Em Cahokia, o cerne das crenças religiosas estava profundamente entrelaçado com a relação com a Mãe Terra, uma figura central na cosmologia Mississipiana. Acredita-se que a prática de sacrifícios humanos, como a que ocorreu em Mound 72, tivesse o objetivo de reforçar a reciprocidade entre os humanos e a força essencial da natureza. Os sacrifícios eram, assim, uma maneira de agradecer à Mãe Terra pelos recursos naturais e garantir a continuidade dos ciclos vitais, especialmente a fertilidade da terra e a abundância das colheitas.

Romain, ao examinar os sepultamentos em Mound 72, propôs que os duzentos e sessenta indivíduos enterrados ali não foram apenas assistentes ou servos, mas foram escolhidos como tributo à Mãe Terra. Este ato de sacrifício não era apenas uma oferenda de vidas humanas, mas também uma tentativa de fortalecer a conexão espiritual entre os vivos e a força regeneradora da natureza. O ritual tinha o intuito de assegurar que as energias vitais fluíssem em direção à Mãe Terra, na esperança de que ela retribuísse com a força necessária para sustentar a harmonia entre o mundo humano e o natural.

Pauketat, por sua vez, sugeriu que os sacrifícios em Mound 72 poderiam ter sido parte de grandes cerimônias teatrais destinadas a impressionar e educar a população sobre os temas de morte e reencarnação. Estes rituais estavam imersos em uma teologia que via a morte não como um fim, mas como um estágio intermediário, que poderia ser transcendido através de processos de renascimento e regeneração. Para a sociedade de Cahokia, estes não eram apenas rituais de adoração, mas de reafirmação da sua cosmovisão, onde a interação com o mundo espiritual era vital para sua sobrevivência física e cultural.

No entanto, a Mãe Terra não era apenas uma abstração simbólica. Para Gayle Fritz, a força espiritual que animava Cahokia estava intimamente ligada às mulheres da sociedade, particularmente aquelas com conhecimento profundo sobre as plantas, tanto cultivadas quanto selvagens. Estas mulheres desempenhavam papéis essenciais, sendo vistas como as principais responsáveis pelos rituais de fertilidade e reprodução. Fritz propôs que essas mulheres pertenciam a sociedades ou sodalidades dedicadas a uma divindade da Mãe Terra, que as considerava guardiãs do ciclo da vida através da agricultura. Embora algumas correntes acadêmicas vejam em Cahokia uma sociedade dominada por elites masculinas, Fritz argumenta que as mulheres, especialmente aquelas em idade fértil, ocupavam uma posição de grande respeito, sendo reconhecidas como as responsáveis pela continuidade da vida.

As práticas religiosas e espirituais de Cahokia se inseriam em uma cosmologia tripartida, onde o mundo era dividido em três esferas: o Mundo Superior, o Mundo Médio e o Mundo Inferior. O Mundo Superior era associado ao céu diurno, onde moravam os deuses benevolentes e a força criadora do Sol, juntamente com as entidades que representavam o vento e os raios. O céu noturno era dominado pelo Caminho das Almas, que era a rota percorrida pelos mortos até o submundo, habitado por entidades como o Red Horn. Este deus, que residia na constelação de Órion, era responsável pela morte e reencarnação. Sua presença, assim como a da Mãe Terra, era fundamental para compreender a relação entre os vivos e os mortos, e a crença na capacidade de renascimento e imortalidade era central para as ideias de vida e morte em Cahokia.

Por outro lado, o Mundo Inferior era dominado pela figura do Panther Aquático, um ser mítico que possuía o poder de agitar os rios e lagos, criando redemoinhos e ondas perigosas. Este panteão de seres espirituais era fundamental para os Mississipianos, pois estava diretamente ligado à fertilidade da terra e ao ciclo das colheitas. O mundo dos mortos e o mundo dos vivos estavam conectados por uma linha tênue de interdependência, representada pela verticalidade das estruturas cerimoniais, como os postes e os montes.

Esse simbolismo vertical era uma representação física do eixo cósmico que conectava os mundos, sendo uma expressão tangível da crença na continuidade da vida além da morte. Para os Mississipianos, a morte não era um fim, mas uma transição, e as cerimônias realizadas nas grandes plataformas e montes eram manifestações de um profundo entendimento de que o equilíbrio entre as forças cósmicas dependia da manutenção de rituais, sacrifícios e reverência aos espíritos da natureza.

Importante compreender que, ao interpretar a espiritualidade de Cahokia, não se deve reduzir o papel das mulheres a um mero reflexo de poder masculino ou de uma estrutura de domínio patriarcal. A importância da mulher na sociedade Mississipiana, especialmente como portadora do conhecimento agrícola e guardiã dos ciclos naturais, reforça a ideia de que o poder espiritual estava, em grande parte, nas mãos de quem possuía a sabedoria de como interagir com a natureza. Além disso, os sacrifícios, longe de serem um ato de violência sem propósito, eram manifestações de uma fé profunda na interconexão de todos os aspectos da vida, onde cada ato simbólico visava assegurar a continuidade do ciclo de vida e morte que sustentava a sociedade de Cahokia.

O que a "Serpente" do Rio Missouri nos Ensina sobre o Conflito de Territórios e a Expansão Colonial

Em 17 de setembro de 1819, um grupo de Ioways testemunhou um fenômeno inquietante na vastidão das águas do rio Missouri. Eles avistaram o que parecia ser uma imensa pantera subaquática, liberando uma fumaça espessa enquanto lutava contra a correnteza lamacenta do rio. As palavras de um jovem comerciante, David Meriwether, explicaram o aparente mistério: “uma grande serpente nadando rio acima com um pequeno barco em seu dorso.” A visão, longe de trazer conforto, apenas causou ainda mais perplexidade entre os Ioways. A presença dessa "serpente" não era uma mera ilusão. O que se mostrava diante deles era o Western Engineer, o primeiro barco a vapor a percorrer o rio Missouri acima de Fort Osage. Esse projeto, concebido pelo Major Stephen Long, tinha uma presença imponente, sendo mais uma estratégia de intimidação do que uma simples embarcação de transporte. O design do barco, com a cabeça de serpente esculpida na proa e o som do vapor sendo liberado de sua boca, conferia-lhe uma aura quase mística e ameaçadora. O surgimento desse monstro de ferro não era um mero acontecimento, mas um sinal claro da nova fase da invasão colonial.

Essa invasão, que já se tornara evidente desde a compra da Louisiana, se intensificava. As incursões dos americanos brancos no território de Missouri eram mais frequentes. O movimento não era apenas de exploração científica, como as expedições de Lewis e Clark, mas também de militarização e estratégia de ocupação. Desde 1805, o governo territorial dos Estados Unidos havia iniciado ações de mapeamento e instalação de postos militares. A construção de Fort Belle Fontaine, em 1805, e a de Fort Osage, reaberto em 1815, representaram os primeiros passos concretos para assegurar a posse e o controle das terras que antes pertenciam aos povos indígenas.

John C. Calhoun, secretário de guerra desde 1817, teve papel fundamental nesse processo. Com a expansão do comércio de peles como uma das maiores prioridades para os Estados Unidos, ele compreendeu que não bastava apenas explorar as terras nativas — era necessário estabelecer um domínio militar firme e permanente sobre os povos indígenas. Para isso, planejou a construção de novas fortalezas, incluindo uma expedição grandiosa, a Expedição Yellowstone. O objetivo era criar um posto militar estratégico onde os rios Yellowstone e Missouri se encontram, o que, segundo Calhoun, garantiria a "proteção" do comércio de peles e a "paz permanente" com as tribos do noroeste. Para isso, a presença de mil soldados e uma equipe de cientistas e artistas liderados por Long eram fundamentais.

No entanto, a tal expedição, destinada a exibir o poderio militar e científico do novo país, transformou-se em um fracasso. Mas o que ela evidenciava era uma estratégia de controle velada: uma união entre a força militar, a exploração científica e o mercado de peles, com o intuito de subjugar os povos indígenas e tomar posse definitiva de suas terras.

O que se observa nesse contexto é que a chegada de novos colonizadores, por mais que estivesse associada ao avanço tecnológico e à modernização, trazia consigo uma perspectiva expansionista que tratava os povos indígenas não como iguais, mas como obstáculos a serem removidos. O uso de militares e "cientistas" para legitimar a ocupação dessas terras reflete o caráter multifacetado da colonização: uma fusão entre força, conhecimento e economia. O que os colonizadores chamavam de "paz", na realidade, era uma pacificação forçada, que subordinava as populações nativas ao poder das novas autoridades.

Além disso, o aparecimento do Western Engineer e de outras armas de colonização evidenciava não apenas a imitação da natureza, mas o desejo de domá-la e de convertê-la ao serviço das ambições humanas. A serpente que emergia do rio, como uma metáfora das forças colonizadoras, revelava uma noção distorcida de poder e domínio sobre o mundo natural, uma noção que ignorava a harmonia que as sociedades indígenas buscavam com a terra e seus espíritos.

Para entender o impacto desse processo de ocupação, é preciso ir além das descrições das expedições. As palavras dos líderes indígenas, como as de Waw-ron-esaw, também ajudam a compreender a resistência cultural e espiritual a esse processo de subjugação. A conexão com a terra, com os ancestrais e com as forças espirituais da natureza não eram meros símbolos para os povos indígenas, mas parte intrínseca de sua identidade. O uso do cachimbo sagrado, como símbolo de paz, e o ato de fumar em conjunto com os colonizadores, ilustram uma tentativa de manter e preservar valores fundamentais, mesmo diante de uma força colonizadora imensa.

Ao leitor, é importante destacar que a resistência indígena não era apenas militar, mas profundamente cultural e espiritual. A luta por territórios, muitas vezes vista de fora apenas como uma questão de "expansão de fronteiras", na verdade envolvia um profundo compromisso com a preservação de tradições e de uma visão de mundo. Essa dimensão espiritual e cultural é crucial para entender as reais implicações da colonização, que, além de destruir territórios físicos, também visava apagar formas de existência, de conhecimento e de conexão com a natureza que eram essenciais para os povos nativos.