Nietzsche, confrontado com o temor profundo de que nada fosse real, mergulhou na busca desesperada por uma realidade que lhe escapava. Sua imersão na tragédia antiga não representava apenas um exercício acadêmico, mas uma tentativa de reencontrar algo palpável e vivo em meio à efemeridade do existir. Contudo, como revelam suas cartas, não encontrou na história esse substituto para a realidade vivida; e, de fato, quem poderia encontrá-la ali? Essa noção de “realidade perdida” sintetiza a tragédia pessoal de Nietzsche, cuja resposta foi retirar-se para as montanhas com Zarathustra, refletindo sobre o futuro, buscando nele a verdade que o presente e o passado não lhe ofereciam.

Porém, esse futuro, tão aguardado e prometido pelo conceito do super-homem, já havia sido criado uma vez, na antiguidade, como uma explosão do poder excessivo, uma manifestação de força vital e euforia pela vida. Assim, não haveria nada essencialmente novo a esperar. O que Nietzsche fez foi transferir para o futuro aquilo que mais lhe agradava na antiguidade – a existência embriagada, a celebração triunfante da primavera e do sábado, símbolos de uma vida plena e intensa. Essa transferência revela uma tensão entre o desejo de inovação e a repetição inevitável dos ciclos humanos.

Na juventude, Nietzsche via na cultura helenística um ideal em que a genialidade e a arte eram os objetivos supremos, e, por isso, considerava necessários todos os seus mecanismos, inclusive a escravidão. Inicialmente horrorizado por essa crueldade, com o tempo aceitou-a com frieza e precisão como parte da construção de uma sociedade aristocrática e militar. Essa mudança é sintomática da desconexão gradual com a realidade, um fenômeno que leva inevitavelmente à utopia reacionária – a tentativa desesperada de controlar um mundo onde já não se reconhecem figuras grandiosas nem paixões intensas. É desse vazio que nasce um dos desejos mais sombrios: o de degradar o homem.

Esse processo, curioso em sua evolução, começa com o anseio pelo trágico e pelo sublime, passa pela perda do contato com a realidade, e pela tentativa de resgatá-la na história e no futuro. Logo, abrem-se as portas para a restrição dos valores éticos, como a compaixão, a piedade e a bondade, que culminam no desejo de humilhar a humanidade e, por fim, na loucura. O espírito europeu de Nietzsche, rejeitando ídolos antigos e ideais consagrados, é um produto singular de um momento de crise profunda, representando a culminância filosófica da maior tragédia do continente: a perda da humanidade.

Nietzsche lançou o humanismo renascentista em um abismo, e seu apelo desesperado por uma nova barbárie ressoa até os dias atuais. No fim do século XIX, a literatura europeia já expressava um cansaço do homem, manifestado de forma irônica e romântica, como nos trabalhos de Wilde, Hamsun, Ibsen e do próprio Nietzsche. A antiga idolatria ao homem transforma-se em seu abandono, talvez como parte da “astúcia” da Razão Universal hegeliana, que exige uma grande civilização tecnológica onde o culto ao homem não tem lugar. A cultura burguesa europeia nunca aceitou o culto ao homem como fim em si mesmo – só uma sociedade comunista poderia conferir ao homem toda sua humanidade.

Mesmo no auge do humanismo burguês, os julgamentos de valor eram utilitaristas e alinhados com interesses de poder social e econômico. O objetivo maior não era o homem, mas algo além dele. Com a decadência dessa cultura, o homem passou a ser visto com ironia cortante, como um ser ultrapassado, desnecessário. No futuro imediato, a civilização tecnológica seria governada não pelo homem, mas por massas organizadas e pela tecnologia, onde o homem, degradado, serviria a uma ordem industrial ou pós-industrial que valoriza as “virtudes da máquina”.

A atual fascinação ocidental por Nietzsche, em um mundo dominado pela tecnologia e pela impotência humana diante dos males sociais, não é coincidência. Valores aristocráticos encontram eco entre tecnocratas e empresários, e a indiferença moderna em relação a valores eternos não difere substancialmente da atitude de Nietzsche, embora expressa de forma mais discreta e pragmática. Os modos aristocráticos, embora envoltos em uma aura romântica, são fundamentalmente utilitários, nascidos da consciência do privilégio e do desejo de dominação.

Nietzsche definiu a verdade pela elevação do sentimento de poder, e sob essa ótica, o mundo tecnológico atual é não apenas mais poderoso, mas mais verdadeiro para a vida do que os mundos passados. Entre os artistas que expressaram esse cansaço do homem, as trajetórias de Wilde, Hamsun e Nietzsche divergem dramaticamente. Wilde, preso e morto em solidão, entendeu tarde demais que a bondade transcende a beleza, e que a verdadeira beleza é a da bondade. Hamsun, fascista declarado, morreu sem compreender a vida profundamente. Nietzsche e Wilde, provavelmente, jamais teriam se tornado fascistas, mas todos eles encarnam essa tendência complexa que culmina no século XIX.

Nietzsche, apaixonado por Dostoiévski, parece uma criação da imaginação do romancista russo, refletindo destinos espirituais semelhantes ao de Ivan Karamazov, e compartilhando ideias já presentes nos personagens de Dostoiévski – do homem-deus à crueldade criativa. A relação dialética entre Nietzsche e o fascismo lembra a relação entre Ivan e Smerdiakov, onde a genialidade filosófica se contrapõe a uma execução servil e perversa.

A compreensão desses processos exige não apenas o reconhecimento das ideias, mas a percepção das consequências éticas e culturais que se seguiram. A perda da humanidade, a desvalorização do homem e o triunfo da tecnocracia são fenômenos interligados que moldam o nosso tempo. A reflexão profunda sobre Nietzsche e seu contexto não pode omitir a necessidade de resgatar a compaixão e a bondade, pois sem esses elementos a busca por poder e verdade se torna um ciclo vicioso de destruição e degradação.

Como Rembrandt Revela a Realidade Espiritual de Cada Pessoa em Seus Retratos

Naqueles dias em que me encontrava no museu, uma sensação peculiar me tomava a cada nova manhã. A cadeira, posicionada exatamente onde eu a deixara na véspera, aguardava-me silenciosa, como se soubesse que eu retornaria àquela sala para buscar não só as obras de arte, mas também algo mais profundo. Era mais do que um simples lugar para sentar. Era um ponto de encontro com algo além da superfície das pinturas que eu estudava, algo que ficava mais evidente a cada nova obra observada. Foi quando me vi diante de um dos maiores mistérios de Rembrandt – como ele conseguia capturar, em seus retratos, tanto a individualidade de uma pessoa quanto a universalidade da experiência humana.

O “Retrato de um Judeu Velho”, em particular, mexia comigo. Eu sempre o achava desconcertante, carregado de uma expressão que misturava sofrimento e sabedoria. Mas naquele dia, ao me aproximar da tela, percebi que algo estava errado. A pintura não estava lá. Em seu lugar, havia apenas um pedaço de papel, coberto por palavras escritas com tinta roxa, explicando que a obra estava em restauração. Confesso que me senti absurdamente tolo ao perceber que esquecera de algo tão simples – uma pintura, afinal, não é um monumento imutável. Ela pode ser retirada para reparos ou ser enviada a outra exposição. A percepção dessa transitoriedade me despertou de um tipo de hipnose em que eu me colocara diante das obras.

A mulher que estava encarregada da guarda das pinturas, uma senhora de mais de sessenta anos, observava o meu desconcerto. Ela parecia saber mais sobre os quadros e a rotina do museu do que qualquer um. Sorriu com uma leveza desarmante e me explicou com a calma de quem viveu muitas histórias: “Eles trarão a pintura de volta em alguns dias. Às vezes, elas ficam fora por semanas... e, no fim, muda até o nome. Como aquele quadro, ‘Aman’, que agora é chamado de ‘David e Uriah’.” Ela me falava com uma naturalidade que era tanto reveladora quanto encantadora. Mas, o mais fascinante não era a troca de nomes, mas sim a maneira como ela absorvia e repetia a vida das obras, como se cada nome, cada gesto, fosse um eco de algo maior e mais antigo.

Quando me perguntou se eu não esperaria mais um pouco pela pintura, sugerindo que ela poderia voltar em breve, algo em sua fala me atingiu. Eu estava ali, diante de uma mulher que, apesar de sua idade e de seu trabalho repetitivo, carregava em seu olhar um conhecimento silencioso daquilo que os outros nem percebiam. Ela estava ali não apenas como guardiã de quadros, mas como testemunha de muitas vidas – passadas e presentes. Ela mesma parecia uma das figuras que Rembrandt pintava: pessoas comuns, com rostos marcados pela vida, pela luta, pela esperança e, também, pela resignação. O modo como ela falava, como sorria e, no final, se afastava para continuar seu trabalho, era uma representação perfeita daquilo que Rembrandt capturava em seus retratos.

É curioso como, ao olhar a vida da mulher que eu acabara de conhecer, eu me lembrei de Rembrandt. A maneira como ele representava pessoas comuns, como lavradores, pescadores, artesãos, refletia a profunda dignidade que ele via em todos, sem exceção. Até mesmo os mendigos de Amsterdã eram retratados com uma nobreza que só o grande mestre poderia conferir. Eles não eram apenas personagens de uma pintura qualquer, mas almas em uma jornada, com suas próprias histórias, seus próprios dilemas espirituais. No momento em que a mulher se afastou para voltar ao seu posto, eu senti que ela, assim como os personagens de Rembrandt, havia se tornado, por um breve instante, o retrato de toda a humanidade.

À medida que a tarde se passava e eu me perdia em pensamentos sobre Rembrandt e sobre a mulher, percebi algo fundamental: o maior desafio do artista não é apenas captar a aparência exterior das pessoas, mas sim transmitir a complexidade de sua alma. Rembrandt fazia isso de maneira magistral. Ele não via o retratado apenas como uma pessoa isolada; ele via a totalidade do ser humano, com todas as suas contradições, fragilidades e grandezas. E, por mais que eu me convencesse de que nada era mais importante do que aquele momento de contemplação, logo compreendi que o verdadeiro desafio estava em ver o ser humano com o mesmo olhar profundo que Rembrandt tinha, não apenas nas grandes figuras históricas, mas também nos indivíduos comuns que, por um breve momento, se tornavam eternos.

Enquanto eu me afastava da pintura e da mulher, me dei conta de algo mais: a verdadeira essência de um retrato não está apenas na obra em si, mas na capacidade do observador de ver além da superfície, de reconhecer o que há de mais profundo em cada ser humano. Isso é o que Rembrandt ensinou através de sua arte: que toda pessoa, não importa sua condição ou contexto, carrega consigo um universo de significados e histórias. E é justamente isso que torna a arte de Rembrandt eterna e universal.