Em 2012, a vitória de McCaskill em Missouri parecia simbolizar um momento de avanço moral coletivo. As palavras de Akin, minimizando o estupro com um argumento pseudo-científico, foram rejeitadas com firmeza, sobretudo pelas mulheres, que compunham 55% do eleitorado. A maioria dos eleitores considerou suas declarações decisivas para o voto, demonstrando um posicionamento claro contra a difamação das vítimas de estupro. Este momento representava um dos últimos reflexos de um padrão público de respeito e solidariedade às mulheres, especialmente às sobreviventes de violência sexual. No entanto, o que parecia uma vitória moral efêmera se dissipou rapidamente. Hoje, tais declarações recebem apenas debates efêmeros e polarizados, com o discurso público reduzido a um jogo de opiniões que relativizam a gravidade das agressões, como vimos com figuras públicas envolvidas em denúncias de abuso.

A aprovação, em 2019, de uma lei que proíbe o aborto após oito semanas, inclusive em casos de estupro ou incesto, é um marco sombrio nessa regressão. A legislação formaliza uma misoginia antes expressa apenas na retórica, conferindo mais direitos a homens — inclusive aos agressores — do que às próprias mulheres. Essa mudança legal revela não só o retrocesso nos direitos das mulheres, mas também a perda da capacidade da sociedade em reconhecer e proteger sua integridade.

Paralelamente, o caso de Ferguson, em 2014, e sua continuidade como epicentro da violência policial e do racismo estrutural, expõem outro lado da crise social em Missouri. A brutal morte de Michael Brown e a resposta policial violenta expuseram um sistema que insiste em negar justiça e perpetuar o sofrimento das comunidades negras. A atenção midiática e pública, que inicialmente parecia promessa de mudança, revelou-se insuficiente, pois o problema é um continuum histórico de dor, sem começo ou fim, marcado tanto pela violência explícita quanto pela burocracia opressora.

Essa realidade de St. Louis foi testemunhada e interpretada por muitos, como Umar Lee, cuja visão profética previa o avanço da extrema-direita, encarnada em figuras como Donald Trump. O episódio da visita de Trump a St. Louis, palco de confrontos violentos entre apoiadores e opositores, revela o quanto a política local reflete e alimenta tensões nacionais. O apoio a Trump em Missouri não pode ser reduzido a um bloco homogêneo; ele inclui desde pessoas motivadas por questões econômicas e sociais legítimas até ativistas do ódio e do medo. O que une muitos deles é um sentimento profundo de traição e abandono, que se manifesta em busca de respostas simplistas e, frequentemente, destrutivas.

A aparente cordialidade dos apoiadores nas filas para o comício de Trump, contrastando com a violência interna do evento, ilustra a complexidade desse fenômeno. A transformação de cidadãos comuns em multidão agressiva sob a influência de um discurso demagógico é um processo estudado historicamente, mas vivido em tempo real, colocando em xeque a resistência da sociedade civil diante do avanço autoritário.

É crucial compreender que o declínio das normas públicas, tanto no tratamento das mulheres quanto no enfrentamento do racismo, não é um fenômeno isolado, mas interligado a uma crise estrutural mais ampla. A legalização da misoginia, o endurecimento das políticas repressivas e a normalização da violência racial são sintomas de um sistema que falha em proteger os mais vulneráveis. A atenção deve ir além do espetáculo das controvérsias e protestos, para se concentrar nas raízes institucionais que perpetuam essas injustiças e na urgência de reconfigurar os valores coletivos.

Além disso, é imprescindível que o leitor reconheça como a polarização e a manipulação midiática fragmentam a percepção da realidade, dificultando a construção de consensos mínimos para o respeito e a justiça social. O entendimento dessa dinâmica é fundamental para enfrentar a naturalização do ódio e da exclusão, e para buscar caminhos que resgatem a dignidade humana em todas as suas dimensões.

Como as redes criminosas redefiniram o poder e influenciaram a política nos EUA?

A transformação do Estado em um regime dominado por redes criminosas é um fenômeno que ultrapassa o simples controle do crime organizado sobre setores marginais da sociedade. Hoje, essas redes infiltraram-se tão profundamente nas estruturas de poder que conseguem moldar as próprias definições legais, exonerar-se de acusações e perseguir quem tenta preservar o Estado de direito. Essa dinâmica se manifesta com a máfia comandando forças militares e criminosos controlando o sistema judiciário. Em outros contextos, tal situação seria claramente identificada como um golpe autoritário; no entanto, nos Estados Unidos, autoridades preferem suavizar o fenômeno com termos como “profundamente preocupante”, ao passo que ações concretas para conter o avanço desse poder paralelo permanecem insuficientes.

No centro dessa complexa teia de relações está a figura de Felix Sater, cuja trajetória exemplifica a ambiguidade e o entrelaçamento entre o crime organizado, agências de inteligência e o poder político. Após ser preso em 1998, Sater tornou-se informante do FBI, colaborando com investigações sobre a máfia até 2001. Seu histórico, entretanto, não impediu que ele se aproximasse da Organização Trump via a empresa Bayrock, justamente num período em que as prioridades do FBI estavam voltadas para o terrorismo islâmico após o 11 de setembro. A partir de meados dos anos 2000, Sater ascendeu em círculos de influência, apresentando-se como conselheiro sênior da Trump Organization e trocando correspondências com Michael Cohen, advogado pessoal de Trump, sobre estratégias para garantir o apoio de Vladimir Putin à candidatura presidencial de Trump. Essas comunicações evidenciam um conluio explícito para manipular o processo político em favor de interesses específicos.

Esse contexto torna inexplicável a aparente inação das agências de segurança norte-americanas diante da ascensão de Trump, apesar das ligações já conhecidas com figuras mafiosas e do Kremlin. A candidatura de Trump não apenas o colocou em contato com informações classificadas, como também abriu portas para que sua equipe, liderada por Manafort, ampliasse essas conexões obscuras. O fato de que Sater, um conhecido colaborador do FBI, fosse também uma peça-chave na rede de relacionamentos que envolvia Trump, torna quase impossível sustentar a ignorância oficial sobre esses vínculos.

A situação adquire contornos ainda mais inquietantes quando se observa a forma como Trump demonstrava publicamente sua relação com elementos criminais e autoritários, sem esconder suas amizades com figuras notórias e regimes autocráticos. Entretanto, sua relação com Sater permaneceu discreta, talvez por este último funcionar como um ponto de conexão crucial entre forças policiais dos EUA e oligarcas estrangeiros, com informações que poderiam revelar transações e acordos que Trump desejava manter em sigilo absoluto. Essa dupla face — a de celebridade e conivente com o submundo — tornou-se um pilar para a construção da narrativa política e pública de Trump.

O espetáculo político encenado durante os anos 2000, marcado pela fusão entre glamour e crime, atingiu seu auge com programas de reality show como The Apprentice, que misturaram entretenimento e legitimação pública, criando uma espécie de cortina de fumaça para práticas ilícitas. A popularização desse estilo alimentou uma cultura onde a imagem prevalece sobre a substância, e onde os vínculos obscuros podem ser mascarados como meros elementos do show business. Essa estratégia foi determinante para a eleição de Trump, cuja candidatura e governo representam uma forma sofisticada de autoritarismo disfarçado pela aura de celebridade e empresarialismo.

A compreensão desse fenômeno requer que o leitor reconheça o impacto do entrelaçamento entre crime organizado, agências estatais e figuras políticas no enfraquecimento das instituições democráticas. A normalização desse sistema corrupto compromete a separação dos poderes, a justiça imparcial e a soberania nacional. Além disso, é fundamental perceber que o papel das agências de segurança, longe de ser apenas técnico ou burocrático, envolve escolhas políticas e éticas que podem definir o destino da democracia. Ignorar essas conexões ou minimizá-las equivale a aceitar uma erosão silenciosa da governança legítima, com consequências profundas para a sociedade como um todo.

Como a Desumanização e a Desinformação Moldam o Poder e o Sofrimento nas Sociedades Contemporâneas

Estrelas online são a pior espécie de celebridade, aquelas que trazem notoriedade, mas não proteção. Bassem Masri, um amigo palestino-americano, ganhou fama temporária por seus discursos apaixonados contra a brutalidade policial e o racismo. Bassem era uma pessoa doce e generosa, que se preocupava com minha família em tempos difíceis. Em novembro de 2018, ele faleceu de ataque cardíaco aos trinta e um anos e, como tantos outros, tornou-se alvo de teorias conspiratórias e ódio na internet. A dor de perder ativistas próximos como ele é dupla: o luto pessoal e a dor de ver suas histórias apropriadas por repórteres distantes, ávidos por capitalizar a causa Ferguson enquanto ignoravam esses ativistas no dia a dia.

St. Louis exporta dor, e importa predadores. Desde 2014, o pedido é simples: parar de tratar pessoas como presas. Não é um apelo santimonioso, mas uma súplica pela sobrevivência. Michael Brown perdeu a vida porque Darren Wilson negou-lhe sua humanidade básica. As vítimas que seguiram foram ativistas que recusaram aceitar essa desumanização como última palavra. Protestar contra a desumanização, na era da mídia digital, é arriscar a própria vida, tornando-se alvo em um meio que distorce e devora sua identidade até que você não seja mais reconhecido como real.

Na data do primeiro aniversário dos eventos de Ferguson, o então candidato Donald Trump propagou mentiras perigosas, acusando imigrantes ilegais de serem responsáveis por gangues violentas, apesar de dados que mostram o contrário. A imigração irregular representa menos de 1% da população de Missouri e de Ferguson, um fato ignorado no discurso de Trump, que se aproveitou da cobertura midiática para propagar seu racismo e teorias conspiratórias. Sua história de disseminação de ódio inclui desde a campanha contra os Cinco do Central Park até a teoria da conspiração “birther” contra Barack Obama, forjando dúvidas sobre sua legitimidade como presidente.

O avanço da internet transformou a mídia, que antes praticava a checagem rigorosa, em um terreno fértil para a desinformação e o clickbait. Artigos passaram a repetir informações não verificadas, substituindo entrevistas reais por tweets descontextualizados. A velocidade se sobrepôs à precisão, e Trump explorou essa dinâmica, criando um ciclo vicioso de fake news que permeou televisão, internet e redes sociais.

Essa estratégia remete à “Grande Mentira” usada pelo Terceiro Reich, descrita por Adolf Hitler como um mecanismo de manipulação que se aproveita da simplicidade primitiva das massas emocionais. A grande mentira não apenas é audaciosa, mas encontra força na repetição massiva: bots, retweets, tendências, todos validando e amplificando o falso até que pareça verdade. Essa mentira sistêmica persiste porque se apoia na confiança residual nas instituições de mídia, usada por líderes como Trump para semear divisão.

Birtherismo nunca foi sobre a origem de Obama, mas sobre quem pode pertencer e ocupar espaços de poder. Para Trump, um magnata branco, o poder se enraizava no direito de nascimento ligado à raça. Obama, filho de um queniano e portador de um nome do Oriente Médio, quebrou o molde da presidência americana, provocando uma reação violenta entre os brancos privilegiados que sempre se beneficiaram da exclusão racial e étnica. Trump explorou essa tensão, alimentando a ideia de que imigrantes e “estranhos ilegítimos” roubavam o que “pertencia” a eles, reforçando a branquitude como escudo contra dificuldades.

O racismo é um mal persistente que jamais se resolve por si só. Na história dos EUA, o preconceito só foi contido por leis, muitas vezes impopulares entre os brancos. A branquitude sempre funcionou como moeda social e econômica, e a ilusão de uma sociedade “pós-racial” após a eleição de Obama foi tão falsa quanto a recuperação econômica pós-crise de 2008. Essas ilusões coexistem e alimentam sistemas de exclusão que permanecem vivos e estruturais.

É essencial compreender que o enfrentamento da desumanização vai além da denúncia explícita. Trata-se de reconhecer como a mídia e a política instrumentalizam o medo e o preconceito para manter hierarquias de poder. A batalha por justiça social exige uma leitura crítica das fontes, um entendimento das narrativas históricas que moldam os discursos e a consciência de que a desinformação é uma arma poderosa contra a mudança. O ativismo hoje implica um risco constante, não apenas físico, mas também existencial, diante de um sistema que reduz o ativista a um personagem deslegitimado e invisível.

A luta contra a desumanização demanda solidariedade que transcenda as fronteiras digitais, a construção de redes de apoio concretas e a resistência à naturalização do sofrimento alheio. Reconhecer a complexidade dessas dinâmicas permite entender que os conflitos sociais são manifestações de sistemas profundos de poder, e que a transformação real exige mais do que palavras — exige persistência, empatia e uma recusa intransigente em aceitar as mentiras que moldam o mundo.

Por que a investigação Mueller não impediu a consolidação autocrática nos EUA?

A investigação conduzida por Robert Mueller sobre a interferência russa nas eleições americanas e possíveis crimes correlatos foi esperada por muitos como a salvação da democracia americana. Contudo, a expectativa de que ela pudesse deter o avanço autocrático e o enfraquecimento das instituições revelou-se exagerada e, em grande parte, frustrada. Desde o início, a investigação parecia estar limitada pela compreensão equivocada da natureza do poder autocrático: ele não se restringe ao protocolo, mas à pura força, ao domínio concreto sobre as instituições e as regras do jogo. Tentar agir “de acordo com o livro” enquanto o livro está em chamas é um erro fatal para qualquer investigação que pretenda enfrentar forças autoritárias.

Mueller, cuja trajetória institucional esteve vinculada ao FBI entre 2001 e 2013, era a personificação do institucionalismo que acreditava na força das instituições formais. Porém, suas ações revelaram-se insuficientes diante da gravidade da situação. A demora em agir contra figuras como Paul Manafort, cujos crimes remontavam aos anos 2000, revela uma hesitação que custou caro à integridade da investigação. Ainda que Mueller tenha reconhecido os perigos da interferência estrangeira e do crime transnacional, a falta de medidas contundentes, bem como a ausência de transparência e agilidade, facilitaram a permanência de um sistema corrupto que, em última análise, favoreceu o avanço autoritário.

A expectativa de que a investigação seria a tábua de salvação gerou fenômenos sociopolíticos complexos, como o surgimento do “savior syndrome” — uma espécie de síndrome do salvador. Durante períodos de instabilidade e medo, cidadãos desesperados tendem a projetar esperanças em figuras ou investigações que parecem representar a luz no fim do túnel, mesmo quando a realidade se mostra muito mais complicada. No caso dos Estados Unidos, essa síndrome se manifestou tanto em seguidores fervorosos de Mueller quanto em cultos conspiratórios como o QAnon, que atribuíam a uma figura misteriosa a responsabilidade por derrotar a corrupção e a tirania, numa narrativa tão fantasiosa quanto perigosa.

A defesa acrítica de Mueller, por parte de muitos especialistas e políticos, criou uma polarização onde críticas legítimas à investigação foram tachadas de heresia. No entanto, analisar as falhas da investigação é crucial para compreender os limites da institucionalidade diante da ameaça autocrática. Mueller cometeu erros graves, desde omissões estratégicas até a não acusação dos envolvidos mais perigosos. Esses equívocos não apenas permitiram que os criminosos continuassem impunes, mas também enfraqueceram a resposta política necessária para conter o avanço antidemocrático.

Ainda assim, o relatório Mueller contém evidências valiosas, incluindo múltiplos exemplos de obstrução da justiça, que deveriam ter impulsionado uma ação política decisiva. A demora do Congresso em iniciar o processo de impeachment, mesmo após o relatório, simboliza um colapso institucional maior, no qual a política se subordina a interesses estratégicos, e o combate à corrupção é negligenciado. Essa hesitação permitiu que o autoritarismo se consolidasse ainda mais, ao mesmo tempo em que manifestações legais e morais de responsabilidade foram deixadas de lado em nome de cálculos políticos.

Entender o fracasso da investigação Mueller também exige reconhecer o papel do Judiciário e das instituições políticas em sua incapacidade de responder adequadamente. A confiança excessiva em procedimentos legais tradicionais, combinada com o medo de confrontar diretamente o poder autocrático, resultou em um jogo político de hesitações, dando margem para que os autores das violações continuassem a agir impunemente. A complacência do Congresso e a conivência de figuras como o então procurador-geral Bill Barr aprofundaram ainda mais a crise.

A experiência americana serve como um alerta para outras democracias: o combate ao autoritarismo exige mais do que investigações formais e respeitabilidade institucional. Requer coragem política, mobilização social e a disposição de agir fora dos limites convencionais quando o sistema está sendo corroído por dentro. A compreensão desse contexto é essencial para que os leitores percebam que o autoritarismo não é derrotado apenas com processos legais, mas com a vigilância ativa e a capacidade de antecipar movimentos do inimigo. O fracasso da investigação Mueller não é apenas uma questão de falhas individuais, mas um sintoma do enfraquecimento das instituições e da própria democracia, que deve ser enfrentado com estratégias mais amplas e conscientes.

Como Jeffrey Epstein manteve sua rede de poder e silêncio por décadas?

A trajetória de Jeffrey Epstein não é apenas um caso de abuso sistemático e violência sexual, mas um retrato sombrio de como riqueza, conexões e opacidade financeira podem alimentar uma rede criminosa transnacional, sustentada por silêncio, intimidação e impunidade. O que se revela não é apenas a figura de um predador, mas o ecossistema que o protegeu por décadas — composto por banqueiros complacentes, figuras políticas influentes, celebridades cúmplices e instituições dispostas a ignorar os sinais de alerta.

Epstein movimentava seu dinheiro através de canais que normalmente exigiriam transparência. No entanto, o Deutsche Bank, uma das maiores instituições financeiras do mundo, permitiu durante anos transações suspeitas sem questionamentos significativos. Era o fluxo financeiro que sustentava o império de influência de Epstein, permitindo-lhe manter propriedades em diversas partes do mundo, aviões privados e uma infraestrutura destinada a atrair, manipular e controlar jovens vítimas.

As acusações que se multiplicaram ao longo dos anos, muitas das quais abafadas ou ignoradas, revelam que Epstein agia com a segurança de quem sabe estar protegido. A investigação conduzida pelo Miami Herald expôs como procuradores ofereceram a ele acordos judiciais absurdamente favoráveis, inclusive permitindo-lhe cumprir pena em condições quase domiciliares, mesmo após ser condenado por exploração sexual de menores. Acordos de não acusação e o sigilo mantido em processos judiciais garantiram que os detalhes mais perturbadores de seus crimes permanecessem ocultos ao público por anos.

Mas talvez o mais perturbador não seja apenas o silêncio das instituições, e sim o das pessoas. Alan Dershowitz, advogado e acadêmico renomado, foi diretamente implicado por vítimas que o acusaram de envolvimento direto nos abusos. Sua resposta pública — repleta de justificativas caricatas como “mantive minha roupa de baixo durante a massagem” — não fez mais do que lançar uma luz cínica sobre a banalização das denúncias, tratadas muitas vezes com sarcasmo e descrença.

No núcleo dessa rede estava Ghislaine Maxwell. Apresentada em círculos sociais como filantropa e intelectual, ela agia, segundo as vítimas, como a facilitadora essencial de Epstein — recrutando jovens, manipulando-as, oferecendo segurança e recompensas antes de entregá-las ao predador. Filha de Robert Maxwell, magnata da mídia britânica cuja morte misteriosa e escândalos financeiros levantaram suspeitas de espionagem e corrupção, Ghislaine cresceu num ambiente de poder, sigilo e manipulação. A familiaridade com o uso da influência como escudo parece ter sido herdada como parte da estrutura moral que mais tarde sustentaria a máquina de Epstein.

Os laços de Epstein se estendiam às figuras mais poderosas da política global. Donald Trump, Bill Clinton e o príncipe Andrew são apenas alguns dos nomes citados repetidamente em conexões com ele — em eventos sociais, viagens e, em alguns casos, em denúncias formais. Embora a ligação direta de alguns deles com os crimes permaneça juridicamente não comprovada, a frequência e proximidade dessas relações levantam questões sérias sobre como o carisma, o dinheiro e a influência podem ser utilizados para criar redes de proteção mútua.

A revelação de um passaporte estrangeiro encontrado na mansão de Epstein, utilizado para entrar em países do Oriente Médio nos anos 1980, apenas reforça o caráter internacional e clandestino de suas atividades. Seus contatos com o mundo da espionagem, sugeridos por múltiplas fontes, incluindo a biografia investigativa sobre Maxwell pai, apontam para um entrelaçamento entre crime sexual e operações de inteligência, onde o controle de informações comprometedoras sobre figuras públicas se torna moeda de troca.

Importa compreender que a história de Epstein não é excepcional. Ela é um espelho de como as elites globais constroem redes de silêncio e cumplicidade. É a história de como vítimas podem ser descartadas como “nada”, como afirmou uma figura citada no Vanity Fair, e de como a impunidade pode se sustentar por décadas quando quem comete os crimes também é quem molda as regras. O sistema jurídico, os bancos, a mídia e os círculos sociais de elite — todos, em diferentes momentos, falharam não apenas com as vítimas, mas com a própria ideia de justiça.

É essencial que o leitor compreenda que o caso Epstein não se sustenta unicamente sobre sua vontade de dominar ou explorar, mas sobre a disponibilidade das estruturas sociais para permitir que isso ocorra. É no olhar desviado, no silêncio recompensado, na normalização da proximidade com o poder corrompido, que tais monstros se constroem.