Em 1967, Martin Luther King Jr., em seu livro Where Do We Go From Here? Chaos, or Community, escreveu: "A América sempre teve uma personalidade esquizofrênica em relação à questão racial" (68). Essa afirmação resume a tensão estrutural fundamental que define a história dos Estados Unidos, onde, por um lado, a nação foi fundada sob os princípios da igualdade e da justiça, mas, por outro, foi construída com práticas genocidas e mão de obra escrava. King, ao abordar essa dicotomia, engaja-se em dois temas cruciais para a compreensão da hierarquia racial dos EUA: o papel da escravidão na formação do país e a persistência do racismo anti-negro como uma força estrutural, central na constituição da ordem racial dos Estados Unidos (Bonds e Inwood, 2016; Feagin, 1991; Inwood e Bonds, 2013; Pulido, 2015; Stanley, 2016).

O ponto de partida para a análise de King, e também para muitos estudiosos do antirracismo, é que a opressão branca sobre os negros não é apenas um elemento fundacional dos Estados Unidos, mas constitui o alicerce sobre o qual outras formas de opressão racial foram construídas. Essa realidade está intimamente ligada ao conceito de que a escravidão, enquanto prática de subordinação, introduziu o domínio das vidas negras como uma condição permanente na economia política dos Estados Unidos (Woods, 1998). Woods observa que a escravidão, ao lado da produção massiva de versões romantizadas da vida nas plantações e de estereótipos negativos dos afro-americanos, foi fundamental na construção da cultura popular nacional e nas alianças antinegras que se desenvolveram ao longo da história, desde a era antebellum até os dias atuais (1998: 47).

Essas representações populares, sejam idealizadas ou distorcidas, são manifestações de uma supremacia branca espacializada que visa controlar e conter a população negra. As práticas de controle, ligadas diretamente à lógica das plantações, moldaram as interações raciais nos Estados Unidos de uma forma que continua a influenciar o país até os dias de hoje (McKittrick, 2011). A lógica do plantacionismo, que justificava a propriedade das vidas negras, não apenas se tornou uma base sólida para o desenvolvimento do capital, mas também é fundamental para a operação e manutenção da hierarquia racial nos Estados Unidos (Woods, 2007).

Em um nível mais amplo, a intersecção entre o racismo anti-negro e o capitalismo nos Estados Unidos revela um sistema flexível que se adapta conforme os desafios a essa hierarquia racial surgem. Isso ocorre através de uma estratégia em que a "branquitude" é constantemente redefinida para garantir que os privilégios dos brancos sejam preservados. Por exemplo, quando populações negras ou outras minorias sociais ou políticas conquistam direitos civis ou ganhos econômicos, esses progressos são frequentemente retratados como uma ameaça à posição privilegiada dos brancos. Este fenômeno é interpretado como uma forma de perda, e não como um avanço coletivo para a sociedade como um todo. Essa dinâmica leva ao que é conhecido como "reação branca" – um retrocesso à medida que os brancos percebem seus privilégios ameaçados por ganhos dos negros e outros grupos marginalizados.

Essa reação não é um evento isolado. Ela faz parte de uma narrativa histórica mais ampla que remonta ao fim da Guerra Civil dos EUA, quando os trabalhadores brancos, em vez de apoiar as aspirações de liberdade dos afro-americanos libertos, frequentemente ajudaram a impedir a construção de uma sociedade mais justa. W.E.B. Du Bois, em seu livro Black Reconstruction in America (1935), destacou o papel crucial dos trabalhadores brancos na erradicação dos sonhos de liberdade dos afro-americanos, após a abolição da escravidão. Du Bois, assim como outros estudiosos, aponta para a maneira como os trabalhadores brancos, apesar de suas próprias condições de subordinação, foram cooptados pelas elites brancas para garantir que a hierarquia racial fosse mantida, muitas vezes em detrimento dos próprios interesses dos trabalhadores. A análise de Du Bois oferece uma lente histórica para entender não apenas o passado, mas também para situar as questões raciais no presente.

A ascensão de figuras políticas como Donald Trump, que capitalizaram as ansiedades raciais e a sensação de que a posição privilegiada dos brancos estava sendo ameaçada, é um exemplo claro de como a política racial nos Estados Unidos se adapta e se reinventa diante dos desafios a seu status quo. A retórica de Trump, que apelava ao "Make America Great Again", não era apenas um chamado econômico, mas um movimento para restaurar o domínio branco e reduzir os ganhos conquistados por mulheres, negros, imigrantes e outros grupos historicamente oprimidos. Esse fenômeno não é algo novo, mas parte de um padrão recorrente na política dos Estados Unidos, onde a percepção de uma ameaça à "branquitude" sempre gera uma reação conservadora, que busca preservar a ordem racial.

O racismo anti-negro e o papel da branquitude como uma força contrarrevolucionária dentro da política e economia dos EUA exige uma compreensão mais profunda dos processos contínuos de dominação e subordinação racial. Essa flexibilidade do Estado racial dos EUA, fundamentada na supremacia branca, permite que ele se ajuste conforme as mudanças sociais e econômicas, preservando assim a posição dos brancos, mesmo em face das lutas progressistas. Assim, quando movimentos como o Black Lives Matter ou a luta por direitos das mulheres ganham força, o Estado racial e as forças políticas que o sustentam reagirão, buscando sempre restaurar uma ordem racial que favorece a branquitude.

É fundamental entender que a construção racial nos Estados Unidos não é uma questão que se resolve com reformas isoladas, mas sim um processo contínuo de reconstrução de identidades e estruturas de poder. A maneira como a branquitude se adapta e responde às ameaças percebidas é central para compreender os desafios atuais e futuros na luta por igualdade racial. Portanto, é necessário olhar para o papel da história e da memória racial nos Estados Unidos para compreender os movimentos contemporâneos, pois a luta pela justiça racial é, em grande parte, uma luta pela redefinição do que significa ser branco, negro e tudo o que se situa entre essas categorias.

A Ascensão do Trump e a Perpetuação da Supremacia Branca na Economia Política dos EUA

Ao contrário do que muitos comentaristas políticos predominantes sugerem, a ascensão de Donald Trump ao poder não pode ser reduzida a um simples fenômeno de frustração econômica ou reação contra elites políticas. Essa visão superficial obscurece o papel central que as políticas de supremacia branca desempenham na economia política dos Estados Unidos. Desde o seu início, a política dos EUA tem sido caracterizada pela estagnação de mudanças progressistas e até mesmo radicais, em grande parte devido ao domínio e à resistência do conceito de "branquitude", que permanece central para a compreensão do capitalismo no estilo norte-americano.

W.E.B. Du Bois, em sua obra Black Reconstruction, já abordava como a "branquitude" foi uma força que impediu a transformação social, economica e política nos Estados Unidos, refletindo uma resistência estrutural a qualquer avanço que pudesse desafiar as hierarquias raciais estabelecidas. A análise de Robinson (1983) de como as classes dominantes nos EUA, ao entrarem em uma crise prolongada, recorrem à violência legal e ilegal, à corrupção eleitoral e, especialmente, ao reforço da supremacia branca como uma forma de preservar seu poder, nos dá uma chave de leitura crucial para entender o apoio imbatível que Trump recebeu de uma parcela significativa da população branca.

O apoio que Trump obteve nas urnas, especialmente entre aqueles que viam a sua eleição como uma forma de resistência contra uma mudança demográfica iminente, é o reflexo de um ressentimento profundamente enraizado. A crise neoliberal, que desestruturou a classe média e exacerbou as desigualdades sociais, não é a única explicação para o voto em Trump. É necessário olhar para o medo da "substituição" demográfica e a ascensão de uma sociedade que, para muitos brancos, representa uma ameaça à sua hegemonia. O projeto neoliberal, com suas promessas de prosperidade baseadas na competição global e no mercado livre, resultou, na prática, em uma crescente concentração de riqueza e poder, afetando principalmente as classes médias brancas.

Além disso, a ascensão de Trump também está intimamente ligada a uma cultura política que marginaliza e desumaniza as populações não-brancas. O discurso do "Make America Great Again" é, de certa forma, uma manifestação de um desejo nostálgico por uma era onde a ordem racial estava clara e a supremacia branca era indiscutível. Para muitos de seus apoiadores, Trump não foi apenas um candidato que prometia restaurar empregos ou segurança econômica, mas alguém que representava a luta contra um futuro em que o papel dos brancos, como maioria cultural e política, estivesse em risco.

Esse fenômeno deve ser compreendido dentro de um contexto mais amplo, onde as dinâmicas de raça, classe e poder se entrelaçam. A obra de Feagin (2000) sobre a América racista, por exemplo, nos fornece uma base sólida para entender como o racismo não é um incidente isolado, mas uma estrutura que permeia as instituições e as práticas sociais. A resistência à mudança que Trump representa não é apenas uma reação contra políticas progressistas, mas também uma tentativa de manter o status quo racial. Para isso, ele se apoiou em uma retórica de medo, xenofobia e exclusão, que ressoou especialmente entre os brancos mais descontentes com as mudanças demográficas e econômicas do país.

Compreender as raízes da eleição de Trump exige que olhemos além das explicações convencionais de crise econômica ou insatisfação com a política tradicional. Trata-se de um fenômeno enraizado em dinâmicas raciais profundamente imbricadas na construção da identidade nacional e na perpetuação de desigualdades estruturais. Esse é um ponto crucial para os estudiosos da política americana e para aqueles que desejam entender o que está em jogo nas eleições e no futuro político dos Estados Unidos.

O que precisa ser enfatizado é que a ascensão de Trump não é um evento isolado, mas parte de um processo histórico contínuo de resistência a transformações que desafiem a ordem racial estabelecida. A "ressurreição" da supremacia branca, que se manifesta em práticas políticas, econômicas e sociais, reflete um desejo profundo de uma "América antiga", onde as desigualdades eram invisíveis ou consideradas naturais. Compreender essa dinâmica é essencial para qualquer análise sobre o futuro político e social dos Estados Unidos, pois ela reflete um confronto permanente entre as forças que buscam preservar um sistema de desigualdade racial e aqueles que lutam por uma sociedade mais inclusiva e justa.