PARTE 3.
TEMA 4. Teoria protônica de ácidos e bases.
As teorias de ácidos e bases são um conjunto de conceitos físico-químicos fundamentais que descrevem a natureza e as propriedades dos ácidos e bases. Todas elas introduzem definições para ácidos e bases — duas classes de substâncias que reagem entre si. A tarefa da teoria é prever os produtos da reação entre ácido e base e a possibilidade de sua ocorrência, para o que se usam características quantitativas da força do ácido e da base. As diferenças entre as teorias estão nas definições de ácidos e bases, na caracterização de sua força e, consequentemente, nas regras para prever os produtos da reação entre eles. Todas possuem seu campo de aplicação, que se sobrepõe parcialmente.

As interações ácido-base são extremamente comuns na natureza e encontram ampla aplicação na prática científica e industrial. As concepções teóricas sobre ácidos e bases têm importância crucial na formação de todos os sistemas conceituais da química e influenciam amplamente o desenvolvimento de várias concepções teóricas em todas as principais disciplinas químicas.
Com base na teoria moderna de ácidos e bases foram desenvolvidos ramos da química como química de soluções aquosas e não aquosas de eletrólitos, pH-metria em meios não aquosos, catálise ácido-base homogênea e heterogênea, teoria das funções de acidez e muitos outros.

Evolução das concepções sobre interações ácido-base.
As concepções sobre interações ácido-base estão entre os princípios químicos fundamentais. Os conceitos de “ácido” e “base” foram formados já no século XVII, porém seu conteúdo foi várias vezes revisado e ajustado. Assim, R. Boyle considerava que os ácidos eram corpos cujos átomos possuem protuberâncias pontiagudas (e, consequentemente, sabor ácido), e as bases, poros (e sabor adstringente). Segundo ele, a reação de neutralização consistia na entrada das protuberâncias do ácido nos poros da base.
A teoria figurativa de ácidos e bases foi proposta por N. Lemery. Em seu “Curso de Química” (1675) ele tentou explicar as propriedades físicas e químicas das substâncias pela forma e estrutura. Segundo Lemery, os ácidos têm na superfície espinhos pontiagudos que provocam sensação de picada na pele. As bases, chamadas por ele de álcalis, consistem em corpos porosos. Os “espinhos” dos ácidos penetram nos “poros” e se quebram ou amolecem, transformando os ácidos em sais neutros[1].
As concepções científicas sobre a natureza de ácidos e bases começaram a se formar no final do século XVIII. Nos trabalhos de A. Lavoisier, as propriedades ácidas estavam relacionadas à presença de átomos de oxigênio na substância. De fato, os ácidos minerais e orgânicos conhecidos continham oxigênio. Essa hipótese mostrou-se rapidamente insuficiente, após os trabalhos de H. Davy e J. Gay-Lussac, que demonstraram uma série de ácidos sem oxigênio (por exemplo, haletos de hidrogênio, ácido cianídrico), enquanto muitos compostos contendo oxigênio não apresentavam propriedades ácidas.
Desde o início do século XIX, ácidos passaram a ser considerados substâncias capazes de reagir com metais liberando hidrogênio (J. Liebig, 1839). Aproximadamente nessa época, J. Berzelius propôs uma ideia explicando as propriedades ácido-base pela natureza elétrica “dualista” das substâncias. Assim, ele atribuía os óxidos eletronegativos de ametais e de alguns metais (por exemplo, cromo, manganês, etc.) aos ácidos, enquanto os óxidos eletropositivos dos metais eram considerados bases. Portanto, a acidez ou basicidade para Berzelius é uma propriedade funcional, não absoluta, do composto. Ele fez a primeira tentativa de avaliação quantitativa e previsão da força de ácidos e bases[2].
Com o surgimento da teoria da dissociação eletrolítica de S. Arrhenius (1887), tornou-se possível descrever as propriedades ácido-base com base nos produtos da ionização do eletrólito. Graças aos trabalhos de W. Ostwald, a teoria foi desenvolvida para eletrólitos fracos.
No início do século XX, os químicos americanos G. Cady, E. Franklin e C. Kraus criaram a teoria dos sistemas de solvossistemas, estendendo os princípios da teoria de Arrhenius-Ostwald para todos os solventes capazes de autodissociação.
As teorias modernas de ácidos e bases têm como base as concepções de J. Brønsted e G. Lewis. Existem tentativas bastante bem-sucedidas de criar teorias generalizadas (M. Usanovich, 1939), mas elas não são amplamente utilizadas[3].

Teoria do hidrogênio de Liebig
Definições. Ácido — substância capaz de reagir com metal liberando hidrogênio. A noção de “base” não existe nessa teoria.
Produtos da reação. Na reação do ácido com metal, formam-se sal e hidrogênio.
Exemplos. Ácido — HCl:
Reação 2HCl + Zn = ZnCl2 + H2↑
Critérios para a reação ocorrer. Metais situados na série de atividade à esquerda do hidrogênio reagem com ácidos fortes. Quanto mais fraco o ácido, mais ativo deve ser o metal para ocorrer a reação.
Características quantitativas. Como a teoria é pouco usada, características quantitativas da força do ácido (e, portanto, previsão da direção da reação) não são desenvolvidas nessa teoria.
Campo de aplicação. Previsão da interação de substâncias contendo hidrogênio com metais em quaisquer solventes.
Características específicas. Segundo esta teoria, o álcool etílico e a amônia são ácidos fracos, pois reagem com metais alcalinos:
2C2H5OH + 2Na = 2C2H5ONa + H2↑
2NH3 + 2Na = 2NaNH2 + H2↑

Teoria da dissociação eletrolítica de Arrhenius — Ostwald
Esquema da dissociação eletrolítica do ácido acético em solução aquosa
Artigo principal: Teoria da dissociação eletrolítica
Definições. Ácidos — substâncias que formam em solução aquosa cátions hidratados de hidrogênio H+ (íons hidrônio) e ânions do radical ácido.
Bases — substâncias que dissociam em solução aquosa formando cátions metálicos ou de amônio e ânions hidróxido OH−.
Sais — substâncias que dissociam formando cátions metálicos ou de amônio e ânions do radical ácido.
Produtos da reação. Na reação de ácido com base (reação de neutralização), formam-se sal e água.
Exemplos. Ácido — HCl (radical ácido Cl-):
HCl + H2O ↔ H3O+ + Cl-
Base — NaOH:
NaOH ↔ Na+ + OH-
Reação de neutralização (sal — NaCl):
HCl + NaOH = NaCl + H2O
Critérios para a reação ocorrer. Ácidos fortes reagem com bases fortes. Quanto mais fraco o ácido, mais forte deve ser a base para a reação ocorrer.
Características quantitativas. A força dos ácidos e bases é caracterizada por suas constantes de dissociação K.
Para ácido HA K = [H+]·[A-]/[HA]
Para base MeOH K = [Me+]·[OH-]/[MeOH]
Para que ocorra a reação entre ácido e base, o produto de suas constantes de dissociação deve ser maior que 10−14 (produto iônico da água).

Campo de aplicação. Descreve satisfatoriamente reações entre ácidos e bases suficientemente fortes e as propriedades de suas soluções aquosas. Com base na dissociação, foi estabelecida a divisão dos eletrólitos em fortes e fracos, introduzido o conceito de pH, cuja extensão para meios alcalinos exige suposições adicionais (introdução do produto iônico da água).
A teoria pode ser usada para descrever hidrólise de sais e reações de ácidos e bases com sais, mas requer um aparato complexo — a teoria protônica (ver abaixo) é muito mais conveniente.
A aplicabilidade da teoria de Arrhenius — Ostwald é limitada a soluções aquosas e não explica propriedades básicas de amônia, fosfina e outros compostos sem grupos hidroxila.

Teoria protônica de Brønsted — Lowry. Comparação dos modelos de interação ácido-base de Lewis e Brønsted
A teoria protolítica (protônica) de ácidos e bases foi proposta em 1923 independentemente pelo dinamarquês J. Brønsted e pelo inglês T. Lowry. Nela, os conceitos de ácidos e bases foram unificados, manifestando-se na interação ácido-base: A B + H+ (A — ácido, B — base). Segundo essa teoria, ácidos são moléculas ou íons capazes de doar prótons na reação, e bases são moléculas ou íons que aceitam prótons. Ácidos e bases receberam o nome comum de protólitos.
A essência da interação ácido-base é a transferência do próton do ácido para a base. Ao doar o próton, o ácido torna-se base, pois pode novamente aceitar próton, e a base, ao formar a espécie protonada, torna-se ácido. Assim, em qualquer interação ácido-base participam dois pares de ácidos e bases, chamados pares conjugados de Brønsted: A1 + B2 A2 + B1.
A mesma substância pode atuar como ácido ou base dependendo das condições (anfoterismo). Por exemplo, a água com ácidos fortes atua como base: H2O + H+ H3O+, e reagindo com amônia torna-se ácido: NH3 + H2O NH4+ + OH−.

Teoria dos sistemas de solvossistemas.
A teoria dos sistemas de solvossistemas é uma extensão da teoria de Arrhenius — Ostwald para outros solventes iônicos (em particular, solventes protônicos). Proposta pelos químicos americanos G. Cady, E. Franklin e C. Kraus.
Definições. Solvente iônico — solvente que se autodissocia em cátion e ânion. O cátion é chamado íon lioni, e o ânion, íon liato. Solvente protônico — solvente capaz de autoprotólise, ou seja, transferência do íon H+ de uma molécula para outra:
2HL ↔ H2L+ + L-
São solventes que possuem ligação suficientemente polarizada com hidrogênio e par eletrônico não compartilhado em algum ametal (mais frequentemente nitrogênio, oxigênio ou flúor).
Nota: essa definição inclui a teoria protônica, pois autoprotólise é uma reação ácido-base segundo Brønsted — Lowry. Também inclui a teoria de Lewis, pois ela explica a formação dos íons lioni.
O íon H2L+ é chamado íon lioni, e L–, íon liato.
Ácidos — substâncias que formam neste solvente o íon lioni.
Bases — substâncias que formam neste solvente o íon liato.
Sais — substâncias que dissociam neste solvente formando cátion e ânion que não são lioni ou liato.
Produtos da reação. Na reação de ácido com base (reação de neutralização) formam-se sal e solvente.