidades se veem forçadas a buscar formas alternativas para resistir ao declínio urbano. Contudo, essas tentativas são agora mais limitadas do que jamais foram. As leis de preempção, em especial, tornaram-se um instrumento crucial para cercear a capacidade das cidades de tomarem decisões autônomas.

A preempção é um conceito jurídico que se refere ao poder do governo estadual de anular ou restringir legislações municipais. Durante as últimas décadas, os governos estaduais, principalmente sob liderança republicana, têm usado essas leis para limitar o poder das cidades em diversas questões. Em um movimento amplamente conservador, a preempção tem sido aplicada para proibir cidades de criar ordens municipais contra discriminação, remover monumentos confederados, aumentar impostos sobre a propriedade, penalizar a posse de armas e implementar o controle de aluguel. Essas limitações têm sido ainda mais intensificadas após o movimento do Tea Party em 2010, o qual consolidou a maioria republicana nas legislaturas estaduais.

As consequências para as cidades centrais, especialmente as localizadas na região do Rust Belt, têm sido devastadoras. À medida que essas cidades, já lutando com o impacto da desindustrialização e do êxodo branco, se veem incapazes de arrecadar impostos suficientes devido às limitações impostas pela preempção, sua capacidade de promover o bem-estar social e econômico de seus cidadãos é ainda mais prejudicada. Esse fenômeno é particularmente visível nas cidades do Meio-Oeste, como Detroit, Cleveland e Milwaukee, onde os legisladores rurais ganham poder ao prometer que irão limitar a influência das grandes cidades sobre o Estado.

Além disso, outra forma de despojar as cidades de sua autonomia tem sido por meio da criação de conselhos financeiros. Entre 1975 e 2009, pelo menos 120 cidades e condados americanos foram colocados sob algum tipo de supervisão financeira. Esses conselhos, sob a justificativa de combater crises fiscais, têm priorizado políticas de austeridade, como cortes nos serviços públicos e demissões de funcionários municipais. A ideia de que as cidades estão em crise financeira, frequentemente exacerbada por uma gestão considerada ineficiente, leva os estados a tomar o controle financeiro, removendo a capacidade local de governar e tomando decisões que muitas vezes favorecem os interesses suburbanos e corporativos.

Um exemplo notável disso é o caso do sistema de água de Detroit, que foi afetado por uma perspectiva suburbana que via o custo da água como um "subsídio" para os moradores mais pobres da cidade. O controle da infraestrutura urbana essencial, como sistemas de transporte regional, aeroportos e serviços de água e energia, passou a ser um ponto de disputa, com os subúrbios se mobilizando para tomar o controle de tais recursos, alegando altos custos devido à má gestão. Após a intervenção estatal, os cortes de água para moradores considerados devedores se tornaram uma política oficial, refletindo a austeridade imposta pelas autoridades estaduais.

Outro setor afetado por essa perda de autonomia municipal foi a educação. Em várias cidades que enfrentaram a fuga de brancos e a concentração de populações minoritárias, os estados assumiram o controle das escolas públicas. As cidades de Camden, Newark, Detroit e Flint, todas dominadas por uma maioria negra ou latina, viram suas escolas serem tomadas por autoridades estaduais, sem considerar as condições estruturais que afetavam a qualidade da educação nessas áreas.

É fundamental compreender que, ao remover a autonomia das cidades, os estados não apenas limitam a capacidade de ação local, mas também promovem um processo de centralização do poder que beneficia as áreas rurais e suburbanas, deixando as grandes cidades, muitas vezes mais diversas e economicamente desfavorecidas, em uma posição de fragilidade. Esse processo é impulsionado por uma retórica que associa a pobreza urbana à má gestão, enquanto as comunidades suburbanas, em sua maioria brancas, se veem como vítimas de um sistema que, em sua visão, favorece as cidades centrais.

Por isso, a resistência a essas políticas de preempção e intervenção financeira passa a ser um ponto crucial para o fortalecimento da autonomia urbana. As cidades, especialmente aquelas em crise, devem buscar alternativas para se proteger, como a promoção de políticas públicas que combatam a desigualdade, a implementação de novos modelos de governança local e a luta pela devolução de seus poderes perante os estados. A autonomia das cidades, portanto, não é apenas uma questão administrativa, mas um reflexo da luta por justiça social e econômica em um país profundamente dividido entre áreas urbanas e rurais.

Como a política racial e o declínio urbano moldam o poder conservador nas cidades americanas?

A dinâmica entre raça, política urbana e declínio socioeconômico nas cidades dos Estados Unidos revela uma complexa teia de tensões e estratégias que perpetuam desigualdades estruturais profundas. Desde a segunda metade do século XX, o racismo institucionalizado se manifesta tanto nas políticas públicas quanto nas práticas judiciais, reforçando a marginalização das comunidades negras e fomentando um ambiente de segregação e exclusão. O conceito de “ameaça racial” torna-se central para compreender como o medo de populações negras mobiliza elites políticas e econômicas a adotar medidas repressivas que, embora apresentadas como respostas à criminalidade e à desordem urbana, visam manter o status quo de poder branco.

A sobreposição entre a estigmatização territorial e a marginalização racial constrói um cenário onde áreas urbanas predominantemente negras são desvalorizadas e abandonadas, gerando um ciclo de declínio econômico e social. O fenômeno da estigmatização territorial, descrito por Loïc Wacquant, demonstra como bairros são marcados negativamente, não apenas pela pobreza, mas também pelo preconceito racial que reforça fronteiras sociais invisíveis. Essa territorialização da discriminação afeta o acesso a recursos, oportunidades de emprego e habitação digna, criando barreiras estruturais difíceis de transpor.

A política de "lei e ordem", amplamente adotada por ambos os partidos políticos, reforça a criminalização das populações negras, intensificando a vigilância e punição desproporcional contra essas comunidades. Dados mostram que juízes indicados por autoridades republicanas tendem a aplicar sentenças mais severas a réus negros em comparação com seus pares brancos, evidenciando a racialização do sistema penal. A superpopulação carcerária negra é uma consequência direta dessas políticas, cujas raízes estão vinculadas a um histórico de desigualdade e controle social.

O declínio urbano, então, serve como um capital social conservador, unindo setores da sociedade em torno da defesa de uma ordem social excludente. Esse fenômeno é reforçado pelo deslocamento do “Overton window”, a faixa de políticas aceitáveis na esfera pública, que nas últimas décadas foi puxada para a direita por think tanks conservadores, legitimando medidas punitivas e a austeridade urbana. A construção de uma narrativa que associa o caos urbano à presença negra legitima a ação governamental repressiva e a desmobilização das reivindicações por justiça social.

Além das consequências políticas e criminais, a discriminação racial se expressa no mercado imobiliário e no emprego. Estudos mostram que a cor da pele ainda determina a acessibilidade a moradia de qualidade e oportunidades laborais, perpetuando desigualdades econômicas. Esse ciclo de exclusão econômica reforça a segregação residencial e dificulta a ascensão social das populações negras, consolidando bolsões de pobreza e vulnerabilidade.

Compreender essas interconexões é fundamental para decifrar como o racismo estrutural se mantém e se adapta a novos contextos, utilizando o declínio urbano como instrumento para reforçar políticas conservadoras e práticas excludentes. O controle social e a marginalização não são meras consequências do declínio econômico, mas estratégias políticas que visam preservar estruturas de poder historicamente desiguais.

A análise do sistema de justiça criminal, da segregação territorial e das políticas urbanas deve, portanto, ser feita de forma integrada para compreender a reprodução das desigualdades. O leitor deve perceber que as dinâmicas expostas vão além de simples conflitos locais; são manifes