Tansman, marcado pela ambivalência de seus atos, carrega nas mãos a memória do sangue que não queria derramar. Ele salva um homem doente, Garth Buie, apenas para, momentos depois, destruí-lo em um instante de pavor e autodefesa. O gesto — paradoxal, desesperado — revela a sua fragmentação interna: ele deseja fazer o bem, mas não sabe mais onde o bem começa nem onde termina. O corpo queimado na praça não é apenas o corpo de Garth; é um símbolo do conflito entre intenção e consequência, entre redenção e culpa.

Brother Alva, diante do relato, não oferece um julgamento simples. Em vez disso, propõe a Tansman um caminho que não é de submissão a uma doutrina já pronta, mas de criação íntima: “Faça um Pacto. O seu Pacto.” A palavra, aqui, transcende uma simples promessa. Ela evoca um eixo existencial, uma aliança que não se dá com uma instituição, mas com a própria consciência, com o sentido que o indivíduo escolhe sustentar mesmo diante da incerteza. Essa proposta não é condescendente nem autoritária; é um chamado à altura do humano, à capacidade de transcender a própria fragmentação.

Tansman, no entanto, hesita. A alternativa de unir-se aos Zebuionitas parece, por um instante, um caminho possível, mas ele intui que até mesmo Brother Alva, fiel à sua fraternidade, encontra-se diminuído por ela. O que Alva sugere é maior: não a adoção de um código pronto, mas a fundação de um código próprio. O Pacto não é imposto, não é dado. É construído — e essa construção pode levar uma vida inteira. É um trabalho árduo, solitário, e talvez o único para o qual a vida serve.

O reencontro com Rilke reforça a tensão ética. O companheiro de Tansman declara agir para “eles”, para o bem maior, para elevar Zebulon a um padrão mais elevado. Mas confessa, sem vacilar, que já matou para proteger o seu segredo. “Foi pelos outros”, diz. A resposta soa quase como uma absolvição racional. Para Tansman, entretanto, isso apenas amplia o abismo entre intenções e resultados. A diferença entre “conduzir” as pessoas e “chamar” de um ponto mais alto torna-se insuportável, levando-o às lágrimas.

Ele retorna à Nave, enclausura-se no trabalho, tenta esquecer. Mas o esquecimento é impossível; os rostos de Zebulon o perseguem. Sua cela é interior, e o trabalho sufoca. O que resta é a percepção de que, se quer estar vivo — não apenas existir — precisa aceitar o risco. E o risco maior não é apenas o de matar ou morrer, mas o de comprometer-se com algo que ele próprio criará e sustentará, mesmo quando nada garante que é “o certo”.

Assim, ele volta a Zebulon, não porque encontrou respostas, mas porque descobriu a necessidade de buscá-las em ação, não em fuga. Ao retornar, descobre que Brother Alva manteve seu próprio Pacto até o fim, recusando-se a renunciar, mesmo diante da morte. É um gesto de coerência que, em si, ilumina o caminho para Tansman.

O leitor deve compreender que, nessa narrativa, não há heróis nem vilões definidos. Não existe certeza absoluta do bem ou do mal. O que existe é a escolha de comprometer-se, de fazer um Pacto não com uma instituição ou um poder externo, mas com uma ética interior, construída passo a passo. Essa é a única maneira de tornar-se inteiro num mundo onde tudo é incerto.

O que significa realmente pertencer a uma comunidade?

Ser aceito não é apenas uma questão de permissão, mas de ritmo, de linguagem e de aparência. Há encontros que se estendem por vinte anos, e há conversas que duram minutos, mas em ambas pulsa a mesma tensão: o desejo de ajustar-se ao compasso do outro sem perder o próprio pulso. Eu aprendi que decidir depressa é também agir no tempo alheio, falar no tom que se espera ouvir, imitar o estilo de quem detém o poder de dizer “sim”. Assim, fui paciente. Observei. E esperei.

A mulher à minha frente, ordenando papéis e testando minha convicção com perguntas disfarçadas de interesse, representava mais que uma autoridade burocrática — era o próprio espírito das naves, cauteloso, fechado, seletivo. Falava de Heriberto Pabon como quem fala de um rumor perigoso. “Rápido e insociável”, ela o chamou, como se essas palavras bastassem para condenar um homem. Eu não sorri; dentro de mim, percebi o teste. O que se julgava não era Pabon, mas minha disposição em obedecer, em mover-me pelas normas invisíveis da convivência.

Ela falava de imigração e de exclusão, de uma seleção silenciosa que mantinha a pureza de sua comunidade. Disse que a nave Seirapodi era a mais estável, a mais “segura”, e que era preciso protegê-la dos reconciliacionistas — esses que acreditavam poder aproximar os mundos, unificar os fragmentos dispersos da humanidade. Eu neguei pertencer a qualquer grupo, mas soube, pela inflexão de sua voz, que a lealdade ali era medida por aquilo que se recusava.

No fim, aceitei o carimbo dela com um gesto de humildade ensaiada. Disse que era uma questão de atitude. E de fato era. Tudo, dentro das naves, dependia da atitude: saber quando recuar, quando fingir convicção, quando ser dócil para poder agir.

Do lado de fora, a pequena Susan me esperava, ansiosa como quem acredita que os segredos do poder estão na simpatia dos gestos. Falou-me sobre bairros, sobre vizinhanças, sobre a importância de “viver entre os certos”. Eu apenas escutei. Propôs que eu ficasse em seu apartamento até decidir onde morar. Aceitei, não por necessidade, mas porque sabia o valor de uma base. As primeiras alianças sempre nascem em lugares provisórios.

Naquela mesma casa comecei a trabalhar. Os jovens vinham, curiosos, atraídos não por mim, mas pelo mistério de um forasteiro. A diferença — esse brilho que desperta medo nos adultos — para os jovens era convite. Falei-lhes de viajantes secretos, de uma liga de errantes chamada os Shiphoppers, gente que atravessava naves e colônias sem ser notada, que vivia sem fronteiras, que se movia como quem respira. Contar histórias é mover corações, e mover corações é criar espaço onde antes havia paredes.

Um deles, Joe Don Simms, quis desafiar-me. Os céticos são sempre os que mais anseiam crer. Disse-lhe que, de todos ali, pelo menos dois já pertenciam aos Shiphoppers. Ele quis nomes. Eu apenas sorri. Quando o grupo se dispersou e ele ficou, quis saber se tudo era verdade. Eu disse: “Ainda há tempo. Podes começar agora. Podes ser o segundo.” Ele chorou. E nesse choro entendeu mais do que qualquer palavra podia ensinar: a liberdade começa quando alguém te diz que ela ainda é possível.

Instalei-me depois em outro lugar, sem afastar os jovens, mas mantendo distância suficiente para que viessem a mim por escolha. As comunidades se constroem assim — não pela imposição, mas pelo magnetismo do que desperta desejo. Cada visita era uma lição silenciosa sobre pertença, sobre a força de um mito e sobre o medo de ser deixado fora da história.

É importante compreender que as sociedades mais fechadas não se mantêm apenas pela proibição ou pela vigilância, mas pelo enredo afetivo que oferecem: a sensação de segurança, de ordem, de mérito. Quem vive dentro delas raramente percebe que a estabilidade é também uma forma de prisão. A curiosidade, o mito e o perigo tornam-se os únicos caminhos de fuga. E é por isso que, mesmo sob o olhar de quem desconfia, sempre haverá alguém disposto a contar histórias de liberdade — não para convencer, mas para lembrar que o possível começa no invisível.

Por que alguns livros devem ser silenciados?

Ele não deveria ter escrito o livro. The Possibility of New Covenants. Rilke dissera isso a ele, o advertira, implorara que não o fizesse. Mas o homem — o melhor deles, um Zebuionita, íntegro, inteligente, ousado o bastante para seguir sua razão até conclusões que outros sequer ousavam imaginar — desafiara a ortodoxia. Escrevera que novos Pactos com o Divino eram possíveis, que a pureza e os Navios não eram conceitos incompatíveis. E agora estava interditado.

O choro de Rilke à mesa não era só tristeza. Era luto por uma possibilidade perdida, por uma centelha de esperança esmagada pela autoridade religiosa. O interdito não era apenas uma punição, era o sepultamento simbólico de qualquer tentativa de pensamento livre dentro da estrutura sufocante da Confraria.

Para Tansman, vindo das naves, era difícil compreender a complexidade da situação. Sugeriu substituir Garth, o velho serviçal que não sabia nada e, em caso de suspeita, correria ao monastério para denunciar. Mas Rilke respondeu com algo que era mais do que lealdade: era justiça. Garth, endurecido por uma vida cinco vezes mais difícil que a sua, era a razão de sua luta. Mesmo ignorante, mesmo potencialmente perigoso, era o símbolo vivo da desigualdade que Rilke tentava mitigar.

À noite, sozinho na cama dura, Tansman foi assaltado por um pesadelo. Nele, corpos eram jogados ao fogo. Ele, ainda vivo, impotente, estava entre os mortos. Os rostos mascarados dos algozes revelavam-se: Rilke e Brother Boris. A salvação veio por um fio — Garth, rindo, o arranca da morte. Mas mesmo o riso de Garth é ambíguo. Rilke grita: "Não confie em Garth!". O pesadelo termina com Tansman acordando em suor, mas vivo. Ainda em Zebulon.

A chegada de Brother Boris à cidade não foi um acontecimento isolado. Era a máquina de controle em ação. Ele não começou por Tansman, nem pela loja de Rilke. Começou pelas margens, mas logo o eco de suas perguntas, suas visitas, seus julgamentos, invadiu o cotidiano de todos. Tansman, o forasteiro, tornou-se um observador privilegiado — e impotente.

Os habitantes vinham à loja para falar. Confessavam, sorriam, eram afagados, como se isso bastasse para aplacar o medo. Não era servilismo, como Tansman pensava inicialmente, mas um pavor visceral do megrim — a doença que matava metade dos que tocava e deixava um terço desorientado, sem mente. A Confraria era supersticiosa, dogmática, brutal, mas era o único escudo contra o terror da doença. E o preço do escudo era a submissão.

Tansman estudava os textos religiosos como se sua vida dependesse disso — e dependia. Os Colligations, os Ensinamentos, os Comentários. Sabia que depois esqueceria tudo, mas não podia se dar ao luxo de fracassar. Não queria o destino dos Filhos de Prometeu. Não queria ser "apagado". Nem sequer açoitado. Queria apenas passar despercebido, sobreviver.

Garth, por outro lado, era livre na ignorância. Um velho estábulo com fé suficiente para bater ponto nas flagelações públicas. Não precisava compreender, apenas comparecer. E isso bastava.

A paranoia de Tansman crescia. Checava os livros da loja, analisava cada título. Alguns eram abertamente perigosos, outros só vagamente suspeitos. O Segredo dos Navios, por exemplo, prometia revelações, mas não dizia nada. Era mais uma tentativa — patética e inofensiva — de diluir o fanatismo com mentiras acinzentadas.

Mas o verdadeiro perigo não estava nos livros óbvios. Estava naquilo que poderia parecer inócuo e, no entanto, sugeria alternativas. Estava no pensamento. Estava na dúvida. E essa dúvida, ainda que sussurrada, poderia ser ouvida por alguém como Brother Boris.

Importa compreender que o medo não era só da dor ou da morte. Era o medo de ser identificado como divergente. De ser associado a qualquer possibilidade que ameaçasse a coesão do dogma. Por isso os habitantes de Delera não apenas obedeciam — eles vigiavam, denunciavam, sacrificavam suas consciências em nome de uma fé que os salvava do vazio e da loucura do megrim.

E, no centro disso, estava o silêncio. O silêncio sobre The Possibility of New Covenants. O silêncio sobre os Navios. O silêncio que era exigido, imposto, temido. A verdade — ou sua busca — não era apenas perigosa. Era fatal.