Entre 1957 e 1980, as taxas de homicídios nos Estados Unidos mais que dobraram, passando de 4,0 para 9,9 por 100 mil habitantes. Essa violência não se distribuiu uniformemente pelo país, mas concentrou-se em grandes centros urbanos, impactando desproporcionalmente a comunidade negra. Quando analisamos demograficamente, as disparidades tornam-se ainda mais chocantes: em 1960, a probabilidade de um homem negro ser vítima de homicídio ao longo da vida era de 1 em 36, e essa taxa aumentou para 1 em 20 em 1980. Para se ter uma ideia do contraste, a mesma probabilidade para mulheres brancas em 1980 era de 1 em 417. Esse cenário expõe um fracasso estrutural em enfrentar a pobreza e a opressão racial, que permeiam o tecido social dessas comunidades.

Embora os índices de consumo de drogas tenham diminuído no país no início dos anos 1980, as comunidades negras urbanas passaram a ser devastadas pela epidemia do crack. A origem desse fenômeno não pode ser dissociada de questões políticas e geopolíticas: a CIA admitiu que grupos guerrilheiros na Nicarágua, apoiados por ela, introduziram ilegalmente drogas nos Estados Unidos. Essas substâncias chegaram às ruas dos bairros negros das cidades americanas, alimentando o que viria a ser uma crise social profunda. Durante a Guerra às Drogas, a própria CIA obstruiu investigações das redes de tráfico, pois essas operações ajudavam a financiar seu conflito secreto na América Central.

O crack é produzido a partir da cocaína em pó, dissolvendo-a em água e bicarbonato de sódio, e então fervendo até a água evaporar. Esse processo resulta em uma droga muito mais barata e acessível do que a cocaína em pó. Além disso, sua forma de consumo – fumada – provoca um efeito eufórico mais imediato e intenso, em contraste com a cocaína em pó, que normalmente é aspirada. A facilidade de aquisição de pequenas quantidades por preços baixos ampliou drasticamente o mercado consumidor, atingindo pessoas que antes não tinham acesso à droga. Em um contexto de desemprego estrutural e abandono urbano, a venda de crack tornou-se uma alternativa econômica atraente para muitos, apesar dos riscos envolvidos. Isso criou mercados informais e ilícitos, nos quais compradores e vendedores se organizaram em torno da síntese do crack, expandindo a epidemia.

É fundamental compreender que essa crise não foi apenas uma questão de criminalidade ou uso de drogas isolado, mas um fenômeno complexo, resultante da interseção entre políticas públicas falhas, racismo institucional, marginalização econômica e intervenções geopolíticas. O impacto dessas dinâmicas ultrapassa o âmbito da saúde pública, afetando profundamente as estruturas familiares, a coesão social e as perspectivas de vida das comunidades afetadas.

A compreensão do contexto histórico e social é essencial para que se possa avaliar a crise do crack e a violência urbana em suas dimensões completas. A violência extrema e o consumo desenfreado de drogas são sintomas visíveis de um sistema que falhou em proteger e investir nas populações negras urbanas. Essa análise abre caminho para repensar as políticas de combate às drogas e à violência, enfatizando a necessidade de intervenções que considerem as raízes sociais, econômicas e raciais desses problemas, e que promovam reparação, inclusão e justiça social.

É possível criminalizar a gravidez?

A intersecção entre leis penais e políticas reprodutivas tem gerado uma crescente preocupação com a criminalização de ações tomadas por pessoas grávidas. Jurisprudência recente nos Estados Unidos mostra que há uma tendência à aplicação de normas penais em contextos tradicionalmente tratados no âmbito da saúde pública ou da política social. Um dos exemplos mais contundentes é o uso de leis sobre agressão fetal ("fetal assault laws") e homicídio fetal para punir comportamentos de gestantes, muitas vezes em situações de vulnerabilidade, dependência química, ou pobreza extrema.

O conceito de “personhood” fetal — a atribuição de personalidade jurídica ao feto — sustenta muitas dessas iniciativas legislativas. A ideia, embora juridicamente controversa, foi progressivamente incorporada em diversos códigos penais estaduais, resultando em casos nos quais mulheres foram presas por condutas como o uso de substâncias durante a gravidez, recusas de tratamento médico, ou mesmo partos em domicílio considerados de risco. Essas leis, sob a justificativa de proteger a vida em formação, acabam por desconsiderar a autonomia corporal da pessoa grávida e a complexidade social dos contextos em que essas condutas ocorrem.

A aplicação dessas leis não é neutra. Há uma seletividade evidente que recai de forma desproporcional sobre mulheres negras, indígenas, pobres e usuárias de drogas. A estrutura jurídica penal, ao ser mobilizada contra essas populações, transforma desigualdades sociais em transgressões criminais. A criminalização da gravidez é, assim, uma extensão da lógica punitiva que caracteriza o encarceramento em massa e a medicalização coercitiva da pobreza.

Além disso, muitas dessas medidas se ancoram em narrativas morais e culturais que associam maternidade ao sacrifício absoluto e à abnegação. Aquelas que fogem desse ideal — seja por escolhas pessoais, condições de saúde mental, ou limitações materiais — tornam-se alvos fáceis de processos judiciais. Esse enquadramento jurídico-moral anula a possibilidade de reconhecimento das mulheres como sujeitos de direitos plenos durante a gestação, reduzindo-as à condição de invólucro biológico a serviço da reprodução.

A eugenia, embora historicamente associada a práticas do início do século XX como a esterilização forçada, permanece presente sob novas formas. Ela se manifesta, por exemplo, em políticas que visam regular a reprodução de determinados grupos sociais, impondo critérios médicos, jurídicos e morais sobre quem pode ou não ser mãe. A vigilância sobre o comportamento reprodutivo de mulheres pobres ou com deficiência continua a refletir uma lógica de controle populacional mascarada de proteção legal.

Por outro lado, movimentos por justiça reprodutiva têm denunciado esses mecanismos, defendendo que a saúde reprodutiva não pode ser separada da justiça social, racial e econômica. A crítica feminista às leis punitivas sobre a gravidez enfatiza que a solução para a proteção fetal não passa pela criminalização da gestante, mas sim pelo fortalecimento de políticas públicas de saúde, apoio psicossocial e combate à desigualdade estrutural.

A expansão das leis penais ao campo da reprodução não é apenas uma questão jurídica, mas uma disputa política e simbólica sobre o corpo feminino, a maternidade e o controle do Estado sobre os limites da vida e da autonomia. A ideia de que o feto pode ser sujeito de direitos plenos e concorrentes aos da gestante abre precedentes perigosos, que colocam em risco o direito à liberdade, à saúde e à privacidade de milhões de mulheres.

É essencial reconhecer que, por trás da retórica da proteção à vida, frequentemente se esconde um projeto de governança dos corpos, no qual o aparato jurídico-penal é mobilizado para manter estruturas de dominação racial, econômica e patriarcal. A criminalização da gravidez não é um desvio do sistema legal, mas uma expressão coerente de sua vocação disciplinadora frente àquilo que considera desvio — seja ele biológico, moral ou social.

A análise da aplicação dessas leis também revela sua profunda ineficácia em alcançar qualquer tipo de proteção concreta ao nascituro. Ao contrário, elas geram medo, desconfiança no sistema de saúde, evasão do pré-natal, e rompimento de vínculos familiares. A punição, nesses casos, não promove justiça, apenas desloca a dor e a responsabilidade para quem já vive na margem da proteção institucional.

Importa compreender que o debate sobre justiça reprodutiva não pode se dar isoladamente das lutas mais amplas por justiça racial, contra o encarceramento em massa, pela autonomia dos corpos e pelo reconhecimento da diversidade de experiências humanas. A gravidez não pode ser transformada em território de punição.

Como o Racismo Médico e as Políticas Punitivas Moldam a Justiça Reprodutiva nos Estados Unidos?

O sistema de justiça reprodutiva nos Estados Unidos é entrelaçado com camadas históricas de racismo institucionalizado, misoginia, e controle estatal sobre os corpos das mulheres — especialmente mulheres negras, indígenas e de outras comunidades racializadas. O paradigma legal dominante, centrado na neutralidade formal e no igual tratamento jurídico, ignora as desigualdades estruturais que atravessam raça, classe e gênero. O resultado é uma forma de violência institucional disfarçada de legalidade.

As doutrinas jurídicas construídas em torno da proteção fetal são aplicadas de maneira desigual, frequentemente criminalizando mulheres grávidas em situação de vulnerabilidade social. Leis estaduais como as do Tennessee, que permitem a criminalização de mulheres que usam substâncias durante a gravidez, exemplificam essa tendência. Essas políticas não são aplicadas de forma universal, mas são seletivamente dirigidas a mulheres negras e pobres, reforçando estigmas raciais e morais sob a aparência de proteção da infância.

A jurisprudência dos Estados Unidos revela como decisões aparentemente neutras — como DeGraffenreid v. General Motors — falharam em reconhecer a interseccionalidade da opressão racial e de gênero. A resistência em aceitar que uma mulher negra não vive apenas o racismo nem apenas o sexismo, mas uma experiência única que combina ambos, tem permitido ao sistema legal perpetuar a invisibilização das violências sofridas por essas mulheres.

No contexto médico, o racismo estrutural assume formas específicas: a recusa de tratamento adequado, o viés clínico que descredita a dor de mulheres negras, e a imposição de esterilizações forçadas ou coercitivas. O caso de Carrie Buck e as políticas de eugenia do século XX não são meros resquícios históricos, mas estabelecem precedentes que ecoam na prática contemporânea. O controle reprodutivo permanece como ferramenta de disciplina social, principalmente sobre mulheres racializadas que desafiam os parâmetros normativos da maternidade branca e burguesa.

A criminalização do aborto e da perda gestacional (como natimortos e abortos espontâneos) transforma eventos médicos em potencialidades criminais. A decisão Ferguson v. City of Charleston, que autorizou testes de drogas em mulheres grávidas sem consentimento, institucionalizou a vigilância e punição em nome da saúde pública, ignorando os princípios fundamentais de privacidade, autonomia corporal e dignidade humana. Mais uma vez, as mulheres afetadas eram predominantemente negras e pobres.

A retórica da "proteção da criança" serve como justificativa moral para intervenções estatais profundamente punitivas. Mas esse zelo seletivo não se traduz em apoio social ou acesso a cuidados perinatais adequados. Em vez disso, há um ciclo de abandono: mulheres são punidas por engravidarem em condições adversas, por tentarem manter a gestação nessas mesmas condições, e depois por não corresponderem aos padrões idealizados de maternidade.

Além disso, a influência de instituições religiosas em hospitais e centros de saúde limita o acesso a métodos contraceptivos, abortos legais e esterilizações voluntárias. A imposição de códigos morais religiosos no atendimento médico reforça a marginalização das mulheres que não se encaixam nas normas hegemônicas da feminilidade cristã-branca.

É importante também entender que o aparato jurídico que rege essas políticas é sustentado por uma lógica punitivista mais ampla, enraizada na criminalização da pobreza e da negritude. A guerra às drogas, por exemplo, foi uma estratégia que mascarou a repressão racial sob o manto da saúde pública e da segurança. As cortes de drogas e as sentenças mínimas obrigatórias exemplificam a fusão entre justiça criminal e controle reprodutivo, onde a mulher grávida usuária de substâncias é vista não como paciente, mas como delinquente.

O resultado é a patologização da maternidade negra, a naturalização do sofrimento das mulheres pobres e a construção de um sistema que não protege vidas, mas as vigia, pune e silencia.

O leitor deve ainda considerar que a justiça reprodutiva vai além do acesso ao aborto. Trata-se do direito de ter filhos, de não ter filhos, e de criar seus filhos em segurança e dignidade. Isso implica questionar as bases legais que sustentam a supremacia branca na definição de quem é considerado merecedor de reprodução, cuidado e sobrevivência. Implica também reconhecer que os direitos reprodutivos são inseparáveis dos direitos civis, sociais e econômicos. Sem essa compreensão ampla, toda política pública corre o risco de reproduzir as mesmas exclusões que afirma combater.