A análise das transformações urbanas no Cinturão Industrial dos Estados Unidos e suas implicações para as populações negras é um tema recorrente nas discussões sobre o desenvolvimento urbano e os impactos da segregação racial. Um dos aspectos mais evidentes dessa dinâmica está relacionado à mudança nos valores dos imóveis em bairros com alta concentração de população negra. A partir de dados coletados entre 1970 e 2010, é possível observar como a alteração no valor médio das casas reflete a dinâmica socioeconômica e a segregação racial.

No período analisado, os bairros passaram por três grandes categorias de mudança no valor imobiliário: declínio, estagnação e crescimento. A análise dos dados revela que, para os bairros onde houve um crescimento no valor das propriedades, a proporção de população negra era significativamente menor, refletindo a complexa relação entre o aumento do valor imobiliário e a composição étnica dos bairros. Já os bairros em declínio, especialmente aqueles com maior concentração de negros, mostraram uma forte correlação entre a diminuição do valor das propriedades e o aumento da presença de negros na área.

Esse fenômeno pode ser interpretado de diversas maneiras, mas o fator racial continua sendo central para entender o que acontece no nível local. Em cidades como Detroit, St. Louis e Gary, a associação entre as populações negras e os bairros em declínio é tão evidente que se tornou uma chave para explicar os processos de empobrecimento dessas regiões. A movimentação da população branca para os subúrbios, um fenômeno amplamente documentado, foi em grande parte motivada pela presença crescente de negros, o que gerou o fenômeno conhecido como "fuga dos brancos".

A teoria do "proxy racial" é uma das abordagens mais discutidas para explicar essa dinâmica. Segundo essa teoria, os brancos não estavam necessariamente fugindo de negros, mas sim de um "sinal" de declínio econômico. Para muitos, a chegada de negros a determinado bairro era interpretada como uma indicação de que o local estava se deteriorando economicamente. Nesse sentido, a decisão de vender as propriedades e mudar para áreas mais prósperas era vista como uma medida racional para proteger os investimentos. Esse fenômeno, embora seja amplamente aceito, coloca em segundo plano o fator racial como um motor da segregação e das desigualdades urbanas.

No entanto, não se pode ignorar o contexto histórico de políticas públicas racistas que, ao longo do tempo, forjaram essas desigualdades. A história da habitação nos Estados Unidos, marcada por práticas discriminatórias como os contratos de "covenants raciais" e a negação de crédito para negros, construiu um ambiente onde a segregação não era apenas uma questão de preferências individuais, mas uma imposição sistemática. O legado dessa segregação institucional continua a se manifestar na configuração atual das cidades do Cinturão Industrial.

A relação entre a população negra e o valor das propriedades não pode ser dissociada das práticas políticas que marginalizam esses grupos. O fortalecimento do poder político negro nas cidades, embora tenha trazido benefícios sociais e culturais, também foi percebido por muitos como um sinal de declínio econômico, gerando a fuga das empresas e dos investidores. Esse movimento reflete uma visão errônea de que o empoderamento da população negra representa um risco à estabilidade econômica das cidades.

Além disso, é fundamental considerar que essa dinâmica não é exclusiva dos Estados Unidos. O Canadá, por exemplo, apresenta um cenário diferente, com uma população negra significativamente menor, o que implica em menores níveis de segregação e, consequentemente, menor impacto econômico das políticas raciais. Mesmo assim, a presença de minorias raciais, embora menos expressiva, também resulta em formas de marginalização, especialmente nos contextos urbanos mais diversos.

Esses dados e análises nos convidam a refletir sobre o papel da cor da pele na configuração das cidades e a compreensão de que, mais do que uma questão econômica, a segregação racial é também um reflexo das desigualdades históricas e sociais que continuam a moldar a paisagem urbana. O entendimento desse fenômeno é crucial para qualquer tentativa de intervenção ou reforma urbana eficaz, que leve em conta não apenas os aspectos econômicos, mas também os fatores sociais e raciais que estruturam a segregação e a marginalização.

A situação descrita reflete a contínua importância da política pública na remodelação das cidades. A análise dos fatores que influenciam a mobilidade racial e as desigualdades no valor das propriedades revela a necessidade de políticas mais inclusivas que abordem as causas históricas e sociais dessa segregação. O legado da discriminação, embora disfarçado sob o manto de decisões econômicas, exige um olhar atento para que se possa construir um futuro mais equitativo nas cidades americanas e além delas.

Como a Governança Territorial Afeta as Cidades em Crise

A gestão da terra em cidades em crise envolve uma luta constante entre interesses privados e públicos, com o mercado imobiliário muitas vezes assumindo um papel dominante, dificultando mudanças significativas. Em muitos contextos urbanos, especialmente em áreas empobrecidas ou em declínio, há uma luta para reverter os danos causados por investimentos predatórios e pela especulação imobiliária. As cidades em dificuldades frequentemente enfrentam a incapacidade de implementar políticas eficazes de uso da terra devido à forte proteção dos direitos de propriedade, instabilidade fiscal e a presença de investidores com intenções predatórias. Tais desafios resultam em uma situação em que a reestruturação espacial, ainda que possível teoricamente, se torna um objetivo distante.

A maior dificuldade reside no fato de que a maioria das cidades em declínio não tem os recursos necessários para reverter a deterioração, e, além disso, suas capacidades para implementar políticas de uso da terra muitas vezes esbarram na resistência dos investidores privados. As cidades, pressionadas por uma falta de infraestrutura e fundos, frequentemente são incapazes de tomar posse de propriedades privadas para promover o bem-estar público ou realizar a requalificação de áreas devastadas. Embora acadêmicos e ativistas proponham estratégias de intervenção, como a criação de bancos de terras ou a regulação mais rigorosa das vendas de imóveis abandonados, na prática esses esforços esbarram nas barreiras legais e políticas impostas pelos estados e pelo mercado imobiliário.

Um exemplo claro dessa dinâmica pode ser visto em Detroit, onde investidores predatórios, conhecidos por suas táticas de "dinheiro fácil", compram imóveis em bairros empobrecidos com promessas de revitalização, que raramente se concretizam. O processo de aquisição de imóveis, muitas vezes através da execução fiscal, se torna um terreno fértil para especulação. Investidores compram grandes blocos de propriedades, com a intenção de revender para compradores estrangeiros ou para outros investidores, frequentemente sem se importar com as condições das propriedades ou o impacto no bairro. Embora práticas como a exclusão de compradores suspeitos ou o agrupamento de propriedades em leilões possam reduzir esse fenômeno, elas não são soluções definitivas, pois as leis estaduais em muitos lugares não permitem tais restrições.

A intervenção mais eficaz, sugerem alguns estudiosos e ativistas, seria a criação de bancos de terras com poderes para assumir funções privadas, ou seja, agir como um investidor responsável em um mercado onde os investidores comuns não têm interesse. Esses bancos de terras poderiam adquirir propriedades problemáticas e, ao invés de simplesmente vendê-las para o primeiro comprador, se tornariam responsáveis pela manutenção e pela venda para novos donos que respeitem padrões mais elevados de responsabilidade. Contudo, essa abordagem encontra resistência tanto dos governos locais quanto de investidores privados, que temem que a intervenção do Estado prejudique seus direitos de propriedade e seus lucros. Mesmo onde os bancos de terras foram estabelecidos, sua capacidade de operar de maneira eficaz é limitada pela falta de recursos e pela necessidade de autofinanciamento, o que frequentemente impede que atuem em áreas mais necessitadas.

Outro fator crucial para entender essa dinâmica é a aplicação de normas básicas de propriedade. Em muitas cidades em declínio, imóveis vazios ou negligenciados afetam diretamente o valor de propriedades vizinhas. Embora haja tentativas de implementar códigos de manutenção obrigatória, como a exigência de jardins bem cuidados ou prédios desocupados devidamente fechados, a falta de recursos para fiscalização consistente faz com que muitas dessas medidas não tenham o impacto desejado. As cidades que mais necessitam dessas reformas são, muitas vezes, as que menos têm condições de implementá-las de maneira eficiente, sendo os sistemas de denúncia e reclamação muitas vezes insuficientes diante da magnitude do problema.

Em um nível mais estratégico, a governança territorial também envolve o incentivo ao investimento privado, muitas vezes por meio de políticas que favorecem a competição entre cidades por investidores. A partir da década de 1970, com as mudanças na política federal e estadual nos Estados Unidos, o modelo de governança empreendedora ganhou força, levando as cidades a adotarem políticas para atrair capitais privados. No entanto, essa ênfase no investimento privado pode ser problemática, especialmente quando as decisões de planejamento urbano favorecem o lucro imediato em detrimento da qualidade de vida dos moradores locais.

A governança empreendedora, embora bem-sucedida em alguns casos, também leva a uma urbanização desigual, na qual as áreas mais lucrativas e desenvolvidas recebem mais atenção, enquanto os bairros em crise continuam a ser negligenciados. A competição entre cidades pode resultar em soluções superficiais e temporárias, que não abordam as causas profundas da decadência urbana, mas apenas deslocam os problemas para outras áreas, perpetuando um ciclo de desigualdade e abandono.

O maior desafio, portanto, é encontrar um equilíbrio entre os direitos dos proprietários de terras e a necessidade de políticas públicas que visem o bem-estar coletivo. No contexto das cidades em crise, a falta de uma intervenção mais agressiva por parte do governo, somada à resistência de atores privados, dificulta a implementação de soluções eficazes. A renovação urbana e a gestão de terrenos abandonados exigem uma abordagem que combine responsabilidade pública e privada, mas que, acima de tudo, coloque as necessidades das comunidades em primeiro plano, garantindo que os interesses especulativos não prevaleçam.

Por que as políticas urbanas atuais abandonaram os bairros mais pobres?

A transformação das políticas urbanas nas últimas décadas reflete uma guinada ideológica profunda, marcada pelo abandono gradual da responsabilidade pública sobre os espaços urbanos mais marginalizados. Se o Relatório Kerner de 1968 representava uma resposta grandiosa, empática e compensatória ao colapso das cidades e ao aprofundamento das desigualdades raciais, o paradigma atual é seu exato oposto: punitivo, austero e resignado à lógica de mercado. A mesma proposta que, há cinquenta anos, recomendava o investimento direto em bairros negros empobrecidos, hoje cede lugar a um regime de privações organizadas, no qual o Estado se ausenta seletivamente de suas obrigações sociais.

As ideias centrais deste novo regime repousam sobre a crença de que o investimento público em moradia social, serviços urbanos e bem-estar não apenas falhou, como agravou o declínio urbano. Essa visão, popularizada por vozes conservadoras, desloca o foco da responsabilidade estrutural para uma crítica cultural, culpando valores, comportamentos e escolhas individuais das comunidades negras. Segundo essa lógica, a desigualdade racial não é o resultado de séculos de discriminação institucionalizada, mas sim de um suposto déficit cultural: a ausência da família nuclear, o desinteresse educacional, a negligência da ética protestante do trabalho.

Essa racionalização moral do abandono urbano é tão difundida que se tornou o enquadramento político dominante em diversos níveis do governo dos EUA. A única função do Estado que tem experimentado expansão real nesses territórios é o aparelho penal: aumento de efetivos policiais, crescimento do sistema prisional, e vigilância constante das comunidades “problemáticas”. Ao mesmo tempo, cortes profundos em assistência social, habitação pública e educação têm se tornado a norma, sob o pretexto de eficiência fiscal.

O mais inquietante, no entanto, não é apenas o conteúdo das políticas atuais, mas sua resiliência política apesar de sua impopularidade comprovada. As ideias de “triagem urbana” — ou seja, o abandono sistemático de bairros considerados “sem potencial de mercado” — não são novas. Tais propostas foram defendidas ao longo das últimas sete décadas sob diferentes nomes: reestruturação planejada, encolh

Como Planejar a Desmobilização Urbana em Cidades em Declínio: Lições de Detroit e Flint

A experiência de Detroit com o programa "Every Neighborhood" revela uma abordagem pragmática e fundamentada em dados para enfrentar a degradação urbana em meio à crise demográfica e econômica. O programa, que envolve múltiplos atores institucionais, comunitários e governamentais, foca exclusivamente na remoção de imóveis degradados (blight), estimando que cerca de 30% do território urbano é composto por lotes vazios, e aproximadamente 80 mil parcelas necessitam de demolição ou recuperação. A estratégia adotada parte do princípio de que a retirada rápida dessas construções, muitas delas ocupadas, é essencial para viabilizar a reestruturação urbana, utilizando uma lógica de "triagem" para priorizar bairros mais críticos.

A metodologia do "Every Neighborhood" baseia-se em uma coleta de dados rigorosa, realizada por moradores equipados com tecnologia digital para identificar imóveis degradados segundo critérios específicos. Essa precisão na avaliação do território possibilita um direcionamento mais eficiente dos recursos, estimados em 850 milhões de dólares, já com metade desse valor assegurado por fontes públicas. A proposta também é transparente quanto ao destino das áreas desocupadas, prevendo sua alienação via leilão público imediato, com a convicção de que a eliminação do que denominam "câncer da degradação" despertará o interesse dos investidores.

Em contraste, a cidade de Flint adota um plano chamado "Imagine Flint", que apesar de reconhecer o declínio populacional e o abandono de imóveis, enfatiza uma reconfiguração da cidade com base no conceito de "não crescimento", buscando transformar o espaço urbano em um tecido mais compacto, focado em corredores densos e uso misto. O plano apresenta estratégias para demolir imóveis vazios e promover usos provisórios como hortas comunitárias, mas mantém certa cautela ao lidar com a transformação espacial, especialmente em bairros majoritariamente negros e vulneráveis, onde o temor por deslocamentos e perdas culturais é mais intenso.

Flint propõe a criação de “bairros verdes”, caracterizados por grandes lotes, jardins comunitários e áreas abertas bem cuidadas, com a possibilidade de conversão desses espaços para uso público caso a população continue a diminuir. Embora o documento reconheça a necessidade de envolver a comunidade local nas decisões, o plano ainda apresenta lacunas quanto à definição precisa da propriedade e gestão dessas áreas abertas. A venda de lotes para proprietários adjacentes e a cooperação com o banco de terras do condado indicam um modelo que equilibra o interesse público com o privado, deixando aberta a possibilidade de retomada do crescimento urbano.

Esses planos refletem uma complexa tensão entre a necessidade de adaptação urbana a realidades de retração e o desejo legítimo das comunidades de manter seus territórios e histórias. É essencial compreender que a demolição e o redimensionamento das cidades não são atos isolados, mas processos que envolvem aspectos econômicos, sociais e culturais profundamente interligados. O desafio maior está em garantir que a reestruturação respeite as vozes locais e ofereça caminhos para que os residentes possam se apropriar dos novos espaços criados, evitando a simples expulsão ou marginalização.

Além disso, é importante notar que a viabilização financeira desses projetos depende de múltiplas fontes públicas e privadas, requerendo uma gestão transparente e estratégica dos recursos. O sucesso dessas iniciativas também demanda um acompanhamento contínuo dos impactos sociais, sobretudo para mitigar riscos de deslocamento forçado e para assegurar que a reconversão das áreas resulte em melhorias reais na qualidade de vida.

A experiência dessas cidades do "Rust Belt" evidencia que o enfrentamento da decadência urbana demanda mais do que ações técnicas de demolição; exige a construção de um consenso social amplo, fundamentado em dados precisos, diálogo comunitário e políticas que articulem a preservação dos laços sociais com a transformação física do espaço urbano.