A anestesia em pacientes com regurgitação tricúspide (TR) representa um desafio significativo, especialmente em procedimentos cirúrgicos delicados, como a valvoplastia. O manejo adequado deve focar em uma série de considerações fisiológicas, devido à complexa interação entre a função cardíaca direita, a resistência pulmonar e a hemodinâmica do paciente. Durante a indução anestésica e a preparação para a cirurgia, a principal preocupação é garantir a manutenção do débito cardíaco adequado e a redução da sobrecarga do ventrículo direito, evitando complicações como falência do coração direito pós-operatória.

O monitoramento contínuo é essencial. Após a indução anestésica, cateterização arterial e venosa central é realizada sob orientação ultrassonográfica para o acompanhamento da pressão arterial invasiva (ABP) e da pressão venosa central (CVP). Isso permite ajustes imediatos durante a cirurgia, ajudando a manter a estabilidade hemodinâmica. No caso de uma criança com TR significativa, a cirurgia geralmente é realizada sob circulação extracorpórea (CPB), o que exige uma atenção especial ao controle das variáveis ventilatórias e hemodinâmicas.

Durante a cirurgia, a pressão arterial deve ser cuidadosamente mantida entre 80–100/50–60 mmHg, a frequência cardíaca entre 140 e 160 batimentos por minuto, e a CVP deve ser controlada para evitar qualquer sobrecarga no ventrículo direito. A monitoração transesofágica também pode ser útil para avaliar a função da válvula tricúspide e detectar qualquer regurgitação residual que possa impactar a hemodinâmica do paciente.

Quando a cirurgia é realizada sob suporte de CPB, a redução gradual do fluxo é fundamental para preparar o paciente para o desmame da máquina de circulação extracorpórea. Durante esse processo, é comum observar uma queda na pressão arterial e um aumento na CVP, sinais claros de falência do coração direito, que exigem o uso de drogas inotrópicas como dopamina para estabilizar a função ventricular direita. Nesses momentos, a ventilação com parâmetros ajustados para reduzir a resistência pulmonar pode facilitar o retorno venoso e reduzir a sobrecarga do ventrículo direito.

Outro ponto crítico no manejo anestésico é o uso de anestésicos que não aumentem a resistência vascular pulmonar ou reduzam ainda mais o pré-carga do ventrículo direito. Por exemplo, o propofol, embora eficaz em muitas situações, pode induzir vasodilatação significativa, o que pode ser prejudicial para pacientes com regurgitação tricúspide grave. Portanto, a administração de propofol deve ser cuidadosamente controlada para evitar uma queda excessiva da pressão arterial ou comprometimento do retorno venoso.

Além disso, a ventilação em hiperpressão leve, que é utilizada em algumas situações, pode ser benéfica para reduzir a resistência pulmonar e melhorar a perfusão sistêmica. O controle dos gases sanguíneos também é vital, com a manutenção de um PaCO2 entre 30 e 35 mmHg, PaO2 acima de 60 mmHg e pH entre 7.50 e 7.60, para otimizar a função cardíaca direita.

A avaliação pré-operatória é outro aspecto crucial. O anestesiologista deve estar atento aos sinais de insuficiência cardíaca direita, que podem incluir distensão das veias jugulares, ascite, hepatomegalia e edema nos membros inferiores. A ecocardiografia permite uma visualização direta da válvula tricúspide, fornecendo informações valiosas sobre sua morfologia e função. Caso o paciente apresente sintomas de falência do coração direito antes da cirurgia, o anestesiologista deve se preparar para um manejo intensivo pós-operatório, com suporte hemodinâmico agressivo.

Por fim, a pós-operatório imediato, com vigilância intensiva, é necessário para garantir a estabilidade do paciente. Após a remoção do tubo traqueal e a transição para ventilação espontânea, o acompanhamento rigoroso das condições hemodinâmicas e respiratórias continua sendo crucial. A recuperação completa do paciente dependerá de uma resposta adequada à correção da TR, mas também da estabilização das condições do ventrículo direito, frequentemente com a necessidade de suporte farmacológico contínuo.

É fundamental que o anestesiologista tenha um profundo entendimento das condições clínicas associadas à TR e que cada decisão seja baseada em uma avaliação precisa da situação hemodinâmica do paciente. O manejo cuidadoso da anestesia pode significar a diferença entre uma recuperação bem-sucedida e complicações pós-operatórias graves, como insuficiência cardíaca direita aguda.

Como garantir a segurança anestésica em lactentes com anomalias vasculares raras e estenose traqueal?

A complexidade do manejo anestésico em lactentes com anomalias congênitas vasculares e malformações traqueais impõe um alto grau de exigência clínica e técnica. No caso de crianças com pulmonary artery sling (PAS) associado à estenose traqueal e defeito do septo ventricular (VSD), a compressão extrínseca das vias aéreas e a obstrução traqueal representam desafios críticos que permeiam todas as fases do atendimento – da indução anestésica à extubação no pós-operatório.

O pulmonary artery sling é uma rara malformação vascular congênita, com incidência inferior a 1:10.000 nascimentos, caracterizada por um trajeto anômalo da artéria pulmonar esquerda, que se origina da artéria pulmonar direita, passa por trás da traqueia e em frente ao esôfago até alcançar o hilo pulmonar esquerdo. Esse trajeto forma um "anel vascular" que comprime a traqueia, frequentemente agravado por estenose traqueal congênita. A presença de outras malformações cardíacas associadas, como VSD, CIA, PCA ou veia cava superior esquerda persistente, é comum, e muitas vezes dificulta ainda mais o planejamento terapêutico.

Em tais pacientes, a escolha do tubo endotraqueal deve considerar criteriosamente o grau e a localização da estenose. A identificação precisa do ponto de compressão pode ser realizada com broncoscopia pré-operatória, mas, na ausência deste exame, sinais clínicos como sons respiratórios assimétricos após a indução podem sugerir uma intubação seletiva inadvertida. Nestes casos, a simetria dos ruídos respiratórios em ambos os hemitórax, com o tubo posicionado próximo à carina, deve ser considerada indicativa de uma posição ideal, sendo recomendável fixá-lo nessa profundidade.

A posição lateral frequentemente adotada durante a correção cirúrgica em crianças com anéis vasculares exige atenção redobrada, pois a mudança de decúbito pode provocar migração do tubo e ventilação unipulmonar acidental. Quando essa situação ocorre, desde que a oxigenação se mantenha dentro de parâmetros aceitáveis, a conduta imediata pode ser conservadora, deixando o reposicionamento do tubo para o fim da cirurgia.

A indução anestésica requer agentes de ação rápida, com mínima depressão cardiovascular. O uso de etomidato, midazolam, sufentanil e rocurônio mostrou-se eficaz nesse contexto, seguido da ventilação mecânica em modo pressão controlada com fração inspirada de oxigênio ajustada a 50% e parâmetros ventilatórios personalizados. A hipoventilação inicial após a intubação, com elevação significativa do ETCO₂, demanda ajustes imediatos na pressão inspiratória de pico (PIP) e na frequência respiratória, evitando hipercapnia prolongada.

A monitorização invasiva deve ser instituída precocemente: pressão arterial, pressão venosa central, índice bispectral (BIS) e oximetria cerebral (rSO₂) são indispensáveis para detectar precocemente alterações hemodinâmicas ou eventos adversos neurológicos. A manutenção anestésica combinando propofol, sufentanil e rocurônio em infusão contínua, com sevoflurano ajustado a 0,5–1,0 MAC, assegura estabilidade durante procedimentos prolongados e invasivos.

A escolha entre anestesia geral isolada ou combinada com bloqueios regionais é relevante. Embora a anestesia geral associada à epidural seja uma prática comum, o bloqueio paravertebral com ropivacaína tem se mostrado uma alternativa vantajosa, com eficácia analgésica semelhante e menor risco de complicações neurológicas, sendo particularmente útil em pacientes pediátricos submetidos a toracotomia.

Outro aspecto crítico é a compressão das vias aéreas superiores, muitas vezes agravada pela manipulação intraoperatória e pela posição do paciente. A avaliação pré-operatória detalhada da anatomia das vias aéreas, por meio de tomografia computadorizada de alta resolução, é indispensável para o planejamento da estratégia anestésica e cirúrgica, permitindo antecipar desafios e evitar complicações fatais, como hipóxia ou colapso traqueal.

A via aérea continua sendo o ponto nevrálgico da condução anestésica em crianças com PAS. A vigilância constante da profundidade do tubo, a capacidade de resposta ventilatória à manipulação cirúrgica e a prontidão para intervenções imediatas, como reposicionamento do tubo ou mudança no modo ventilatório, são essenciais para a segurança do paciente.

Além da técnica anestésica, a colaboração estreita entre anestesistas e cirurgiões é imprescindível, especialmente durante testes de oclusão intraoperatórios, fundamentais para avaliar a viabilidade da reconstrução e prever possíveis comprometimentos hemodinâmicos.

É essencial compreender que a correção simultânea das malformações cardíacas e traqueais não aumenta o risco cirúrgico, desde que o manejo anestésico seja meticuloso e individualizado. Pelo contrário, essa abordagem integrada pode promover uma recuperação mais rápida e eficiente, reduzindo o risco de reoperações e de complicações respiratórias tardias.

Importa também considerar que, mesmo com adequada ventilação e estabilidade intraoperatória, o pós-operatório exige vigilância contínua em unidade de terapia intensiva, com monitoramento de parâmetros respiratórios, hemodinâmicos e neurológicos, garantindo que a reconstrução traqueal e a correção cardiovascular tenham os efeitos desejados sem eventos adversos secundários.

Como se organiza o coração durante o desenvolvimento embrionário?

Durante o desenvolvimento embrionário, o tubo cardíaco primitivo sofre uma série de transformações morfológicas que determinam a futura anatomia funcional do coração. A curvatura inicial do tubo para a direita — processo denominado looping — marca o início da formação dos compartimentos cardíacos. Com a adição contínua de tecido nos polos venoso e arterial, o tubo se dobra, posicionando o ventrículo esquerdo anteriormente e inferiormente ao átrio, enquanto o ventrículo direito se projeta levemente à direita do ventrículo esquerdo.

Ao longo deste processo, desenvolvem-se áreas de condução elétrica diferenciadas. As regiões de condução rápida, como os ventrículos, são responsáveis por contrações vigorosas e breves; já as regiões de condução lenta, como a conexão atrioventricular e a via de saída, exibem contrações mais lentas e sustentadas. Essa diferença mecânica é essencial para coordenar o ciclo cardíaco: a contração inicial dos átrios é seguida por um fechamento tipo esfíncter da junção atrioventricular — ainda antes da maturação da válvula atrioventricular — evitando o refluxo sanguíneo durante a ejeção ventricular. Similarmente, a contração final tipo esfíncter do trato de saída — antes da formação completa das válvulas semilunares — previne o retorno do sangue proveniente do arco aórtico.

Internamente, a superfície do coração revela dobras que formam cristas musculares, como a crista infundibular ventricular, situada entre a conexão atrioventricular e o trato de saída. Nessa arquitetura se destacam os coxins endocárdicos, estruturas primordiais para a separação das câmaras cardíacas. Os dois coxins principais da junção atrioventricular e os coxins do trato de saída configuram um complexo espiralado que se estende do tronco arterial até o corpo do ventrículo direito.

A fusão desses coxins ocorre em sincronia com o fechamento do forame interventricular primitivo e culmina na formação do septo ventricular contínuo, integrando o septo do cone cardíaco. A septação ventricular, portanto, não é um evento abrupto, mas um processo contínuo envolvendo elementos musculares e intersticiais.

A diferenciação molecular entre o átrio esquerdo e o átrio direito surge precocemente, regulada por mecanismos de sinalização esquerda-direita. Essa assimetria é crucial, pois alterações nesse eixo — como demonstrado em modelos murinos — elevam significativamente a incidência de transposição das grandes artérias, indicando que a sinalização esquerda-direita é determinante para a correta formação do trato de saída.

A origem dos coxins endocárdicos está relacionada à gelatina cardíaca, uma matriz acelular entre o miocárdio e o endocárdio. Essa gelatina é invadida por células endocárdicas que se transformam em células intersticiais com características fibroblásticas, um processo conhecido como transformação endotelial-mesenquimal. Essa transformação ocorre exclusivamente nos coxins endocárdicos atrioventriculares e do trato de saída, sendo induzida apenas por regiões específicas do miocárdio adjacente. A substituição subsequente desse tecido intersticial por miocárdio é o que caracteriza a miocardialização, formando septos musculares como o septo do cone e parte do septo interventricular.

No entanto, nem todos os septos são miocárdicos. O septo membranoso atrioventricular é o único componente septal que se origina puramente dos coxins endocárdicos, mantendo uma estrutura não muscular.

A septação atrial e a conexão das veias pulmonares ao átrio esquerdo são eventos interdependentes. A protrusão mesenquimal dorsal, derivada da segunda região cardiogênica, penetra na cavidade atrial a partir da junção entre o mesocárdio dorsal e o átrio, estabelecendo continuidade com o capuz intersticial da borda anterior do septo primário. A fusão dessa protrusão com os coxins endocárdicos atrioventriculares e o capuz intersticial resulta na formação do complexo intersticial atrioventricular.

O desenvolvimento cardíaco normal depende de uma sequência precisa e coordenada de eventos morfogenéticos e moleculares. Qualquer desvio, mesmo sutil, pode resultar em malformações congênitas complexas, como a transposição das grandes artérias, tronco arterial persistente ou tetralogias diversas.

É importante compreender que os septos cardíacos — sejam atriais, ventriculares ou do cone — derivam de estruturas inicialmente não musculares, formadas por coxins endocárdicos que sofrem invasão celular, fusão e, em parte, substituição por miocárdio. Esse entendimento permite não apenas reconhecer as etapas do desenvolvimento cardíaco, mas também localizar com precisão as possíveis origens das cardiopatias congênitas.