O deslocamento ideológico que permitiu a consolidação do neoliberalismo na política americana não surgiu apenas das ideias acadêmicas e econômicas marginalizadas que floresceram nos anos 1970, mas teve raízes profundas no conservadorismo clássico anterior ao New Deal. Desde Herbert Hoover até Barry Goldwater, a crítica ao intervencionismo estatal, à ampliação do Estado de bem-estar social e à regulação econômica já compunha o núcleo da oposição republicana. Goldwater, em sua obra The Conscience of a Conservative, delineou com clareza a rejeição aos programas sociais e a defesa de uma governança limitada, antecipando as políticas que se tornariam mainstream nas décadas seguintes. Contudo, a simples propagação dessas ideias neoliberais não explica por si só o sucesso eleitoral e institucional do movimento conservador, dado que tais ideias, especialmente o austericídio, costumam ser impopulares junto ao eleitorado.

A força do movimento conservador reside, em grande medida, na capacidade de construir “capital de coesão” — um conjunto de temas, estratégias e narrativas que permitem unir diferentes facções internas, mesmo quando há divergências substantivas entre elas. Essa coesão foi promovida inicialmente por William F. Buckley nos anos 1950, que identificou a necessidade de uma frente conservadora unificada para resistir ao domínio do New Deal e suas ramificações. Para isso, os conservadores desenvolveram racionalizações distintas para uma mesma política, especialmente a desmantelamento dos programas sociais: libertários focam na redução do Estado e do déficit público, enquanto evangélicos, com uma perspectiva mais complexa, reinterpretam esse desmonte como uma forma de preservar a autonomia moral e espiritual, posicionando o Estado intervencionista como um inimigo do trabalho comunitário religioso.

Além disso, o movimento conservador conseguiu sustentar sua unidade política através da identificação e construção de inimigos comuns — inicialmente o comunismo, a União Soviética e o próprio New Deal — que serviram para mascarar as diferenças internas e fortalecer a solidariedade entre seus membros. Quando esses inimigos não são unanimemente reconhecidos, como ocorre em temas racialmente sensíveis, a coesão é mantida por meio do refinamento da comunicação política, em especial pela técnica conhecida como “dog whistle politics”. Essa forma de comunicação utiliza mensagens ambíguas ou codificadas que podem ser interpretadas de maneiras distintas por diferentes públicos, especialmente na questão racial.

No âmago desse mecanismo está a construção simbólica e política do “declínio urbano” como um espaço “patológico” associado a uma narrativa racializada. O que foi produzido como uma resposta política às transformações urbanas e sociais ocorridas no pós-guerra é, simultaneamente, um meio de aglutinar duas frações do eleitorado conservador: os “resentidos raciais”, que explicitamente veem o progresso dos afro-americanos como ameaça, e os “ansiosos raciais”, que rejeitam a ideia de racismo explícito, mas compartilham o descontentamento com o crescimento do Estado e da regulação. A representação do centro urbano decadente torna-se, assim, um código que convoca ambos os grupos, promovendo uma solidariedade política baseada em ressentimentos distintos mas convergentes.

Essa fusão do discurso sobre o espaço urbano e a política racial teve um papel crucial na realinhamento racial da política americana durante o século XX, especialmente em regiões como o Rust Belt, onde as intervenções estaduais em políticas locais e estaduais foram moldadas por essas dinâmicas simbólicas e eleitorais. As imagens construídas do centro urbano degradado não apenas comunicam animosidade racial, mas funcionam como um instrumento de mobilização política capaz de sustentar coalizões conservadoras complexas e heterogêneas, garantindo assim a continuidade e ampliação de seu poder institucional.

É essencial que o leitor compreenda que o sucesso do movimento conservador não pode ser reduzido à adesão a princípios econômicos abstratos, mas deve ser analisado como um fenômeno multifacetado que envolve estratégias de comunicação, construção de identidade coletiva e manipulação de símbolos socioculturais, sobretudo em torno da questão racial e do espaço urbano. A combinação dessas dimensões revela como a política pode operar por meio de mensagens codificadas que mobilizam distintos públicos sem o confronto direto, promovendo uma unidade política sólida apesar das contradições internas. Assim, entender o papel do “declínio urbano” e da “cidade patológica” é fundamental para decifrar as complexas alianças e estratégias do conservadorismo contemporâneo nos Estados Unidos.

Como a Desigualdade Urbana se Reflete na História Social e Econômica das Cidades Americanas?

O conceito de privação organizada tem sido um tema crucial no estudo das transformações urbanas e das desigualdades sociais nas grandes cidades do pós-Segunda Guerra Mundial. Ao considerar o contexto da desindustrialização e o enfraquecimento da economia manufatureira, observamos que a pobreza urbana não é apenas uma questão de carência econômica, mas também de marginalização social, histórica e, em muitos casos, racial. Este fenômeno não é apenas um subproduto do declínio econômico, mas uma questão intencionalmente construída por políticas públicas e práticas sociais que perpetuam a segregação e a exclusão.

A grande transformação das cidades americanas durante a segunda metade do século XX, em particular o chamado "Cinturão da Ferrugem" — regiões que foram fortemente dependentes da indústria pesada e da manufatura — trouxe consigo um paradoxo: enquanto a sociedade de consumo expandia-se para novos horizontes, milhões de cidadãos foram deixados para trás. Esta dinâmica não foi acidental, mas sim resultado de escolhas políticas e econômicas que negligenciaram, de forma estrutural, as necessidades das classes trabalhadoras e dos negros, em um país onde a segregação racial ainda fazia parte da realidade cotidiana.

O famoso Relatório Kerner de 1968, produzido após uma série de revoltas urbanas em cidades como Detroit, revela uma reflexão dolorosamente honesta sobre as causas profundas da violência social que eclodiu nos anos 1960. O relatório apontava com clareza que a atitude racial dos brancos em relação aos negros era uma das principais razões para o aumento da violência e da segregação nas grandes cidades. A desigualdade racial não era apenas uma questão de atitudes pessoais, mas uma característica estrutural das políticas urbanas, com os negros sendo os mais afetados pelo processo de empobrecimento e marginalização das áreas urbanas.

Além disso, as análises do Relatório Kerner sugerem que as iniciativas anteriores para resolver a pobreza urbana, como a renovação urbana e o Programa da Guerra contra a Pobreza, falharam principalmente por uma razão: a falta de recursos suficientes e de um compromisso real por parte das autoridades em tratar o problema em uma escala adequada à sua gravidade. Esse diagnóstico tem ressonâncias até hoje, pois, embora algumas políticas públicas tenham tentado mitigar as desigualdades, as soluções não foram implementadas com a profundidade necessária, o que resultou na perpetuação das disparidades sociais e raciais.

A violência que assolou essas cidades foi um reflexo direto de uma política pública de exclusão e negligência, onde as ações do governo federal e local estavam aquém das necessidades urgentes da população. Os protestos não eram apenas contra a pobreza, mas contra a injustiça que surgia da falta de uma visão integrada de igualdade e direitos. As respostas, na maioria das vezes, foram superficiais, com programas pontuais e inadequados, e, em muitos casos, uma retórica de "controle social" que apenas intensificava o sentimento de opressão.

Entretanto, a história de desindustrialização nas cidades americanas não se limita apenas à questão racial ou à pobreza. O colapso da indústria manufatureira também gerou uma reorganização espacial e econômica que resultou em uma concentração de riqueza e poder em áreas mais periféricas, enquanto o centro das cidades desmoronava. Isso criou um ciclo vicioso de declínio urbano, onde a infraestrutura deteriorada, a falta de investimentos em educação e saúde, e a violência nas ruas se tornaram as características definidoras de muitas dessas cidades.

Para entender plenamente essa questão, é preciso também olhar para as consequências a longo prazo do que podemos chamar de “austeridade espacial”. Políticas de corte orçamentário em áreas urbanas em declínio, junto com a promoção de programas de revitalização centrados no mercado, não conseguiram gerar soluções eficazes para o abandono das terras e a pobreza persistente. Em vez de combater a exclusão, essas medidas muitas vezes ampliaram as disparidades, com a gentrificação de algumas áreas e o deslocamento de moradores de classe baixa, sem garantir uma real melhoria nas condições de vida.

Além disso, o papel do contexto racial é crucial para compreender as disparidades no processo de urbanização. O tratamento desigual das comunidades negras, principalmente nas grandes cidades do Norte e do Oeste dos Estados Unidos, não era apenas uma consequência de atitudes pessoais preconceituosas, mas um reflexo de um sistema social e econômico que organizava a privação de uma maneira intencional. A falta de acesso a empregos, educação de qualidade e moradia digna nas áreas mais empobrecidas reforçava o ciclo de desigualdade.

O estudo do declínio industrial das cidades americanas não deve ser limitado ao simples diagnóstico da desindustrialização e da pobreza. Deve-se entender também como esse processo foi influenciado por políticas públicas de exclusão e como a desvalorização de certas áreas e populações serviu para consolidar uma ordem econômica e social profundamente desigual. É preciso refletir sobre como, mesmo quando as circunstâncias econômicas mudam, as estruturas de poder e as desigualdades históricas permanecem imutáveis, moldando a realidade urbana de maneira permanente.

A compreensão desses processos exige uma análise crítica do legado das políticas urbanas e de como elas moldaram, e continuam a moldar, a geografia social e econômica das cidades. O que está em jogo não é apenas a questão da pobreza, mas também a reconstrução de um sistema que permita, de forma equitativa, que todos os cidadãos tenham acesso a uma vida digna, independentemente de sua origem racial ou econômica.

Como a Mudança de Paradigma Econômico Redefiniu as Políticas Locais e Globais

No contexto das condições de mercado desregulamentado, a intensificação das penalidades para indivíduos e cidades que rejeitam as imposições políticas tornou-se uma característica proeminente das mudanças sociais e econômicas do século XX. Para compreender essa transformação, é fundamental observar não apenas as diferenças de implementação local, mas as ideias mais amplas que formaram a base das políticas adotadas. O conceito de “privilégio epistêmico”, abordado por Fred Block e Margaret Somers, explora como certas ideias, uma vez estabelecidas, acabam se tornando mais influentes do que os interesses locais ou mesmo os desejos da maioria eleitoral. Essas ideias ganham força ao permearem as estruturas de políticas em todos os níveis, definindo tanto o que é considerado politicamente aceitável quanto o que é considerado irrelevante ou irrealista no debate público.

A ideia de privilégio epistêmico tem sido amplamente utilizada para entender a transição do keynesianismo para o neoliberalismo, com o primeiro a ser progressivamente descreditado nas décadas de 1970 e 1980. David Harvey, um dos primeiros a notar essa erosão das ideias keynesianas, descreve o modelo gerencialista keynesiano como um sistema que operava não como participante direto do processo capitalista, mas como um árbitro das forças de mercado. No nível federal, isso se traduziu em regulamentações bancárias mais rigorosas, leis antimonopólio e uma série de proteções trabalhistas. No plano local, as cidades serviam como árbitros entre os interesses do desenvolvimento, em vez de competirem por investimentos. Durante esse período de prosperidade econômica, o Estado podia se permitir adotar uma postura mais intervencionista, protegendo os interesses da classe trabalhadora e mantendo uma economia robusta. No entanto, essa fase chegou ao fim com a crise dos anos 1970, que surgiu a partir de fatores como o enorme endividamento gerado pela Guerra do Vietnã, o embargo do petróleo da OPEC e a crescente competitividade de economias como a alemã e a japonesa.

Com a crise econômica, um novo paradigma emergiu, sustentado por um movimento crescente em direção ao neoliberalismo. O modelo neoliberal propôs uma mudança fundamental: ao invés de regular o capital, os governos locais passaram a ser vistos como competidores uns dos outros, com o objetivo de atrair investimentos. O modelo de governança local se transformou, passando a ser conduzido pela lógica empresarial, com a promessa de oferecer um ambiente sem regulamentações para os capitais. As forças de mercado, que antes estavam "embutidas" dentro das estruturas democráticas, passaram a ser "desembutidas", como Karl Polanyi descreve, desafiando as regulações democráticas que haviam sido estabelecidas no período anterior. A pergunta central é como e por que essa mudança tão radical ocorreu.

Há três abordagens principais para entender esse processo: estruturalismo, institucionalismo e abordagens híbridas. A perspectiva estruturalista, defendida por Harvey, argumenta que as mudanças foram motivadas pelas condições estruturais que sustentaram cada modelo econômico. Durante o pós-guerra, quando o keynesianismo prosperava, os Estados Unidos estavam em um período de rápido crescimento. O país gozava de um poder industrial quase irrestrito, enquanto a Europa e o Japão ainda estavam se reconstituindo. As cidades e os estados podiam adotar uma postura mais intervencionista, alocando recursos de maneira que favoreciam o bem-estar coletivo. Entretanto, a crise dos anos 1970 desafiou a capacidade do modelo keynesiano de lidar com as novas condições econômicas e políticas. A necessidade de austeridade se tornou evidente, e, à medida que os recursos se tornaram mais escassos, o modelo neoliberal se tornou a resposta predominante.

Os institucionalistas, por sua vez, destacam o papel das ideias e das influências de grupos poderosos que, a partir da década de 1960, começaram a promover a agenda neoliberal. Organizações como a Brookings Institution, que até então serviam para apoiar o New Deal e as políticas keynesianas, passaram a ser eclipsadas por think tanks conservadores que promoviam uma agenda de desregulação e redução do papel do Estado. O memorando de Powell de 1971, que incitava os líderes empresariais a se envolverem diretamente na política, foi um marco dessa mudança. O impacto desse movimento não foi apenas intelectual, mas também prático: a direita conservadora estabeleceu uma rede de think tanks e canais de mídia, como o Fox News, que ajudaram a promover e consolidar as ideias neoliberais, muitas vezes em detrimento de alternativas progressistas.

Por fim, a abordagem híbrida busca compreender como as condições econômicas e as instituições interagiram para produzir essa transformação. Mark Blyth argumenta que mudanças de paradigma são raras e ocorrem apenas quando duas condições se combinam: primeiro, uma crise política e econômica que o paradigma vigente não consegue resolver, e segundo, a presença de uma alternativa política suficientemente desenvolvida para responder a essa crise. No caso do keynesianismo, a crise de 1970, combinada com uma longa preparação por parte de grupos conservadores, produziu o terreno propício para a ascensão do neoliberalismo. As alternativas ao keynesianismo estavam em processo de amadurecimento há anos, e, uma vez que essas ideias foram implementadas e mostraram seus resultados, a mudança de paradigma se consolidou.

Entender esses processos não apenas nos permite contextualizar o impacto do neoliberalismo nas políticas locais e globais, mas também nos ajuda a perceber o poder das ideias na formação das políticas públicas. Mais importante ainda, devemos compreender que essas mudanças não foram apenas reações a crises econômicas, mas também foram moldadas por uma dinâmica intelectual e política, na qual as ideias sobre o papel do Estado e do mercado foram redefinidas. O que é fundamental é perceber que o que chamamos de "crise" não é algo puramente negativo ou destrutivo, mas o terreno fértil para a criação de novos modelos econômicos e sociais.