A decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos em Lochner v. New York (1905) abriu uma era jurídica marcada por uma hostilidade sistemática às regulamentações trabalhistas, especialmente aquelas que interferiam nas chamadas liberdades contratuais entre empregador e empregado. A Lei das Padarias de Nova York, que limitava o número máximo de horas que padeiros podiam trabalhar, foi declarada inconstitucional sob o argumento de que não se tratava de uma legítima medida de saúde pública, mas de uma intromissão indevida nos direitos individuais de contrato. A Corte entendeu que os padeiros eram capazes de negociar suas condições laborais por conta própria e que a legislação os infantilizava desnecessariamente.

No entanto, apenas três anos depois, essa mesma Corte deferiu um tratamento diametralmente oposto ao caso Muller v. Oregon (1908), envolvendo uma lei do Oregon que limitava as horas de trabalho de mulheres. Embora semelhante em forma à lei considerada inconstitucional em Lochner, esta foi mantida pela Corte com base em uma lógica que mesclava argumentos biológicos, sociais e morais. As mulheres foram descritas como naturalmente frágeis, vulneráveis à exploração capitalista e essenciais à reprodução da raça. O argumento não era apenas sobre saúde individual, mas sobre a saúde coletiva — da sociedade, da moralidade e, sobretudo, da prole.

Essa jurisprudência solidificou a ideia de que as mulheres, mesmo como parte da força de trabalho assalariada, continuavam sendo definidas, em termos jurídicos, como corpos reprodutivos a serem protegidos para o bem da nação. Ao invés de conferir autonomia plena, as leis trabalhistas foram moldadas para compensar o que se via como deficiências naturais e sociais femininas: fragilidade física, dependência econômica e função materna.

Em West Coast Hotel Co. v. Parrish (1937), a Suprema Corte encerrou simbolicamente a era Lochner ao validar um salário mínimo para mulheres com base na proteção da saúde, segurança, moralidade e bem-estar público. A justificativa continuava a repetir os pressupostos da inferioridade biológica e social das mulheres. Alegava-se que, sem esse salário mínimo, o ônus de manter mulheres e crianças recairia sobre o Estado — um fardo público que deveria, preferencialmente, ser assumido pelo setor privado.

Mesmo quando leis de proteção eram claramente necessárias para toda a classe trabalhadora, sua aplicação restrita às mulheres reforçava uma divisão legal e social de gênero. O papel reprodutivo das mulheres era entendido como seu traço social mais relevante, e isso as tornava sujeitos de leis especiais que não se aplicavam aos homens. Assim, mesmo na esfera pública do trabalho, a mulher era lida através de sua função materna — presumida, naturalizada e normatizada.

Mas essa mesma função materna, idealizada pela retórica jurídica e moral, era também uma fonte de exclusão. Mulheres que não se conformavam ao ideal da mãe protetora e virtuosa — as chamadas "más mães", "mulheres caídas", "imorais" — eram lançadas à margem. A sociedade criou não só o arquétipo da mãe angelical, mas também sua antítese: a mulher que perde todo direito à proteção ao falhar em corresponder às expectativas de gênero. Como escreveu a jurista Dorothy Roberts, a construção social da maternidade serve como instrumento contínuo de controle social sobre as mulheres, determinando quem é merecedora de direitos e quem é vista como ameaça.

Ao longo do século XX, especialmente após a promulgação do Título VII da Lei dos Direitos Civis de 1964, a ênfase das políticas públicas e da jurisprudência mudou do paradigma da proteção da mulher para o da igualdade de oportunidades. No entanto, essa transição não eliminou o viés de gênero. A decisão da Suprema Corte em General Electric Co. v. Gilbert (1976), que considerou que a exclusão de gravidez das políticas de seguro não era uma forma de discriminação sexual, ilustrou essa ambiguidade legal. Foi apenas com a aprovação da Lei de Discriminação da Gravidez em 1978 que se estabeleceu explicitamente que discriminar com base em gravidez constituía discriminação sexual.

O giro das políticas trabalhistas femininas reflete, assim, não apenas uma evolução jurídica, mas uma mudança profunda nos valores sociais: de proteger futuras mães para o bem da "raça" e da nação, para a tentativa de garantir direitos iguais a indivíduos independentes — ainda que esses indivíduos carreguem, simbolicamente, os mesmos corpos reprodutivos que antes justificavam sua proteção especial. Ao mesmo tempo, surgem novas formas de controle, agora voltadas não mais à mulher enquanto trabalhadora ou mãe, mas à gestação como entidade jurídica autônoma: óvulos, embriões e fetos como sujeitos de direitos próprios.

Importa compreender que essas transformações não representam um caminho linear de progresso. A retirada das proteções específicas às mulheres não veio acompanhada de políticas universais eficazes. O discurso de igualdade jurídica muitas vezes desconsidera as desigualdades materiais, históricas e estruturais que ainda moldam a experiência feminina no mundo do trabalho e da reprodução. Ao remover as proteções sem garantir compensações substanciais, o Estado pode simplesmente ter transferido o custo da reprodução da sociedade de volta às mulheres — desta vez, em nome da igualdade.

Como a criminalização da gravidez redefine o sistema legal e afeta corpos vulneráveis

A criminalização do aborto não extingue os esforços para interromper uma gravidez; apenas os empurra para as margens do sistema legal, onde os riscos se tornam exponencialmente maiores. Com a revogação do direito federal ao aborto garantido por Roe v. Wade, muitos estados norte-americanos passaram a adotar leis que não apenas criminalizam o procedimento, mas também expandem o conceito de crime ao redor da gravidez, transformando o corpo grávido em um espaço jurídico vulnerável.

Mesmo na ausência de penas explícitas dirigidas às pessoas grávidas, dispositivos legais relacionados ao “perigo químico” e à “pessoa fetal” abrem brechas para que o sistema penalize a interrupção voluntária ou involuntária da gestação. No Alabama, por exemplo, há precedentes em que procuradores usaram acusações de “perigo químico a menores” contra pessoas que realizaram abortos com medicamentos. Essa lógica jurídica equipara a gestação a um espaço sob vigilância criminal contínua.

Estados como Alabama, Tennessee e Carolina do Sul oferecem um laboratório jurídico onde, por décadas, práticas de policiamento sobre os corpos de mulheres negras, indígenas e pobres — incluindo mulheres brancas de baixa renda — foram amplamente testadas e aperfeiçoadas. Esses modelos agora se disseminam por outros estados que, sem perder tempo, importam estratégias repressivas baseadas em leis ambíguas e interpretações maximalistas da proteção fetal.

A revogação de Roe v. Wade não representa apenas a negação do aborto legal. Ela remove uma barreira simbólica e jurídica que limitava a expansão de leis de feticídio e da doutrina da “pessoa fetal”, conceitos que atribuem status legal pleno a embriões e fetos. Essa equiparação torna possível acusar pessoas grávidas por crimes antes impensáveis — desde homicídio até negligência — mesmo quando a gravidez ainda está em seus estágios iniciais.

Com o fim da proteção federal, promotores agora têm liberdade para aplicar penalidades desde os primeiros dias da gravidez. Isso prolonga o período de vigilância sobre o corpo gestante e amplia significativamente o número de pessoas grávidas que podem ser detidas ou presas, não por abortos ilegais, mas por qualquer conduta que possa ser interpretada como “ameaça” ao feto.

Ainda que alguns promotores demonstrem resistência a esse uso extremo da lei penal, essas posições individuais são frágeis diante de ciclos eleitorais e de propostas legislativas que buscam retirar o poder discricionário dos promotores e obrigá-los a processar toda e qualquer conduta relacionada à gravidez, sob pena de sanções. Isso revela um projeto mais profundo: transformar o Estado em gestor ativo da reprodução, punindo desvios e premiando conformidades.

Nesse cenário, organizações comprometidas com a justiça reprodutiva têm atuado por décadas para proteger os direitos e a integridade de pessoas com capacidade de gestar. Coletivos como SisterSong, Pregnancy Justice, Healthy and Free Tennessee e If/When/How compreendem que a opressão reprodutiva não se sustenta apenas em leis, mas em estruturas culturais, médicas e econômicas que legitimam o controle dos corpos marginalizados.

A vigilância sobre a gravidez se infiltra nas práticas clínicas, nos protocolos hospitalares, nos sistemas de assistência social e nos discursos morais da sociedade. Médicos, enfermeiras e doulas são pressionados a denunciar pacientes, a coletar evidências de uso de substâncias e a colaborar com autoridades judiciais. No entanto, há uma responsabilidade ética e política em recusar esses papéis — defender o sigilo, recusar testes obrigatórios, não participar da criminalização disfarçada de cuidado.

Mas o trabalho de garantir a dignidade

Como as leis e políticas sobre drogas afetam mulheres grávidas: uma análise crítica da interseção entre saúde, justiça e direitos humanos

A questão do uso de drogas durante a gravidez envolve uma complexa interseção entre saúde pública, justiça criminal e direitos reprodutivos, suscitando debates acalorados sobre responsabilidade, estigmatização e controle estatal sobre os corpos das mulheres. As legislações que criminalizam mulheres grávidas pelo uso de substâncias psicoativas frequentemente se baseiam em uma lógica punitiva que desconsidera as dimensões sociais, econômicas e de saúde que permeiam o uso de drogas, particularmente em contextos vulneráveis. Essas leis, presentes em diversos estados dos EUA, aplicam penalidades civis e criminais, incluindo acusações de abuso infantil e mesmo o encaminhamento para processos de custódia, além de medidas coercitivas como esterilização compulsória e intervenções médicas forçadas, como cesarianas realizadas sem consentimento.

A chamada “criminalização da gravidez” sob a ótica das drogas gera efeitos devastadores para as mulheres, reforçando dinâmicas de carceral feminism, onde a resposta do Estado a questões de gênero e saúde reprodutiva é mediada por políticas punitivas que mais violam do que protegem. O paradigma vigente frequentemente responsabiliza a mulher como única responsável pelo estado do feto, ignorando fatores estruturais como o racismo institucional, pobreza, violência doméstica, e falta de acesso a serviços de saúde e apoio social. Assim, políticas que deveriam priorizar o cuidado e a prevenção acabam por ampliar a exclusão social, o estigma e a marginalização das mulheres usuárias de drogas.

Leis que classificam o uso de drogas na gravidez como abuso infantil, e que preveem sanções civis e criminais, refletem uma visão reducionista do problema, que não reconhece a complexidade da dependência química nem os direitos reprodutivos das mulheres. A imposição de medidas coercitivas, muitas vezes sob o pretexto de proteger o feto, submete mulheres a intervenções médicas não consensuais, atentando contra sua autonomia corporal e dignidade. Além disso, o enfoque no aspecto penal desvia o foco das necessidades reais, que incluem acesso ampliado a tratamento especializado, apoio psicossocial, programas de redução de danos e políticas públicas integradas que abordem as desigualdades sociais subjacentes.

Essas políticas também revelam tensões éticas e legais importantes, como a sobreposição entre direitos do feto e direitos da mulher, e a dificuldade do sistema jurídico em conciliar proteção à vida com o respeito à autonomia reprodutiva. A criminalização, ainda, tende a impactar desproporcionalmente mulheres racializadas e de baixa renda, exacerbando desigualdades históricas e sociais. Em muitos casos, as mulheres são levadas ao sistema de justiça criminal em vez de serem encaminhadas para serviços de saúde adequados, perpetuando um ciclo de punição que não resolve os problemas subjacentes.

A compreensão crítica desse fenômeno exige considerar que o uso de substâncias durante a gravidez não é apenas um problema individual, mas uma questão social complexa, envolvendo fatores como desigualdade, discriminação e acesso limitado a recursos. É fundamental ampliar a discussão para além da mera punição, buscando políticas baseadas em evidências, que respeitem os direitos humanos e promovam a justiça social e a equidade. Isso inclui reconhecer a importância do cuidado integral às mulheres grávidas que usam drogas, compreendendo suas experiências e necessidades específicas, em vez de reduzi-las a “ameaças” a serem controladas.

Além do exposto, é importante entender que as abordagens punitivas têm consequências que se estendem para além do momento da gestação, afetando o vínculo mãe-filho, o direito à guarda e o acesso a serviços essenciais. O medo da criminalização pode levar mulheres a evitar o pré-natal, prejudicando tanto sua saúde quanto a do bebê. Portanto, a construção de políticas públicas deve considerar a criação de ambientes seguros, livres de estigmas, que incentivem a busca por ajuda sem temor de represálias legais.

Por fim, o debate em torno das leis que envolvem uso de drogas na gravidez deve incluir a voz das próprias mulheres afetadas, garantindo sua participação ativa na formulação de políticas e programas que as impactam diretamente. Só assim será possível avançar em direção a modelos que promovam a saúde, a autonomia e a justiça, rompendo com lógicas punitivas que historicamente marginalizam e vulnerabilizam ainda mais aquelas que deveriam ser protegidas.