Quando se volta aos primeiros dias da música ambiente em cafés, onde as músicas eram transmitidas ao vivo pelas estações de rádio, o cenário de hoje parece distante. Naquele tempo, era comum que uma determinada música fosse tocada várias vezes ao dia, de acordo com os turnos dos atendentes. A tarefa de monitorar quais músicas eram tocadas e com que frequência, além de rastrear os artistas para pagar-lhes por suas obras originais, seria proibitiva para um simples café. Entretanto, esse contexto desafiador foi o ponto de partida para o surgimento de organizações de direitos autorais sem fins lucrativos, como ASCAP (Sociedade Americana de Compositores, Autores e Editores) e BMI (Broadcast Music, Inc.), que se tornaram o modelo clássico para organizações coletivas de direitos.

Essas entidades serviram como intermediárias entre os detentores dos direitos autorais e os negócios que tocavam suas músicas, como o café citado. Elas emitiam licenças, monitoravam o uso e distribuíam os royalties, mesmo que em pequenas quantias. O modelo dessas organizações coletivas tem grande relevância no contexto da inteligência artificial, em que é possível estabelecer um sistema que gere um pagamento mínimo para os detentores de direitos autorais. Isso representaria uma solução mais econômica para as empresas de IA do que os riscos de enormes multas por violação de direitos. Sem um acordo coletivo dessa magnitude, apenas grandes corporações, como as gravadoras ou editoras, seriam capazes de negociar com desenvolvedores de inteligência artificial, visto que os custos envolvidos são justificáveis pela quantidade e valor do conteúdo. Para os pequenos artistas ou negócios, porém, esses custos seriam desproporcionais ao retorno que poderiam obter. Isso destaca a importância de um modelo de pagamento universal que beneficie a todos.

No entanto, para alguns detentores de direitos autorais hoje em dia, pode ser difícil aceitar qualquer tipo de acordo com a indústria de inteligência artificial. Alguns podem se preocupar com os princípios envolvidos, em vez de apenas com os custos das transações. Outros podem enxergar o uso de suas obras em grandes conjuntos de dados de treinamento como uma violação intangível, mas existencial, de sua criatividade. Mesmo que a imitação de práticas ou estilos de um autor não esteja protegida por direitos autorais, essa pode ser uma preocupação válida. A dificuldade em aceitar tais acordos pode ser compreensível, mas, muitas vezes, essa postura acaba sendo mais impulsiva do que efetiva.

Uma conhecida máxima, citada de forma cínica em um cartum político de 1916, ilustra bem a situação. Quando alguém afirma: "não é sobre o dinheiro, é sobre o princípio", a realidade muitas vezes é bem diferente. Quando o dinheiro está em jogo, muitos princípios podem ser facilmente negociados. Essa frase se alinha com os fundamentos teóricos da propriedade intelectual nos Estados Unidos, que são quase inteiramente utilitários do ponto de vista econômico. Um sistema razoável de pagamentos contratuais que ofereça benefícios econômicos para a sociedade, sem prejudicar os detentores de direitos, se encaixa dentro da teoria predominante da propriedade intelectual.

Além das soluções contratuais, existem também soluções técnicas que podem surgir no futuro próximo. Uma das categorias de soluções técnicas envolve os próprios detentores de direitos autorais se protegendo, dificultando o uso de suas obras por empresas de IA para fins de treinamento. Já é comum que muitas empresas solicitem a remoção de seus dados do Common Crawl, para evitar que sejam utilizados nesse ou em outros contextos. Isso força as empresas de IA a buscarem fontes de dados mais caras ou menos convenientes. Outra abordagem é colocar mais conteúdo por trás de paywalls ou limitar a quantidade de tempo em que os dados ficam acessíveis na internet. Além disso, algumas ferramentas já estão sendo desenvolvidas para tornar os dados protegidos por direitos autorais inutilizáveis para o treinamento de IA. A empresa Nightshade, por exemplo, criou uma ferramenta que transforma materiais protegidos em uma espécie de "pílula envenenada", danificando permanentemente um modelo de IA caso esses dados sejam usados no treinamento.

Essa tecnologia pode desencadear uma verdadeira corrida armamentista no campo do treinamento de IA, com cada parte tentando desenvolver maneiras tecnológicas de garantir a vantagem ou, pelo menos, limitar o poder da outra. Outra possível solução técnica envolve a forma como a tecnologia será percebida por juízes e leigos. Em outras palavras, seria possível desenvolver modelos de IA que demonstrassem claramente sua intenção de gerar saídas transformativas, distantes das obras originais. Um modelo de IA que se concentre na geração de novos conteúdos e que evite criar obras infratoras estaria em uma posição mais favorável do que outras empresas que promovem ativamente a violação de direitos autorais.

Em um cenário mais técnico, empresas de IA poderiam adotar práticas semelhantes às do Google Books, limitando o tamanho das saídas de dados gerados, criando apenas trechos ao invés de reproduções completas de obras protegidas. Embora o treinamento de IA em si possa ser complicado, seria possível implementar mecanismos de monitoramento que assegurassem que as saídas do modelo não infrinjam os direitos autorais. Para isso, sistemas de IA poderiam ser programados para realizar verificações rápidas, como as usadas para detectar plágio, de modo a garantir que as respostas não sejam substancialmente semelhantes às obras originais. Tais verificações poderiam reforçar o argumento de que o uso do material é transformativo, o que se alinha com as definições de uso justo, ou fair use.

Esse tipo de abordagem proporcionaria uma defesa mais robusta para as empresas de IA, pois mostraria que seus objetivos são legítimos e não prejudicam o mercado de obras protegidas. Em última instância, podem surgir desenvolvimentos tecnológicos que permitam treinar modelos sem precisar copiar conteúdos, apenas analisando links sem realizar downloads, o que evitaria que qualquer tipo de cópia fosse feita. Ainda que essa possibilidade pareça distante, ela é tecnicamente viável e poderia surgir com os avanços da tecnologia.

A evolução do campo da inteligência artificial e dos direitos autorais promete ser marcada por inovações e soluções criativas. No entanto, as questões envolvendo a violação de direitos autorais e o uso de obras protegidas por IA continuarão sendo uma área de constante debate, com novas complicações surgindo à medida que as soluções se tornam mais sofisticadas.

Como o Uso de Inteligência Artificial Generativa Desafia as Fronteiras do Direito Autoral?

O uso da inteligência artificial generativa tem se tornado um campo de debate crescente no que diz respeito à legislação de direitos autorais. A aplicação da “fair use” (uso justo) no contexto da IA generativa levanta questões complexas sobre o equilíbrio entre inovação tecnológica e a proteção dos direitos dos criadores de conteúdo. Ao treinar modelos de IA em grandes volumes de dados, incluindo obras protegidas por direitos autorais, surge a dúvida: até que ponto essa prática pode ser considerada legítima sem infringir as leis de propriedade intelectual?

A jurisprudência sobre “fair use” tradicionalmente avalia quatro fatores: o propósito e a natureza do uso, a natureza da obra protegida, a quantidade e substância do material utilizado, e o impacto do uso no mercado da obra original. No caso da IA generativa, os dois primeiros fatores — o propósito e a natureza do uso — são frequentemente discutidos em termos de “não-expressividade” e transformação. Muitos especialistas argumentam que, se a IA não está diretamente criando algo novo que substitua a obra original no mercado, ela pode ser vista como um uso legítimo e não como uma cópia ou reprodução direta. No entanto, outros, como Alhadeff et al., defendem que o impacto potencial da IA sobre o mercado pode ser substancialmente prejudicial à economia criativa, especialmente quando modelos geram obras que competem diretamente com o trabalho de artistas e criadores humanos.

O argumento de que a IA está “usurpando” o mercado do criador original é uma preocupação recorrente. Modelos de IA, ao absorverem grandes volumes de dados, podem eventualmente gerar conteúdos que imitam características específicas de obras protegidas, gerando novos trabalhos que podem ser comercializados, sem que o autor original se beneficie financeiramente. Este impacto é difícil de medir, mas o simples potencial de substituição do mercado parece suficiente para que, em alguns casos, se descarte a defesa do “uso justo”.

Além disso, a questão do que constitui “uso justo” em IA generativa está intimamente relacionada ao conceito de “merger doctrine” (doutrina da fusão). De acordo com essa doutrina, quando a expressão de uma obra se funde com elementos não protegidos, o uso da expressão se torna permitido, pois é indispensável para acessar o conteúdo não protegido. Para IA generativa, isso significa que a reprodução de certos elementos das obras durante o treinamento do modelo pode ser vista como uma consequência inevitável do processo, especialmente se a IA estiver lidando com obras de natureza digital. No entanto, o uso dessas expressões deve ser restrito e não se estender além do necessário para acessar o material não protegido.

A questão de cópia direta versus transformação também se coloca de maneira importante no debate sobre IA. Embora as ferramentas de IA sejam projetadas para “aprender” com os dados aos quais têm acesso, não é simples afirmar que um trabalho gerado por IA seja uma cópia do trabalho original. No entanto, se o sistema de IA tiver sido treinado com obras protegidas, a linha entre o que constitui uma cópia e o que é uma criação original fica nebulosa. Caso o treinamento inclua obras específicas e a IA gere novos conteúdos a partir desses dados, será necessário determinar se esse processo representa uma transformação genuína ou uma reprodução disfarçada.

Um exemplo pertinente de como essas questões são tratadas é o caso da Sega contra a Accolade. O tribunal reconheceu que, em alguns casos, a cópia de elementos de um trabalho pode ser considerada um uso justo, especialmente quando o objetivo não é simplesmente replicar a expressão protegida, mas compreender o conceito ou os processos subjacentes ao trabalho. Essa análise é crítica no contexto da IA generativa, que muitas vezes não visa à reprodução direta da obra, mas à geração de novos conteúdos com base em padrões extraídos dos dados de treinamento.

Outro ponto importante a ser considerado é o impacto potencial da IA nas indústrias criativas. O modelo econômico das indústrias culturais está diretamente ligado ao incentivo econômico que os direitos autorais proporcionam. A proteção desses direitos é fundamental para garantir que os criadores possam extrair valor de suas obras e que sua criatividade seja recompensada. Quando sistemas de IA geram novas obras que podem concorrer diretamente com o trabalho original, isso pode comprometer os incentivos econômicos dos autores humanos. No entanto, também há quem acredite que a IA pode, na verdade, ser uma ferramenta que amplia o alcance das obras e facilita a criação de novos conteúdos, estimulando a inovação.

Embora a questão de “uso justo” em relação à IA ainda esteja em evolução, os tribunais provavelmente precisarão de uma abordagem mais refinada para lidar com as complexidades dessa tecnologia. A possibilidade de um modelo de IA gerar algo próximo a uma cópia de uma obra protegida não deve ser descartada de imediato, mas também não pode ser considerada uma violação irreparável se a geração do conteúdo for suficientemente transformadora ou ificiente para não afetar o mercado da obra original. Esse equilíbrio entre inovação tecnológica e proteção dos direitos autorais será fundamental para o futuro da criação e distribuição de conteúdo na era digital.

É crucial que se entenda que o impacto da IA no mercado vai além do que os tribunais tradicionalmente considerariam. O fenômeno de massificação da criação e o potencial de personalização de conteúdo gerado por IA criam um cenário onde é possível substituir, até certo ponto, a obra de um criador humano, mas também de ampliar e democratizar a criação artística. A situação exige uma reavaliação contínua dos parâmetros de proteção legal e uma adaptação da legislação, a fim de refletir as realidades digitais e as novas formas de interação com a propriedade intelectual. Além disso, é preciso que haja uma discussão sobre a ética e os limites da IA na criação de conteúdos, pois isso também afeta a percepção pública sobre o que constitui uma criação legítima.

A Inteligência Artificial no Contexto da Propriedade Intelectual: Desafios e Possibilidades

O impacto da inteligência artificial (IA) na propriedade intelectual está crescendo de forma acelerada, gerando discussões sobre como adaptar os sistemas legais às novas realidades tecnológicas. Em muitos casos, a IA se torna uma ferramenta essencial para a criação e produção de conteúdos, desde a geração de textos até a criação de imagens e músicas. Isso levanta questões sobre a titularidade e a proteção das obras criadas por máquinas, que não possuem a capacidade jurídica de ser consideradas autoras, mas produzem conteúdos que podem ser protegidos por direitos autorais, marcas registradas ou patentes.

O conceito de propriedade intelectual envolve o reconhecimento do direito exclusivo de um autor sobre suas criações, mas a emergência de tecnologias gerativas, como as ferramentas de IA, desafia essa definição tradicional. Por exemplo, o famoso personagem Mickey Mouse, registrado como uma marca pela Walt Disney Company, está simultaneamente protegido por direitos autorais e por marcas registradas, o que levanta a questão sobre as sobreposições de proteção. Similarmente, autores de exames clínicos, como o Mini Mental State Exam (MMSE), tentaram reivindicar tanto a proteção de direitos autorais quanto de segredos comerciais, criando um precedente de intersecção entre diferentes formas de propriedade intelectual.

Por outro lado, a prática de utilizar IA para gerar conteúdo levanta uma questão crucial: quem deve ser considerado o autor de uma criação feita por algoritmos? Embora alguns países, como os Estados Unidos e a União Europeia, tenham adotado legislações que exigem que as produções geradas por IA sejam claramente identificadas como tal, ainda há muita incerteza sobre a aplicação dessas leis em casos concretos. A falta de um consenso sobre essa questão se torna um obstáculo à criação de uma legislação coerente que proteja tanto os direitos dos criadores humanos quanto o uso de IA na criação.

Por exemplo, a proposta de uma reforma no sistema de patentes, discutida por especialistas como Tabrez Y. Ebrahim, visa exigir maior transparência no processo de invenção gerado por IA, o que pode incluir o desenvolvimento de algoritmos criativos que são difíceis de compreender ou reproduzir por seres humanos. A revelação dessa complexidade pode ser necessária para evitar que inovações sejam "escondidas" por trás de processos algorítmicos que não podem ser claramente explicados, mas que resultam em criações protegidas por patentes.

Além disso, o conceito de "infringimento de direitos autorais" também está sendo repensado à medida que a IA se torna mais sofisticada. Um exemplo notável é o caso de Bright Tunes Music Corp. v. Harrisongs Music, Ltd., onde um tribunal considerou que o réu foi responsável por violação de direitos autorais devido a uma cópia "inconsciente" de uma obra pré-existente. Isso sugere que o foco da legislação futura pode ser adaptado para considerar o processo criativo da IA de forma mais abrangente, refletindo a possibilidade de que, mesmo sem intenção humana, a IA possa infringir direitos de propriedade intelectual de maneiras imprevistas.

É importante entender que, embora a IA seja uma ferramenta poderosa para a criação e inovação, ela ainda carece da capacidade humana de julgamento, de antecipar consequências e de interagir emocionalmente com as situações. Embora a IA possa identificar padrões de informação com uma velocidade impressionante e em volumes de dados imensos, ela não possui uma compreensão intuitiva das implicações éticas e sociais de suas criações. Essa limitação da IA revela a importância de regulamentações que não apenas protejam os direitos dos criadores humanos, mas que também ajudem a equilibrar a inovação com a proteção dos direitos individuais e coletivos.

Além disso, as leis de propriedade intelectual, como as patentes e as marcas registradas, também devem considerar a questão da validade e da durabilidade das criações feitas por IA. O risco é que, sem uma regulação adequada, as criações geradas por IA possam ser registradas de maneira que gere um controle excessivo e monopolista sobre determinados segmentos da economia digital, prejudicando a inovação e a concorrência.

A inteligência artificial pode ser vista, portanto, como uma ferramenta essencial no futuro das inovações tecnológicas, mas também como um campo minado de desafios legais e éticos. As soluções para essas questões precisam ser desenvolvidas cuidadosamente, garantindo que a proteção da propriedade intelectual seja atualizada para refletir a realidade de um mundo digital onde a IA e a criatividade humana estão cada vez mais entrelaçadas.