A vigilância sobre pessoas grávidas nos Estados Unidos não é realizada por uma instituição formal. Não há um corpo oficial de "polícia da gravidez", com distintivos ou uniformes padronizados. Ainda assim, essa força existe – difusa, fragmentada e institucionalizada de forma profunda. Ela se manifesta em médicos, enfermeiros, assistentes sociais, policiais, promotores e juízes, bem como em vizinhos, familiares e até nas próprias consciências das pessoas. A vigilância é contínua, alimentada por normas culturais, desigualdades históricas e políticas públicas, e sua função é clara: controlar, julgar e punir as decisões e comportamentos reprodutivos.

Mulheres e pessoas com capacidade gestacional têm sido presas e processadas por eventos como abortos espontâneos ou natimortos, mesmo na ausência de qualquer conduta criminosa comprovada. Alguns estados, como Carolina do Sul, Alabama e Tennessee, foram além e criminalizaram explicitamente condutas relacionadas à gestação, mesmo que essas condutas não constituam crimes para pessoas não grávidas. A lógica jurídica que sustenta essa prática é a do "excepcionalismo da gravidez" – a ideia de que o estado gestacional modifica o status legal da pessoa, subtraindo-lhe direitos fundamentais e sujeitando-a a um regime jurídico inferior.

Essa exceção legal transforma situações banais ou legalmente protegidas em potenciais delitos. Beber uma taça de vinho, testar positivo para maconha ou tomar um medicamento prescrito – tudo isso, quando praticado por uma pessoa grávida, pode resultar em acusações criminais como negligência infantil ou fornecimento de drogas a um menor via cordão umbilical. Casos de suicídio frustrado, que normalmente não resultam em prisão, tornam-se felonias quando envolvem gestantes que perdem a gravidez no processo. O direito à privacidade médica, assegurado por leis como o HIPAA, é ignorado quando se trata de pessoas grávidas: resultados de testes toxicológicos são compartilhados com autoridades policiais, dando início a processos criminais.

Essas práticas não se limitam ao sistema penal. No acesso à saúde, pessoas grávidas enfrentam obstáculos adicionais, restrições no consentimento médico, tratamentos impostos judicialmente e perda de autonomia sobre seus próprios corpos. A gestação se torna uma condição que, ao invés de ser protegida, é monitorada, regulada e, em muitos casos, punida. Isso é especialmente verdadeiro para mulheres negras, imigrantes, pobres ou usuárias de substâncias – grupos historicamente marginalizados e alvos preferenciais da repressão institucional.

O movimento tradicional pelos direitos reprodutivos, centrado na dicotomia “pró-escolha” versus “pró-vida”, tem se mostrado insuficiente para abordar a complexidade da realidade reprodutiva. Reduzir a discussão à legalidade do aborto ignora as condições materiais, sociais e políticas que realmente definem o acesso aos direitos reprodutivos. O que significa "escolher" quando não se tem acesso, segurança ou apoio para levar adiante qualquer decisão? Quando a gravidez representa risco de morte ou de pobreza extrema? Quando o medo de perder os filhos para o sistema de justiça infantil é constante?

O conceito de justiça reprodutiva surge como resposta a essas limitações. Ele amplia o debate para incluir o direito de não ter filhos, o direito de tê-los e criá-los com dignidade, segurança e apoio, e o direito de tomar decisões reprodutivas livres de coerção, violência ou discriminação. Trata-se de um paradigma interseccional que reconhece como raça, classe, gênero, deficiência, status migratório e outras identidades moldam a experiência reprodutiva. A justiça reprodutiva, portanto, não é apenas uma luta pelo acesso ao aborto, mas uma reivindicação por liberdade, autonomia corporal e equidade social.

É fundamental compreender que as pessoas grávidas estão sendo transformadas, sistematicamente, em sujeitos de segunda classe – legalmente diferenciadas, moralmente vigiadas e politicamente instrumentalizadas. E isso não é um acaso do sistema, mas parte de sua lógica estrutural. A criminalização da gravidez não é um erro pontual, mas um reflexo direto das hierarquias que organizam a sociedade: quem tem o poder de decidir sobre o corpo de quem.

É justo obrigar mulheres a tratamentos religiosos contra sua vontade?

Programas de reabilitação para mulheres, especialmente aqueles com afiliação religiosa, têm se tornado mecanismos recorrentes dentro da justiça criminal dos Estados Unidos para lidar com questões de uso de substâncias durante a gravidez. O que, à primeira vista, pode parecer um caminho de cura, muitas vezes esconde práticas coercitivas, exclusão institucional e imposição de crenças incompatíveis com a vivência individual das mulheres envolvidas.

Em programas como o Hosanna Home ou o New Life for Women, a proposta é clara: redenção espiritual como via de cura. As participantes são obrigadas a rejeitar qualquer uso de medicação psicotrópica — inclusive antidepressivos, antipsicóticos, estabilizadores de humor —, independentemente de necessidades médicas diagnosticadas. A recusa em aceitar o conteúdo cristão dos programas pode ser interpretada como falha no tratamento, o que acarreta sanções, expulsão ou reincidência carcerária. Não se trata apenas de terapia com fundamento religioso — trata-se de tratamento compulsório com imposição de fé como condição de recuperação.

Essas abordagens levantam um dilema ético central: pode o Estado impor a participação em um programa religioso como condição para liberdade ou como alternativa à pena? A resposta deveria ser negativa. No entanto, a realidade mostra que muitas mulheres são coagidas a aceitar esse tipo de “reabilitação” por falta de alternativas, sob risco de perder a guarda de seus filhos, a liberdade ou até mesmo a integridade física.

Várias narrativas expõem a profundidade dessa crise. Uma mulher, durante uma reunião dos Alcoólicos Anônimos, relatou que não confiava em ninguém da instituição, nem mesmo nos conselheiros. Manifestou, inclusive, pensamentos de fuga e ideias autodestrutivas, nunca abordadas com um profissional de saúde mental. Sua angústia foi tratada com uma consulta médica superficial e, em seguida, ela foi devolvida ao mesmo centro religioso, como se sua dor fosse um obstáculo menor diante da disciplina moral exigida.

Outras mulheres sequer conseguiram acesso a qualquer tipo de tratamento. Algumas foram presas imediatamente após o parto, sem informação sobre programas de anistia, sem tratamento médico adequado e sem assistência jurídica eficaz. Em um caso, a própria defensora pública teve que buscar, por esforço próprio, uma vaga em reabilitação para uma de suas clientes, enquanto o Ministério Público tentava se apropriar do mérito por uma ajuda que nunca ofereceu.

A lógica punitiva prevalece sobre o cuidado. Mesmo aquelas que demonstraram clara motivação para mudar de vida e assumir a maternidade de forma responsável foram punidas pela falta de acesso, e não por má conduta. Relatos comoventes de mulheres que escreveram cartas aos juízes, implorando por uma segunda chance para poder criar seus filhos, mostram uma justiça que exige transformação sem fornecer ferramentas.

As barreiras ao acesso ao tratamento são inúmeras: falta de transporte, ausência de seguro de saúde, carência de centros que aceitem mães com filhos, programas que não aceitam seguros públicos, estigmatização institucional, e a criminalização do uso de substâncias durante a gravidez. Muitas são abandonadas num sistema que exige responsabilidade individual onde há falência estrutural.

Procuradores e juízes, por vezes, mantêm a ilusão de que os serviços estão disponíveis e que a culpa recai sobre as mulheres por não os utilizarem. A realidade documental e empírica mostra o contrário. A própria linguagem usada para descrever essas mulheres — como “viciadas grávidas” — revela uma desumanização que permite a violação sistemática de seus direitos civis e reprodutivos.

É fundamental compreender que o uso de substâncias durante a gravidez deve ser abordado como questão de saúde pública, não como crime. A fé pode ser uma ferramenta pessoal de recuperação, mas não pode ser uma exigência estatal. A imposição de tratamentos religiosos viola o princípio da separação entre Igreja e Estado, além de comprometer os resultados terapêuticos, uma vez que o vínculo com o tratamento é minado pela coerção.

O acesso ao tratamento adequado, baseado em evidências científicas e respeito à autonomia das pacientes, é essencial para qualquer política pública séria que pretenda lidar com a intersecção entre uso de substâncias e maternidade. Ignorar isso perpetua um ciclo de exclusão, punição e abandono.

O impacto das políticas de controle de substâncias e o direito à maternidade: consequências para as mulheres grávidas e o feto

As políticas públicas de controle de substâncias têm sido um tema controverso em muitas partes do mundo, especialmente quando se trata do uso de drogas durante a gravidez. A criminalização do uso de substâncias e a forma como os sistemas legais e médicos tratam as mulheres grávidas que enfrentam dependência química levantam questões complexas sobre a autonomia feminina, os direitos reprodutivos e os direitos das crianças. Em diversas jurisdições, os casos de mulheres que enfrentam acusações legais ou punições por consumo de drogas durante a gestação evidenciam um sistema punitivo que muitas vezes ignora as dimensões sociais e psicossociais que envolvem essas situações.

Estudos como o de Lindbohm et al. (2017) sugerem que o uso de opióides durante a gravidez pode resultar em malformações congênitas, o que gera uma preocupação genuína com a saúde do feto. No entanto, é importante considerar que as políticas públicas muitas vezes não distinguem entre os diferentes fatores que levam uma mulher a fazer uso de substâncias, como a vulnerabilidade social, a falta de acesso a serviços de saúde mental adequados ou a histórica marginalização de mulheres, especialmente em áreas empobrecidas. Essas políticas não raramente tratam a gravidez como um estado de risco absoluto, sem levar em consideração a complexidade da vida da mulher e sua relação com o sistema de saúde e a sociedade em geral.

Em algumas regiões dos Estados Unidos, a legislação tem se tornado mais rigorosa, resultando em prisões de mulheres grávidas que consumiram substâncias ilícitas, como no caso de mulheres acusadas de homicídio involuntário após a morte de seus bebês devido ao uso de metanfetamina. Casos como o de Lester (2020), onde uma mulher foi acusada de matar seu bebê devido ao uso de metanfetamina durante a gestação, exemplificam a forma punitiva com a qual o sistema judicial lida com essas questões. No entanto, essas abordagens podem ser vistas como simplistas e contraproducentes, visto que, ao invés de focar na reabilitação e no apoio à mulher, as políticas podem intensificar o estigma e a marginalização.

Além disso, o impacto dessas políticas sobre a saúde pública deve ser questionado. A criminalização do uso de substâncias durante a gravidez frequentemente leva ao medo e à recusa de buscar ajuda médica, já que muitas mulheres temem ser denunciadas ou punidas. Isso pode resultar em um ciclo de evasão dos cuidados de pré-natal e outras formas de suporte que são essenciais para a saúde da mulher e do bebê. Em última análise, a criminalização das gestantes usuárias de drogas coloca em risco não apenas as mulheres, mas também os fetos, ao impedir que se busque tratamento e suporte adequado. As mulheres, especialmente aquelas em situações de vulnerabilidade, necessitam de sistemas de apoio e não de punição.

Outro aspecto relevante da discussão é o viés racial e socioeconômico que permeia muitas dessas políticas. Mulheres negras e latinas são desproporcionalmente impactadas por essas leis, muitas vezes enfrentando um sistema judicial e médico que as vê através da lente da criminalidade ao invés da saúde pública. A falta de recursos adequados para tratar a dependência e a falta de compreensão sobre os determinantes sociais da saúde contribuem para esse ciclo de punição e marginalização. Isso reflete uma falha do sistema em tratar as mulheres grávidas como seres humanos com direitos plenos à saúde e dignidade, e não como objetos de controle reprodutivo ou moral.

É importante compreender que o impacto dessas políticas vai além da questão do uso de substâncias durante a gravidez. A questão central é o direito das mulheres a decidir sobre seus corpos, incluindo a escolha de buscar ou não ajuda para sua dependência, sem medo de ser criminalizada. As mulheres precisam ter a garantia de que podem acessar cuidados médicos e apoio psicológico sem sofrer discriminação ou punição. Políticas públicas que tratem da saúde materno-infantil devem ser orientadas por princípios de justiça social, equidade e acesso universal a cuidados de saúde, focando na prevenção e no tratamento, em vez de condenar.

Entender a complexidade da situação das mulheres grávidas que usam substâncias é fundamental. Além de compreender o impacto das substâncias na saúde do feto, deve-se reconhecer que a dependência química é uma condição médica que requer tratamento especializado e apoio psicológico. As mulheres que enfrentam essa condição muitas vezes lidam com questões de trauma, pobreza e violência, fatores que agravam a situação e tornam mais difícil buscar ajuda. Portanto, é crucial que as políticas públicas sejam sensíveis a esses aspectos e ofereçam soluções baseadas na saúde pública, e não na punição.

A Luta pelo Direito Reprodutivo das Mulheres: Justiça Reprodutiva em Contextos de Prisão e Política Pública

A questão do controle reprodutivo das mulheres, especialmente em contextos de privação de liberdade, tem sido objeto de debates intensos e, muitas vezes, ignorados pelas políticas públicas. As implicações do controle reprodutivo no sistema prisional não se limitam à esterilização forçada, mas abrangem uma rede complexa de violências que afetam diretamente os direitos humanos das mulheres encarceradas. O termo "justiça reprodutiva" emergiu para descrever a necessidade de garantir que todas as mulheres tenham acesso a cuidados de saúde reprodutiva, incluindo o direito à escolha sobre sua reprodução, sem sofrer coerção, discriminação ou violência.

Ao longo das últimas décadas, políticas públicas que tratam da saúde reprodutiva das mulheres têm sido manipuladas de maneiras que ignoram suas necessidades e violam seus direitos. No sistema prisional dos Estados Unidos, por exemplo, inúmeras mulheres têm sido sujeitas a esterilizações forçadas e outras práticas de controle reprodutivo sem o seu consentimento informado. Isso ocorre em uma lógica de desumanização, onde as mulheres privadas de liberdade são tratadas como objetos, em vez de sujeitos com direitos sobre seus corpos e suas vidas.

A injustiça reprodutiva é um reflexo das disparidades sociais e raciais que permeiam a sociedade. Mulheres negras e de classe baixa, em particular, são as mais afetadas por essas políticas. A esterilização forçada, que já foi uma prática comum nas décadas de 1960 e 1970, foi parte de uma estratégia de controle social que visava limitar o crescimento das populações marginalizadas. Embora essa prática tenha sido formalmente condenada, ela persiste em formas mais sutis no contexto prisional.

No entanto, a luta por justiça reprodutiva não se limita apenas ao combate à esterilização forçada. É necessário garantir que as mulheres privadas de liberdade tenham acesso adequado a cuidados de saúde reprodutiva, incluindo o direito a contracepção, aborto seguro e tratamento médico para condições ginecológicas. A negligência nesses aspectos tem sido uma constante no sistema prisional, resultando em consequências graves para a saúde das mulheres, que muitas vezes enfrentam complicações de saúde não tratadas devido à falta de acesso a serviços médicos apropriados.

A interseção de raça, classe social e gênero torna ainda mais evidente a necessidade urgente de reformas nas políticas públicas que regem o sistema prisional e a saúde reprodutiva. O movimento pela justiça reprodutiva exige que os direitos das mulheres encarceradas sejam reconhecidos e que suas necessidades específicas sejam atendidas de maneira ética e justa. Isso inclui garantir que as mulheres tenham acesso a informações claras e transparentes sobre suas opções reprodutivas, que possam fazer escolhas informadas e que seus direitos sejam respeitados, independentemente de sua situação jurídica.

Além disso, a luta por justiça reprodutiva está intrinsicamente ligada à luta por uma reforma mais ampla do sistema de justiça criminal, que frequentemente criminaliza a pobreza e as condições de vida precárias, resultando em uma superlotação das prisões e em uma violação sistemática dos direitos humanos. As mulheres que estão no sistema prisional muitas vezes têm suas necessidades reprodutivas completamente ignoradas, o que coloca em risco não apenas sua saúde, mas também sua dignidade e liberdade.

O combate à injustiça reprodutiva exige uma abordagem holística, que vá além do direito à escolha do aborto, mas que também inclua o direito à maternidade, ao planejamento familiar e a uma assistência médica de qualidade. Isso requer uma mudança profunda nas políticas de saúde pública e na forma como o sistema penal trata as mulheres. Para que a justiça reprodutiva seja verdadeiramente alcançada, é fundamental que as mulheres tenham acesso a um sistema de saúde que respeite sua autonomia e dignidade, garantindo que não sejam vítimas de práticas coercitivas ou desumanas.

Portanto, a reflexão sobre a justiça reprodutiva deve ir além das questões legais e sociais, para também englobar uma crítica mais ampla sobre a estrutura do sistema penal e as desigualdades sociais que perpetuam a marginalização das mulheres. A verdadeira justiça reprodutiva só será alcançada quando todas as mulheres, independentemente de sua situação social, racial ou jurídica, puderem exercer plenamente o direito de controlar suas vidas reprodutivas, sem medo de coerção ou violência.