O reaproveitamento de medicamentos (repurposing) tem se mostrado uma estratégia valiosa no combate a várias doenças, especialmente quando novos tratamentos precisam ser encontrados rapidamente. Durante a pandemia de COVID-19, muitos medicamentos originalmente desenvolvidos para outras doenças foram avaliados quanto à sua eficácia contra o vírus SARS-CoV-2. Contudo, o uso de antivirais existentes enfrenta diversos desafios, como a absorção celular inadequada, baixa solubilidade e disponibilidade em água, redução da potência biológica e aumento da toxicidade. Esses obstáculos dificultam o desenvolvimento de terapias eficazes. Para superar esses problemas, diferentes plataformas baseadas em nanomedicina surgiram, oferecendo uma maneira inovadora de aprimorar o potencial terapêutico dos medicamentos reaproveitados.

Um exemplo notável é o remdesivir, um antiviral inicialmente desenvolvido para o tratamento do Ebola. Embora tenha sido autorizado para uso emergencial pelo FDA em pacientes hospitalizados com COVID-19, sua eficácia foi prejudicada por suas propriedades fisicoquímicas e farmacocinéticas inadequadas. Em resposta a isso, Sanna et al. (2022) desenvolveram nanopartículas poliméricas encapsuladas com o medicamento, densamente decoradas com ligantes que visam especificamente os receptores da enzima ACE2. Essa modificação aumentou significativamente a ligação do remdesivir aos receptores ACE2, resultando em um efeito antiviral mais potente, comparado ao medicamento livre em concentrações equivalentes.

Além disso, medicamentos como o zidovudine, amplamente utilizado no tratamento do HIV/AIDS, apresentam eficácia limitada devido à baixa biodisponibilidade e distribuição no cérebro. Para melhorar essa situação, Joshy et al. (2018) introduziram um novo sistema nanomedicinal contendo dextrano, lipídios e PEG, que encapsulou o zidovudine, proporcionando maior estabilidade e liberação controlada. Isso facilitou a internalização celular do medicamento no cérebro, aprimorando a eficácia terapêutica. Outro exemplo relevante é o lopinavir, utilizado no tratamento de distúrbios neurocognitivos associados ao HIV. Apesar de seu potencial, a baixa biodisponibilidade oral e a distribuição insuficiente no cérebro limitam seus efeitos. Para resolver isso, Garg et al. (2019) desenvolveram transportadores nanolipídicos para direcionar o medicamento ao cérebro, aumentando sua concentração e eficácia.

Esses exemplos, embora não sejam diretamente relacionados ao reaproveitamento de medicamentos, ilustram como os nanomateriais podem melhorar a eficiência de medicamentos já disponíveis no mercado. Isso é especialmente relevante, pois muitas dessas doenças continuam a ser um desafio significativo para a saúde pública.

As doenças cardiovasculares, por exemplo, são a principal causa de morte no mundo, com estimativas apontando para 23,6 milhões de óbitos até 2030. Essas condições envolvem o coração, as artérias, as veias e o sangue, abrangendo doenças como arritmias, insuficiência cardíaca, trombose venosa profunda, aterosclerose, infarto do miocárdio, entre outras. Embora os tratamentos farmacológicos existentes ajudem no controle dessas doenças, sua eficácia a longo prazo ainda é limitada, levando à diminuição da adesão dos pacientes ao tratamento e a resultados imprevisíveis. Nesse cenário, a demanda por novas estratégias terapêuticas é urgente.

Giannouli et al. (2018) realizaram um estudo focado na prevenção de doenças cardiovasculares, incorporando a quercetina em nanopartículas de PLGA. A quercetina é amplamente reconhecida por suas propriedades antioxidantes, antivirais, neurológicas e anticâncer, mas sua aplicação é limitada devido à baixa solubilidade em água e instabilidade em meios fisiológicos. A pesquisa mostrou que encapsular a quercetina nas nanopartículas protege o medicamento contra a degradação e permite a liberação controlada, fatores essenciais para melhorar sua eficácia no combate às doenças cardiovasculares. Outro antioxidante estudado para efeitos cardioprotetores é a curcumina, cujas limitações quanto à rápida eliminação do corpo e baixa solubilidade também restringem sua aplicação clínica. Boarescu et al. (2019) encapsularam a curcumina em nanopartículas baseadas em polímeros e demonstraram que esse formato aumentou significativamente a proteção cardiovascular, exercendo efeitos antioxidantes e anti-inflamatórios durante o infarto agudo do miocárdio em modelos de diabetes mellitus.

O uso de nanoformulações também se estendeu ao estudo de outros fármacos, como a ciclosporina, que é reconhecida por suas propriedades imunossupressoras e por sua aplicação em cardioproteção. No entanto, a distribuição e as propriedades fisicoquímicas da ciclosporina limitam sua administração intravenosa. Gendron et al. (2021) criaram uma nanoformulação conjugando squaleno, um lipídio biodegradável, à ciclosporina A. Esse método demonstrou aumentar o tempo de circulação no sangue, melhorar as propriedades de direcionamento e reduzir a toxicidade, resultando em efeitos cardioprotetores significativos. O mesmo objetivo foi alcançado com nanopartículas de PLGA e nanopartículas biomiméticas em outros estudos, onde a ciclosporina mostrou um efeito cardioprotetor aprimorado.

Em relação à leishmaniose, uma doença parasitária infecciosa negligenciada, o tratamento tem sido complicado pelo surgimento de resistência a medicamentos. Tradicionalmente, os tratamentos baseiam-se em complexos de antimonio pentavalente, como o antimoniato de meglumina e o estibogluconato de sódio. No entanto, a resistência crescente das espécies de Leishmania tem comprometido a eficácia desses fármacos. Nesse contexto, a incorporação de nanomateriais para melhorar a entrega e a eficácia dos tratamentos contra a leishmaniose surge como uma abordagem promissora, sendo explorada em estudos recentes.

O uso de nanomateriais para melhorar a entrega de medicamentos reaproveitados não só tem o potencial de aumentar a eficácia de fármacos existentes, mas também de abrir novas possibilidades no tratamento de doenças complexas e tropicais. Isso é crucial, pois não apenas melhora a resposta terapêutica, mas também permite uma abordagem mais personalizada e direcionada, minimizando efeitos adversos e aumentando a adesão ao tratamento. A capacidade dos nanomateriais de superar barreiras biológicas e de liberar medicamentos de forma controlada é uma inovação que tem o poder de transformar o tratamento de uma ampla gama de doenças infecciosas e crônicas.

Como as Vacinas Vivas, como a OPV, Podem Reduzir a Mortalidade e Impactar Outras Doenças Infecciosas

Em 1975, a Bulgária iniciou uma ampla campanha de vacinação com a vacina oral contra a poliomielite (OPV) para conter um surto de uma doença aguda com sintomas semelhantes à poliomielite, porém sem relação com o enterovírus 71 (Shindarov et al. 1979). Os efeitos protetores da OPV foram comprovados de maneira significativa, com uma redução de cerca de 32% na mortalidade infantil quando administrada ao nascimento, com base em dados de um estudo randomizado controlado (RCT) realizado na Guiné-Bissau, na África Ocidental (Aaby e Benn 2019). Além disso, um estudo investigou o impacto da vacinação anual e semestral com OPV em nível nacional, encontrando uma redução de 19% na mortalidade por todas as causas. Campanhas subsequentes resultaram em uma nova redução de 13% (Andersen et al. 2018). Esses achados ressaltam a natureza não específica da proteção induzida pela OPV, pois foram observados mesmo na ausência de casos de poliomielite (Chumakov et al. 2020).

Em outro estudo, a OPV demonstrou reduzir significativamente a morbidade associada a infecções bacterianas diarreicas entre bebês em Bangladesh, quando comparada com a vacina inativada contra a poliomielite (IPV) (Upfill-Brown et al. 2017). Da mesma forma, uma pesquisa realizada na Finlândia revelou que as crianças vacinadas com OPV apresentaram uma taxa mais baixa de infecções no ouvido médio do que o grupo que recebeu a IPV (Seppälä et al. 2011). Uma análise de estudos anteriores na Dinamarca relatou que as internações hospitalares por infecções respiratórias pediátricas eram menores quando a OPV era utilizada (Sørup et al. 2016).

Esses resultados sugerem que a proteção proporcionada pelas vacinas vivas, como a OPV, pode se estender a doenças não relacionadas diretamente ao alvo da vacina. Isso se deve, em grande parte, à ativação de uma resposta imune mais ampla e eficaz. A imunidade inata, responsável pela primeira linha de defesa contra patógenos, desempenha um papel crucial nesse mecanismo de proteção. O sistema imune inato inclui células como monócitos, macrófagos, neutrófilos, células dendríticas e células NK, que são capazes de reconhecer padrões moleculares de patógenos e de danos, sem a necessidade de uma memória imunológica específica (Netea 2015; Medzhitov 2000).

Nos últimos anos, um número crescente de pesquisas desafiou a ideia de que a memória imunológica é uma característica exclusiva da imunidade adaptativa. Estudos mostraram que as células do sistema imune inato e até células-tronco residentes nos tecidos podem exibir propriedades adaptativas (Bowdish et al. 2007; Netea et al. 2011; Netea et al. 2016). Esse fenômeno, denominado "imunidade treinada", sugere que o sistema imune inato também possui características adaptativas. Compreender as características fundamentais da imunidade treinada é essencial para entender como o organismo se defende contra doenças infecciosas e os mecanismos subjacentes aos problemas imunes (Netea et al. 2020).

Pesquisas imunológicas sobre o treinamento da imunidade inata começam a oferecer explicações para os efeitos não específicos das vacinas (Aaby et al. 2014; Arts et al. 2018; Chumakov et al. 2021). As vacinas vivas induzem mudanças epigenéticas que fortalecem a resposta imune contra patógenos não relacionados e treinam o sistema imune inato. Por outro lado, vacinas não-vivas podem incentivar a "tolerância", o que torna as crianças mais vulneráveis a infecções e doenças associadas (Blok et al. 2020). Uma vasta compilação de dados epidemiológicos demonstrou que vacinas vivas, como a OPV, a vacina contra a varíola, a BCG e a vacina contra o sarampo, mostraram efeitos protetores positivos não específicos contra doenças além daquelas para as quais foram originalmente criadas (Aaby et al. 1995, 2006, 2010, 2011, Lund et al. 2015; Biering-Sørensen et al. 2017; Rieckmann et al. 2017; Andersen et al. 2018).

Por exemplo, estudos com a vacina BCG mostraram que ela promove a ativação não específica de células do sistema imune inato, como células NK e monócitos. A ativação dessas células está associada a uma diminuição da parasitemia em modelos de malária em roedores e a uma redução na mortalidade por malária em áreas endêmicas (Clark et al. 1976; Matsumoto et al. 2000; Parra et al. 2013). Estudos adicionais realizados em adultos (Kleinnijenhuis et al. 2012, 2014) e crianças (Jensen et al. 2015; Freyne et al. 2018) mostraram que a vacina BCG também oferece uma resposta imune robusta a outras infecções, incluindo a malária.

A hipótese de que vacinas vivas poderiam ser reutilizadas para combater infecções graves, como a COVID-19, ganhou força com a pandemia. Vários estudos sugeriram que países que utilizam a OPV apresentaram uma incidência reduzida de COVID-19 em comparação com aqueles que utilizam a IPV (Habibzadeh et al. 2022). Em um estudo randomizado realizado em uma universidade médica russa, um grupo de 1.115 indivíduos saudáveis recebeu uma dose única da vacina bOPV, enquanto o grupo controle recebeu um placebo. Após três meses de acompanhamento, o grupo que recebeu a OPV teve significativamente menos casos confirmados de COVID-19 (25 casos contra 44, p = 0.036) (Yagovkina et al. 2022). No entanto, outro estudo realizado durante a pandemia de COVID-19 não encontrou um efeito global benéfico da OPV sobre a morbidade grave em pessoas acima de 50 anos (Fisker et al. 2022).

Em um estudo adicional, observou-se que as mães de crianças vacinadas com OPV apresentaram menor vulnerabilidade ao SARS-CoV-2, provavelmente devido à exposição ao vírus enfraquecido presente nas fezes dos filhos (Habibzadeh et al. 2021). Isso ocorre porque, após a vacinação, as crianças expelem o poliovírus enfraquecido em suas fezes por várias semanas, e os cuidadores, como as mães, têm maior chance de entrar em contato com o vírus. Embora essa exposição possa oferecer alguma proteção, é importante lembrar que os efeitos protetores de vacinas vivas são complexos e ainda estão sendo investigados.

Por fim, embora as vacinas vivas como a OPV tenham mostrado uma gama impressionante de benefícios não específicos, é crucial entender que esses efeitos não substituem as vacinas específicas para doenças como a poliomielite, e as políticas de vacinação devem ser cuidadosamente planejadas para maximizar os benefícios de saúde pública.