Nos Estados Unidos, diversas legislações estaduais autorizam a criminalização de comportamentos de pessoas grávidas sob o argumento da proteção do feto. Essas leis enquadram certas condutas médicas como potenciais crimes, sobretudo quando envolvem o uso de substâncias psicoativas durante a gestação. Contudo, tais dispositivos legais não se limitam a substâncias ilícitas: também preveem penalidades por uso de medicamentos prescritos legalmente, autoindução de aborto, não adesão a orientações médicas e até condutas associadas a transtornos mentais.

O caso de maior repercussão jurídica nessa seara foi Ferguson v. City of Charleston, julgado pela Suprema Corte dos EUA. O processo teve origem no protocolo implementado pelo Medical University of South Carolina (MUSC), que, em parceria com autoridades policiais e judiciais locais, instituiu uma política de testagem obrigatória de urina e sangue de mulheres grávidas sob suspeita de uso de drogas. Essas testagens eram realizadas sem o conhecimento ou consentimento das pacientes e os resultados eram compartilhados com as autoridades policiais, desencadeando prisões e processos criminais. A justificativa formal para esse protocolo era a "proteção da saúde da mãe e da criança". Na prática, o tratamento oferecido era quase inexistente ou inacessível; o que predominava era punição.

A política foi liderada por Shirley Brown, uma enfermeira obstétrica branca que demonstrava abertamente atitudes racistas em relação às pacientes negras. Segundo registros judiciais, Brown afirmava, por exemplo, que mulheres negras deveriam ser esterilizadas e que contraceptivos deveriam ser adicionados ao abastecimento de água em bairros negros. Dentre as trinta mulheres presas em razão desse protocolo, apenas uma era branca. A esmagadora maioria era negra, pobre e usuária do sistema público de saúde, com seguro Medicaid. Essa seletividade racial e econômica evidencia que a aplicação da política estava contaminada por preconceitos e estruturas de poder profundamente desiguais.

Durante os atendimentos médicos, muitas pacientes acreditavam que os exames realizados eram de natureza rotineira, voltados ao cuidado da gestação. Entretanto, essas coletas serviam como fonte de prova criminal contra elas. Em um dos casos, uma mulher relatou ter sido enganada por uma enfermeira, que afirmou que ela estava desidratada e precisava de fluidos intravenosos. Conduzida a outra ala do hospital, foi instruída a ingerir água continuamente, sem nunca receber a prometida medicação. Por fim, foi-lhe entregue um recipiente para coleta de urina, com a alegação de que o exame era necessário. O verdadeiro objetivo era obter amostra para testagem toxicológica, sem que houvesse consentimento informado.

A Suprema Corte decidiu que tais exames constituíam buscas ilegais, violando a Quarta Emenda da Constituição dos EUA, que garante o direito à privacidade e à proteção contra buscas e apreensões arbitrárias. O tribunal afirmou que, embora houvesse um interesse legítimo em proteger o feto, isso não poderia justificar a realização de testes invasivos sem autorização judicial ou consentimento da paciente. A corte concluiu que os exames realizados com objetivo de coleta de prova para fins penais, em um hospital público, configuravam violação clara dos direitos constitucionais.

Entretanto, a decisão da Suprema Corte evitou enfrentar diretamente a questão fundamental: é legítimo responsabilizar criminalmente pessoas grávidas por ações que possam afetar o feto? A omissão desse ponto central manteve aberta a porta para interpretações legais que continuam a permitir, em vários estados, a vigilância e punição de gestantes, sob pretexto de proteção da vida pré-natal.

A estrutura desse caso revela a maneira como políticas de saúde pública podem ser cooptadas por sistemas de justiça criminal, servindo a lógicas punitivistas e racializadas. A ausência de suporte real para tratamento de dependência química, somada ao uso do aparato policial contra mulheres em situação de vulnerabilidade, expõe uma política que, sob a aparência de proteção, inflige sofrimento, estigmatização e violência institucional.

É necessário compreender que o modelo baseado em punição e controle coercitivo sobre corpos gestantes não apenas viola direitos individuais, mas também compromete o próprio objetivo declarado de proteção à saúde. O medo da prisão afasta mulheres dos serviços de saúde, reduzindo o acesso ao pré-natal, ao apoio psicossocial e à orientação médica qualificada. A criminalização não cura dependência química nem resolve desigualdades raciais e sociais profundamente enraizadas.

A análise desse caso também demanda reflexão sobre o papel das instituições médicas quando se aliam ao sistema penal. O uso de exames clínicos como ferramenta de delação transforma o cuidado em ameaça, minando a relação entre paciente e profissional de saúde. Quando a medicina abdica da ética do cuidado e da confidencialidade, torna-se cúmplice da exclusão e da opressão.

Importa considerar, ainda, que a ideia de “proteger o feto” frequentemente serve de justificativa para suspender direitos fundamentais da gestante. Essa narrativa tem implicações profundas para a autonomia reprodutiva, pois transforma a gravidez em um estado de exceção jurídica, no qual a pessoa grávida é tratada não como sujeito de direitos, mas como mero meio de gestação de uma nova vida. A centralidade da proteção fetal, quando colocada acima da dignidade da mulher, produz uma lógica perigosa, que autoriza o Estado a controlar, punir e submeter corpos gestantes sob a aparência de cuidado.

Como as Leis de Esterilização Forçada Refletiram a Ideologia Eugenista e o Controle Social nos EUA

Em 1916, enquanto George trabalhava longe de casa, a sua família sofreu uma intervenção violenta e inesperada. Um estranho, possivelmente agente disfarçado, apareceu na casa dos Mallory para alugar um quarto, mas logo após sua entrada, a polícia também chegou, acusando Carrie Mallory e suas filhas de operarem um bordel. Carrie, junto com Jessie e Nannie, foram detidas e enviadas para a State Colony for Epileptics and Feeble-Minded, uma instituição estatal para pessoas consideradas deficientes mentais. Jessie e Willie foram submetidas à esterilização compulsória, uma prática legalizada e institucionalizada na Virgínia na época. A legislação vigente permitia a esterilização de indivíduos considerados “defeituosos”, uma categorização que incluía doenças mentais hereditárias, epilepsia e deficiência intelectual, com o intuito declarado de proteger o interesse público e a saúde do Estado.

George Mallory tentou resistir, ameaçando processos judiciais e exigindo a liberação de sua família, mas apenas algumas foram libertadas; Nannie permaneceu sob custódia. A luta de George, embora infrutífera em termos legais, destacou a vulnerabilidade daqueles considerados “indesejáveis” e a força crescente do movimento eugenista. Harry Laughlin, uma figura central nesse movimento, elaborou legislação modelo que inspirou as leis de esterilização em vários estados, inclusive a da Virgínia de 1924. Esta lei, fundamentada em argumentos científicos e sociais da época, autorizava a esterilização de indivíduos rotulados como “socialmente inadequados” sob supervisão rigorosa, mas sem garantias reais de defesa ou autonomia para os afetados.

Carrie Mallory, cuja história se tornou emblemática, deu à luz Vivian na instituição pouco depois da aprovação da lei, e teve sua filha retirada para adoção, nunca mais a vendo novamente. A designação de Carrie como elegível para esterilização resultou em sua castração forçada, uma medida irreversible que simbolizava a extensão do controle estatal sobre o corpo e a reprodução. Sua defesa legal foi falha, pois o advogado nomeado não atuou verdadeiramente em seu interesse, estando alinhado com os líderes eugenistas. Em 1927, o caso de Carrie chegou à Suprema Corte dos EUA em Buck v. Bell, onde a decisão majoritária legitimou a esterilização compulsória como um exercício constitucional do poder estatal, reforçando a narrativa de que pessoas consideradas mentalmente e socialmente inferiores representavam uma ameaça à segurança e à prosperidade nacional.

O julgamento, liderado pelo juiz Oliver Wendell Holmes Jr., ecoou a mentalidade da época, afirmando que “três gerações de imbecis são suficientes” para justificar a intervenção estatal no direito reprodutivo. O tribunal tratou a esterilização como medida preventiva para evitar que pessoas tidas como “inaptas” propagassem seus genes e se tornassem um ônus econômico para a sociedade. Esse entendimento refletia não apenas preconceitos científicos e sociais, mas também uma visão autoritária do papel do Estado na regulação das vidas privadas, especialmente das populações marginalizadas, incluindo mulheres jovens, imigrantes e pessoas com deficiência.

O movimento eugenista, que defendia tais políticas, baseava-se numa pseudociência que misturava genética com juízos de valor moral e social, legitimando práticas cruéis sob a justificativa de “melhorar” a raça e a sociedade. As consequências humanas foram profundas, envolvendo violações dos direitos individuais, esterilizações forçadas, separação familiar e estigmatização social. Além disso, as políticas eugenistas se entrelaçaram com outras legislações restritivas, como as leis de imigração de 1924, que objetivavam controlar a composição racial e social da população americana.

Importa compreender que essas práticas não ocorreram em um vácuo histórico, mas foram parte de um projeto amplo de controle social que buscava moldar a sociedade conforme interesses hegemônicos, justificando a exclusão e a opressão sob o pretexto da ciência e do progresso. O reconhecimento dessa história exige uma reflexão crítica sobre os limites éticos do poder estatal, a importância dos direitos reprodutivos e o impacto das ideologias que naturalizam a desigualdade e a discriminação. A memória desse capítulo doloroso é essencial para que mecanismos legais e sociais sejam estabelecidos de forma a proteger a dignidade humana e prevenir o retorno de tais abusos sob novas formas.

Como as Leis de Proteção Fetal se Tornaram Instrumento de Controle Punitivo sobre Mulheres

As leis de “proteção fetal”, originalmente criadas com a intenção de resguardar o bem-estar de fetos durante a gestação, tornaram-se mecanismos de punição, vigilância e controle do comportamento das mulheres grávidas — especialmente daquelas em situação de vulnerabilidade social, racial e econômica. O discurso dominante, travestido de proteção à vida, foi sendo lentamente reformulado para justificar políticas repressivas que, ao invés de garantir direitos reprodutivos e acesso à saúde, criminalizam escolhas, doenças, condições médicas e comportamentos atribuídos às gestantes.

Nos Estados Unidos, esse fenômeno se intensificou a partir da década de 1990, impulsionado por uma combinação de histeria moral, retrocesso legislativo e retórica conservadora. O pânico social em torno do chamado “crack baby”, por exemplo, estabeleceu a figura da mulher grávida usuária de substâncias como inimiga pública. A ciência, posteriormente, desmentiu as premissas sobre os efeitos irreversíveis e catastróficos do uso de crack durante a gestação, mas o estigma permanece como um resíduo ideológico. O que se perpetua não é o cuidado, mas a punição.

Mulheres negras e pobres são as principais atingidas por essa lógica. A seletividade racial e de classe está na raiz da aplicação das leis penais nesses contextos. Enquanto mulheres brancas e de classes médias ou altas geralmente são tratadas no sistema de saúde, aquelas marginalizadas são levadas ao sistema penal. O uso de substâncias, por exemplo, é patologizado entre algumas e criminalizado entre outras. A maternidade, nesse cenário, deixa de ser um espaço de autonomia e torna-se um campo de disciplina social.

Ao invés de investir em políticas públicas de saúde perinatal, apoio psicossocial e acesso a tratamentos voluntários, o Estado adota o encarceramento como forma de “tratamento compulsório”. A lógica carcerária substitui a lógica do cuidado. Em nome da proteção do feto, as mulheres são algemadas durante o parto, mantidas presas em unidades sem condições básicas, privadas de atendimento médico adequado e separadas de seus filhos recém-nascidos.

A própria noção de “proteção fetal” tornou-se um campo discursivo onde se negocia a cidadania reprodutiva. O feto é elevado à condição de sujeito de direitos em detrimento da mulher que o gesta, desumanizando-a, retirando-lhe agência sobre seu corpo, sua saúde e sua maternidade. O paradoxo é evidente: protege-se a vida em potencial, mas viola-se a vida concreta e presente.

Há também um elemento simbólico que reforça a construção da “mãe perfeita” — uma figura quase mitológica, idealizada como totalmente altruísta, abstinente, obediente às normas biomédicas e morais. Essa imagem, por sua vez, se volta contra qualquer mulher que fuja desse modelo: mulheres com transtornos mentais, mulheres vítimas de violência, adolescentes, migrantes, dependentes químicas. A maternidade, neste contexto, deixa de ser um direito e passa a ser uma prova de conduta.

É fundamental entender que essas legislações não nascem do cuidado, mas do medo. Do medo da mulher livre, do corpo fora de controle, da sexualidade desvinculada da reprodução normativa. O “pânico fetal” é, portanto, uma estratégia política de reafirmação do controle patriarcal sobre os corpos femininos, usando o direito penal como ferramenta de regulação moral.

Além disso, esse aparato legal se articula com práticas médico-institucionais que muitas vezes reproduzem as mesmas lógicas punitivas. Intervenções forçadas, exames compulsórios, internações não consentidas — tudo isso compõe um sistema de biopoder que transforma a gestação em um processo vigiado, normatizado e instrumentalizado por interesses que não são os da gestante.

O que está em jogo é mais do que o destino de um feto ou de uma mãe em particular. É o lugar político que a sociedade atribui às mulheres enquanto sujeitos de direitos plenos. É a definição do que significa justiça reprodutiva num