O tribunal, ao interpretar a legislação sobre risco químico, argumentou que o significado literal da expressão “endangerment químico” inclui o “embrião ou feto desde o momento da concepção.” Dessa forma, a corte reforçou que o consumo de substâncias pela gestante, e até mesmo o seu conhecimento sobre os riscos, era irrelevante no âmbito da legislação. A linguagem da lei considera o útero como um ambiente que uma pessoa grávida "contamina" ao consumir álcool, fumar cigarros ou fazer uso de substâncias ilícitas. Nesse contexto, por exemplo, uma mulher que toma remédios prescritos legalmente para epilepsia poderia ser considerada culpada de abuso infantil. O consumo de uma taça de vinho antes da concepção também seria interpretado como uma forma de abuso infantil. As penalidades por "perigo químico" variam conforme o resultado do nascimento: um bebê saudável pode resultar em uma sentença de um a dez anos, enquanto um bebê "lesionado" leva a uma pena de até vinte anos. A perda do bebê, seja por aborto espontâneo ou natimorto, poderia resultar em uma sentença de noventa e nove anos, comparável a uma pena por homicídio.

No ano seguinte, o Supremo Tribunal da Alabama revisou outro caso de apelação por uma acusação de risco químico, Ex parte Sara Hicks, envolvendo uma mulher negra de vinte e dois anos que deu à luz em 2012. O caso levantava as mesmas questões jurídicas que haviam sido discutidas em Ex parte Ankrom e Kimbrough. A corte, mais uma vez, aplicou o precedente do caso Ankrom, reiterando que os embriões e fetos são considerados "crianças" sob a legislação do Alabama. O juiz-chefe Roy Moore, que era um juiz antiaborto declarado, proferiu uma opinião separada, defendendo que o direito à vida era um dom de Deus, e que a decisão de Roe v. Wade deveria ser revogada para permitir que as mulheres fossem punidas por comportamentos que pudessem prejudicar seus fetos, além das leis já existentes de risco químico.

Em 2016, o Senado do Estado da Alabama aprovou um projeto de lei, SB 372, patrocinado pelo senador republicano Clyde Chambliss, criando uma cláusula explícita que permitia processar mulheres grávidas por crimes relacionados à gravidez, sem especificar a idade gestacional ou isenções para o aborto. O projeto ainda incluía uma exceção geral para tratamentos médicos, mas mesmo assim, em alguns casos, a aplicação da lei se mostrou falha. Um exemplo foi o caso de Kim Blalock, uma mulher de 35 anos do condado de Lauderdale, que havia sido prescrita medicamentos para dor devido a uma cirurgia mal-sucedida na coluna e um acidente de carro. Quando ela engravidou, parou de tomar o remédio, mas, devido ao aumento das dores, retornou ao uso do medicamento. Após o bebê nascer com traços de opióides em seu sistema, as autoridades locais iniciaram uma investigação. Mesmo com a explicação de Kim de que o medicamento tinha sido prescrito legalmente, o promotor de justiça procurou processá-la por fraude de prescrição.

A pressão psicológica sobre Kim Blalock aumentou. Ela foi submetida a um exame de drogas, e, após a avaliação, as acusações foram retiradas. No entanto, a situação afetou profundamente a vida pessoal e familiar de Kim, e ela relatou sofrer de depressão pós-parto, tendo dificuldades em estabelecer vínculos com seu filho recém-nascido. Sua história não foi um caso isolado. Em muitas dessas situações, as mulheres que enfrentam acusações de risco químico são tratadas como criminosas, não por suas ações de fato, mas pela simples circunstância de estarem grávidas e por terem usado substâncias controladas, mesmo quando essas substâncias foram prescritas por médicos.

A aplicação de leis que criminalizam o uso de substâncias durante a gravidez, sem uma consideração real dos impactos na saúde mental e física das mulheres, reflete uma crescente tendência de controle sobre os corpos das mulheres sob o pretexto de proteção ao feto. Essas leis, muitas vezes, não levam em conta o contexto social e econômico das mulheres envolvidas. A pobreza, a falta de acesso a cuidados médicos adequados e as questões raciais desempenham um papel significativo na forma como essas leis são aplicadas, com mulheres em situação de vulnerabilidade sendo mais frequentemente alvos de tais acusações.

Além disso, as leis que visam proteger o feto frequentemente não oferecem soluções eficazes para a saúde das mulheres grávidas, como a ampliação de programas de tratamento de dependência ou o acesso a cuidados médicos para gestantes. Ao invés disso, há uma tendência crescente de punir as mulheres, em vez de fornecer o apoio necessário para ajudá-las a ter uma gravidez saudável. A ampliação dessas políticas, como no caso do “Safe Harbor Act” em Tennessee, que visava proteger as gestantes de perderem a guarda de seus filhos ao se submeterem a tratamentos para dependência, ainda esbarra na falta de recursos e na escassez de serviços de apoio.

O desafio de balancear os direitos do feto com os direitos das mulheres se torna ainda mais complexo quando as leis são desenhadas sem levar em consideração as realidades vividas pelas mulheres. O foco em punir, ao invés de apoiar, pode resultar em mais sofrimento para mulheres em situação de vulnerabilidade, ao invés de promover uma sociedade mais equitativa e justa, que priorize a saúde e o bem-estar tanto das mulheres quanto dos fetos.

Como a criminalização da gravidez afeta o direito ao aborto e a autonomia das mulheres?

A tensão entre a criminalização de condutas durante a gravidez e o direito ao aborto legal revela uma profunda contradição jurídica e social. Em muitos casos, especialmente em estados como Alabama, pessoas gestantes enfrentam acusações criminais por atitudes que supostamente colocam em risco o feto. Contudo, a mesma legislação pode proteger o aborto em circunstâncias específicas, criando um cenário paradoxal onde a autonomia reprodutiva é severamente comprometida.

As histórias de pessoas que desejavam interromper suas gestações, mas foram detidas antes de conseguirem acessar o aborto legal, ilustram como o sistema penal pode funcionar como um instrumento de coerção. O medo de ser acusada de crimes contra o feto ou de perder a custódia dos filhos faz com que algumas optem por continuar a gravidez contra sua vontade, ou busquem meios ilegais para interrompê-la. Esse ambiente punitivo acaba, muitas vezes, por gerar evasões da assistência pré-natal, automedicação e fugas interestaduais, fenômenos que aumentam os riscos à saúde das gestantes.

O caso de "Jane Doe", uma mulher de 29 anos que foi presa durante o primeiro trimestre enquanto planejava realizar um aborto legal, exemplifica essas contradições. Detida antes de conseguir o procedimento, enfrentou não apenas a impossibilidade de exercer seu direito, mas também uma acusação de abuso químico contra o feto. A ação do Ministério Público, que buscava retirar sua guarda sobre o feto ainda no útero, demonstra como o Estado pode intervir para controlar o corpo das mulheres, restringindo sua capacidade de decisão sobre a gravidez.

Além do impacto jurídico, há uma manipulação institucional clara no tratamento dos casos. Advogados designados por promotores que simultaneamente buscam penalizar as gestantes podem gerar conflitos de interesse, questionando a efetividade da defesa legal oferecida. A pressão exercida sobre essas mulheres durante o encarceramento, somada à divulgação midiática das acusações, cria um ambiente coercitivo que influencia decisões fundamentais, como a desistência do aborto.

É fundamental compreender que essas dinâmicas refletem uma disputa maior sobre quem detém o controle sobre os corpos femininos e as decisões reprodutivas. A criminalização da gravidez não só desrespeita direitos humanos básicos, como também pode paradoxalmente incentivar abortos clandestinos e insegurança sanitária. Em última análise, o respeito à autonomia das pessoas gestantes e a garantia de acesso seguro e legal ao aborto são essenciais para garantir dignidade, saúde e justiça social.

Além disso, é importante considerar que as políticas punitivas frequentemente não levam em conta as condições sociais, econômicas e psicológicas que influenciam as decisões reprodutivas. Ignorar esses contextos agrava desigualdades e perpetua o estigma, especialmente entre mulheres marginalizadas. Portanto, a luta pelo direito ao aborto e contra a criminalização da gravidez deve estar acompanhada de uma visão interseccional e humanista, que promova o apoio integral às gestantes, incluindo acesso a serviços de saúde, assistência social e proteção legal efetiva.

Por que as políticas públicas de saúde reprodutiva nos EUA falharam com mulheres marginalizadas?

A história das políticas de saúde reprodutiva nos Estados Unidos revela um padrão contínuo de negligência, violência institucional e racismo estrutural, especialmente voltado às mulheres em situação de vulnerabilidade — negras, indígenas, imigrantes, pobres ou encarceradas. A análise dos dados e investigações sobre essas práticas evidencia uma continuidade histórica da eugenia e do controle reprodutivo disfarçado sob retóricas de bem-estar social, progresso científico e moralidade pública.

O caso da prisão Julia Tutwiler, no Alabama, ilustra com crueldade a forma como o sistema carcerário serve como laboratório silencioso de abusos sexuais sistemáticos, negligência médica e coerção reprodutiva. Durante mais de duas décadas, detentas relataram episódios contínuos de violência sexual praticada por agentes penitenciários. Ao invés de proteger, o Estado se tornou instrumento direto da violação. Essa realidade não é um erro isolado, mas expressão de um sistema que permite a objetificação total dos corpos de mulheres privadas de liberdade.

Nos hospitais públicos e instituições estatais da Califórnia, entre as décadas de 1920 e 1970, milhares de mulheres — em sua maioria negras, latinas ou com deficiência — foram esterilizadas à força ou sem consentimento informado. Embora o programa eugênico tenha sido formalmente encerrado, as práticas de esterilização involuntária continuaram por meios encobertos até pelo menos o início dos anos 2000, especialmente em prisões femininas. O relatório de Stern e suas colegas revela como o Estado, através de políticas supostamente neutras, perpetuou um sistema de exclusão e controle reprodutivo racializado.

Estudos sobre os impactos do uso de herbicidas durante a Guerra do Vietnã sobre soldados americanos, como os conduzidos por Stellman e Sommer Jr., demonstram a íntima conexão entre decisões de política externa, saúde pública e reprodução humana. Homens expostos a esses agentes tóxicos apresentaram altos índices de infertilidade, abortos espontâneos em suas parceiras e má-formações em seus filhos. A negligência do governo dos EUA em reconhecer essas consequências escancara o desprezo sistemático por vidas consideradas descartáveis.

Nos anos recentes, as consequências do desmantelamento do acesso ao aborto seguro e legal nos estados conservadores dos EUA resultaram em um aumento direto da mortalidade materna. Estudos publicados após a revogação de precedentes judiciais protetores, como Roe v. Wade, apontam para uma tendência crescente de mortes evitáveis entre mulheres gestantes, particularmente entre adolescentes e mulheres racializadas, que enfrentam múltiplas barreiras geográficas, econômicas e sociais ao acesso à saúde.

Simultaneamente, a criminalização seletiva do uso de substâncias entre gestantes — que recai de maneira desproporcional sobre mulheres negras — reforça a narrativa da “mãe irresponsável” ou do “feto vítima”, ao passo que ignora completamente os determinantes sociais de saúde. O pânico moral dos “bebês do crack” nos anos 1980, por exemplo, serviu como justificativa para ações coercitivas, prisões e separações forçadas de mães e filhos, sem qualquer suporte estruturado de saúde mental ou assistência social. Décadas depois, a crise dos opioides, vivida majoritariamente por comunidades brancas, foi tratada com uma abordagem compassiva de saúde pública. A comparação explícita revela o viés racial profundamente enraizado nas respostas institucionais à dependência química.

Enquanto isso, a mortalidade por violência entre mulheres grávidas ou em pós-parto cresce silenciosamente. Em muitos estados norte-americanos, o feminicídio é a principal causa de morte materna. O abandono estrutural das redes de proteção social, a desarticulação de políticas de saúde mental e a ausência de mecanismos eficazes de prevenção à violência de gênero criam um ambiente letal para mulheres em período perinatal.

O que emerge desse panorama não é uma sucessão de falhas individuais ou casos isolados, mas um projeto político de controle e exclusão, travestido de neutralidade científica ou legalidade. A ausência de políticas públicas realmente inclusivas, o racismo institucionalizado nas práticas de saúde, a penalização da pobreza e o autoritarismo médico construíram um sistema onde determinadas vidas são constantemente desprotegidas, silenciadas ou eliminadas.

O leitor deve compreender que a história da saúde reprodutiva nos EUA é inseparável das dinâmicas de poder racial, de classe e gênero. A suposta neutralidade das instituições médicas e jurídicas frequentemente mascara uma lógica profundamente seletiva de quem merece cuidados e quem é alvo de controle. É essencial reconhecer que políticas de saúde não são apenas técnicas: elas são profundamente morais, políticas e estruturais. O silêncio ou a omissão diante dessas práticas perpetua a desigualdade. É impossível pensar justiça reprodutiva sem enfrentar frontalmente o racismo e o patriarcado institucionalizados.