Mesmo hoje, é comum que uma exegese baseada em “intuições corretas” se aproprie de textos radicais e adapte as intenções divinas aos próprios desejos do leitor. Os ouvintes de Jesus — especialmente os representantes das instituições religiosas — mostravam uma disposição firme em não escutar nada novo quando ele abria a boca. A Bíblia provoca respostas distintas: para centro-americanos, o relato natalino de Mateus — com sua ênfase na opressão política, na morte de crianças e numa família santa refugiada — evoca angústia concreta. Já para muitos norte-americanos, o mesmo texto apenas legitima uma celebração consumista. O texto bíblico molda seus próprios leitores, atrai seus fiéis — o que nas letras se chama teoria da resposta do leitor.

A imprevisibilidade da Bíblia a resgata da prisão de uma piedade excessiva que transforma palavras humanas em verdades literais — como se fossem a própria mente de Deus. É mais fecundo compreendê-la como um repertório sempre em expansão de encontros entre o divino e o humano. O Espírito movimenta-se por entre as palavras, inquieta interpretações fixadas, esvoaça significados sobre páginas de tipo imóvel. Não é seguro assumir antecipadamente que um livro divino se pareceria com aquilo que você mesmo escreveria. Lutero advertia: se Cristo não é encontrado no centro da leitura, a leitura está equivocada. Teólogos contemporâneos afirmam que a Bíblia deve ser responsabilizada perante Jesus Cristo. Há, por exemplo, seis versículos que mencionam a homossexualidade, mas mais de mil que giram em torno da pobreza. Alguns, como Jefferson, removeram os milagres do Novo Testamento para salvaguardar o racionalismo iluminista; outros, de viés conservador, extraem compaixão social e justiça de cada página sagrada — e o que resta é um texto esburacado, sem mistério.

Quando um leitor se envolve seriamente com um texto sagrado, algo se inverte: o chamado “círculo hermenêutico” descreve esse fenômeno em que o texto começa a ler você. Enquanto você interroga Deus, é Deus quem passa a interrogar você. Isso pode resultar num encontro com um Jesus que não se conhecia. Leituras renovadas podem desfamiliarizar passagens já domesticadas. Mas é preciso estar atento à hermenêutica do privilégio, aquela leitura em que o leitor — especialmente o cristão americano — pressupõe que o texto esteja naturalmente ao seu lado, branco, masculino, de classe média, patriótico. Nesse contexto, surge a necessidade de uma “exegese guerrilheira”, que leia a Bíblia na contramão, liberte seus textos dos guardiões oficiais, perturbe sua utilidade para a classe média, recupere a esperança bíblica como libertação para os pobres, e redescubra um novo evangelho social.

Enquanto muitos progressistas reverenciam pouco a Bíblia — orgulhosos do quanto não creem — e fundamentalistas a sufocam com zelo, a modernidade secular do pós-iluminismo criou um mundo no qual a Bíblia simplesmente não tem mais permissão para falar. Não se deve citá-la no espaço público, pois textos religiosos perderam validade pública. A intenção pode ser proteger o Estado da Igreja, mas o efeito é outra forma de cativeiro: a Bíblia é silenciada.

No entanto, aqueles que desejam proclamar algo no espaço público — como uma nova versão do evangelho social — podem encontrar suporte na crítica pós-moderna: não há textos inocentes, nem leitores neutros. Feministas desconfiam de textos patriarcais que se dizem objetivos. Pessoas racializadas rejeitam leituras marcadas pelo privilégio branco. Nenhuma fala, nenhuma crença, está fora dos conflitos sociais e das disputas por poder. Quem quer falar de um novo evangelho após Trump precisa reconhecer que textos teológicos são carregados de lutas existenciais — confrontos entre Deus e os homens.

O mundo estranho da Bíblia é uma das narrativas divinas possíveis. O mundo em que o leitor vive antes do texto não determina o mundo que pode encontrar dentro dele. O texto pode dizer algo novo, inesperado, ao leitor — e ao seu próximo. Narrativas como o Êxodo, a imaginação profética e as parábolas de Jesus existem para desestabilizar certezas. O objetivo de um texto sagrado não é reforçar o status quo, mas gerar mundos alternativos desde dentro. Essas histórias recuperadas — aquelas que C. S. Lewis julgava esquecidas, e sem as quais perdemos o fio da grande narrativa — podem recriar realidades capazes de mudar vidas.

Textos sagrados exigem peregrinações interiores e novos roteiros para o evangelho social. Esses caminhos podem atravessar a praça pública. Leitores que entram na igreja com mentalidade colonizadora — certos de tudo — poderão encontrar afirmações inesperadas. O encontro com um texto denso e misterioso, como o bíblico, exige não se defender do seu poder, mas abrir-se a ele, envolver-se existencialmente e, talvez, submeter-se.

Os textos bíblicos — assim como toda grande arte — são saturados de estranheza, mistério, densidade. Eles não fingem ser neutros. Lutero disse: se você não encontra o bebê de Maria, então não chegou ao Novo Testamento. E se não escuta boas novas para todos os povos, então ainda não entendeu nada. A narrativa de Deus como libertador — no Êxodo, nos profetas, em Jesus e Paulo — constitui o "cânon dentro do cânon". Essa luz ilumina até os recantos mais obscuros da Escritura.

Para que um novo evangelho social seja possível, é preciso permitir que a Bíblia desestabilize a sabedoria herdada do american way, de todos os partidos, classes e identidades. Esses textos recém-reivindicados devolvem à pregação moderna sua potência esquecida. A pregação pós-moderna não é uma heresia. É um retorno ao escândalo inicial da Palavra.

É importante entender que a leitura da Bíblia, como de qualquer texto com pretensão de verdade, não é um ato privado ou neutro. A interpretação carrega tensões sociais, lutas políticas e escolhas éticas. Ignorar isso é perpetuar uma leitura descompromissada e, muitas vezes, cúmplice de estruturas injustas. A Bíblia continua sendo uma narrativa aberta à surpresa, se for lida com atenção, coragem e disposição para o desconforto. As Escrituras não nos pertencem; somos nós que pertencemos a elas — ou não.

O Caminho da Recuperação Ecológica: O Papel da Espiritualidade e da Economia

Nos últimos anos, o movimento ambientalista tem se afastado da visão apocalíptica e fatalista que permeava as primeiras manifestações ecológicas, como o movimento Earth First! de 1980. Embora essa vertente não tenha perdurado, ela preparou o terreno para o surgimento de uma consciência ambiental mais madura e mais focada na celebração da vida e na necessidade de se levantar a voz contra as agressões feitas ao nosso planeta. A partir de 1970, com o nascimento do Dia da Terra, uma nova visão foi estabelecida: não estamos vivendo apenas com os recursos que a Terra oferece diariamente, mas sim, com o capital acumulado ao longo de milhões de anos, como as águas da era do gelo, o petróleo e os minerais que não são renováveis. Essa consciência nos exige um olhar para o passado, uma reavaliação de nossas ações, já que estamos hipotecando o futuro das gerações que ainda virão.

O movimento ecológico atual engloba uma vasta gama de preocupações, como o aquecimento global, o derretimento da camada de ozônio, a poluição, a escassez de água potável, a agricultura sustentável e, talvez uma das mais urgentes, o controle populacional. No entanto, mesmo diante dessas questões alarmantes, existem aqueles que ainda tentam justificar o modelo econômico atual e minimizar a urgência da mudança. A crença de que a superconsumo não é um problema biológico, ou que os preços de mercado irão sinalizar problemas ambientais, são algumas das ilusão que ainda prevalecem. Para os defensores do mercado livre, os recursos naturais parecem infinitos, e por isso, não têm valor econômico real. As considerações ecológicas, muitas vezes, são vistas como "externeidades" — algo fora do escopo das necessidades do mercado. Porém, à medida que o interesse e o lucro aumentam, a exploração dos recursos naturais se intensifica.

Em um sistema que enaltece a aquisição ilimitada, não se pode esperar que o respeito pela integridade da vida na Terra seja uma prioridade. O grande mito do capitalismo é a ideia de um mecanismo autorregulador de crescimento do mercado, uma ideia que, na prática, tem degradado culturas e esgotado os recursos naturais. Para que possamos de fato recuperar nossa relação com o meio ambiente, é preciso repensar a economia: ela deve ser uma economia moral, onde as relações econômicas sejam expressões de cuidado e interdependência, não de agressão e exploração. A natureza não é um recurso a ser conquistado, mas uma rede de interconexões que merece respeito.

A ciência moderna, que inicialmente contribuiu para a degradação da Terra ao tratar a natureza como um campo de conquista humana, agora se posiciona como um pilar fundamental do movimento ecológico. O olhar científico sobre a Terra tem sido gradualmente complementado pela necessidade de reintroduzir a ideia de sacralidade que a natureza possui, uma sacralidade perdida com o secularismo que emergiu após a Revolução Científica. Um aspecto importante dessa nova visão é a percepção de que a natureza não é apenas um sistema de leis naturais, mas também um lugar onde o divino se manifesta. Esse resgate não se restringe apenas ao campo científico, mas também à esfera espiritual, onde a terra deve ser remitologizada como um corpo sagrado. A visão de que a Terra é uma mãe cósmica, uma divindade feminina, foi suprimida ao longo da história, com a natureza sendo dominada por uma visão patriarcal que associava o domínio do homem sobre a Terra.

Mulheres têm sido pioneiras nesse movimento de recuperação da Terra como um ser vivo e divino, como demonstrado pelo movimento das mulheres indígenas na Índia nos anos 70. Elas se uniram para proteger as florestas, abraçando árvores, se deitando na frente de caminhões madeireiros e destruindo mudas de eucalipto, recusando as dicotomias ocidentais que dividem o público e o privado, a moralidade e o interesse pessoal, o biocentrismo e o antropocentrismo. As mulheres indigenistas, com uma profunda sabedoria intuitiva, entenderam que a Terra não é propriedade de ninguém, mas algo a ser respeitado e cuidado. Essa visão se alinha com as intuições dos profetas hebreus, que viam a Terra como o corpo de Deus, e com a necessidade de uma nova cosmogênese, em que a Terra e o céu se reconectem.

A luta ecológica é uma questão moral, e um movimento de justiça social, onde a religião, longe de ser um obstáculo, pode servir como catalisador. A ideia de que a justiça social é uma agenda política de esquerda, sem base na tradição cristã, é uma falácia. Pelo contrário, a fé cristã, em sua vertente mais progressista, encontra em Deus a fonte de um novo modo de ver o mundo e a natureza. A igreja, como uma "colônia do céu", não deve se limitar à vida privada, mas precisa atuar publicamente, engajando-se em resistência moral, insurreição e protesto contra as estruturas de poder dominantes. A prática da "imitação de Cristo", que envolve a renúncia ao privilégio e a aceitação do chamado à ação, deve ser vista como um modelo para a igreja contemporânea. Os cristãos devem ser estrangeiros em um mundo regido pelos valores do capitalismo, não aceitando o papel submisso que a sociedade moderna tenta lhes impor.

A ecologia e a espiritualidade se encontram em um ponto crucial: para salvar a Terra, é necessário não só um novo entendimento econômico, mas também uma nova forma de reverenciar a vida em todas as suas manifestações. A espiritualidade, longe de ser uma fuga da realidade, pode e deve ser a força transformadora que nos impulsiona a cuidar do planeta de forma profunda e integral, reconhecendo a sacralidade de tudo que nos rodeia.

A Igreja e o Evangelho Social: O Papel da Religião no Mundo Público

O governo não deve ser apenas neutro em relação à liberdade religiosa, mas deve nutrir e possibilitar a sua manifestação. O liberalismo protestante, por exemplo, que no passado se alinhava com os grupos que defendem a separação rígida entre a Igreja e o Estado, como a ACLU e os Protestantes Unidos pela Separação, agora vê, em um movimento cada vez mais crescente, a necessidade de integrar o discurso religioso no espaço público. As mudanças culturais pós-modernas, com a ênfase no multiculturalismo e o reconhecimento das diversas formas de expressão religiosa, estão pressionando a religião a assumir uma postura mais assertiva na vida pública, um movimento que é, sem dúvida, um reflexo da polarização política e moral no país.

A ideia de um cristianismo radical, por exemplo, quer ser o fermento que transforma a vida comum, que imagina e proclama novos mundos, e que anuncia um evangelho social. Grupos como o movimento Tikun judaico, assim como correntes mais radicais do cristianismo, defendem o Deus da libertação, que acompanha o povo na jornada do Êxodo e no Jubileu, oferecendo uma mensagem de renovação social. A religião radical recusa a ideia de que a política seja o único espaço de poder cultural; para ela, a religião não é um mero reflexo de fatores econômicos ou sociais, mas um elemento ativo, capaz de moldar as estruturas da sociedade.

No caso específico da Constituição americana, por exemplo, o verdadeiro desafio não é apenas a separação entre Igreja e Estado, mas a maneira como a visão iluminista do século XVIII construiu uma divisão entre religião e cultura, relegando a religião ao domínio privado, enquanto o espaço público se tornava o terreno exclusivo da política, da economia e do racionalismo. Essa divisão tornou-se mais pronunciada à medida que o pensamento secular ganhou força, mas a verdade é que nenhuma religião, muito menos o cristianismo, jamais aceitou ser confinada ao privado. O cristianismo sempre foi uma força pública, como demonstram suas origens: desde a resistência de Jesus à autoridade romana até o engajamento dos primeiros cristãos com o império.

O que vivemos hoje é uma era pós-moderna, onde todas as diversidades são reconhecidas e celebradas. No entanto, o papel da religião, especialmente o cristianismo, ainda não é adequadamente abordado nas discussões sobre as diversas “interseções” da sociedade. Se as diversidades de raça, classe e gênero são discutidas amplamente, a diversidade religiosa também merece ser levada em conta, já que a religião, especialmente na tradição cristã, tem sido um motor de transformação social desde os tempos bíblicos.

A Igreja, enquanto movimento social, desempenha um papel central nesse contexto. O Papa Francisco, por exemplo, retoma a essência do movimento franciscano ao viver de forma simples e ao fazer da Igreja um lar para todos, convidando o mundo a se aproximar de Cristo de forma inclusiva. Ele, assim como São Francisco de Assis, propõe não apenas uma contemplação, mas uma ação transformadora no mundo, algo que é fundamental para os cristãos. A ação social e a justiça são a base da fé cristã, sendo estas visões não meramente doutrinárias, mas práticas, que convidam o mundo a refletir sobre sua própria estrutura social e econômica.

O cristianismo atual não pode se restringir a um evangelho de bens materiais ou preocupações superficiais. A verdadeira mensagem do cristianismo, aquela que traduz a experiência do Êxodo e a esperança messiânica, exige uma análise crítica das forças econômicas que oprimem as pessoas. Não se pode vender um cristianismo barato, reduzido a questões como aborto ou contracepção, como se fosse a única agenda da Igreja. A verdadeira missão da Igreja é proclamar um evangelho social, um movimento que entenda as estruturas de injustiça e se posicione contra elas de forma ativa e estruturada.

Nos últimos anos, a Igreja Católica, por exemplo, teve que lidar com um retrocesso em sua relação com os movimentos sociais, especialmente após a década de 1960, quando o Concílio Vaticano II parecia renovar o engajamento da Igreja com as questões sociais. Muitos católicos, influenciados pela política conservadora, optaram por se concentrar apenas em questões como o aborto, deixando de lado o legado de justiça social que a Igreja sempre teve. Essa reclusão não é apenas um problema doutrinário, mas também político, pois muitos líderes religiosos se alinharam com partidos conservadores em nome de uma agenda moral restrita.

Entretanto, a resistência a esse movimento veio de dentro da própria Igreja. O Papa Bento XVI e outros membros da hierarquia católica denunciaram o capitalismo neoliberal e se alinharam com movimentos como o Occupy Wall Street, mostrando que a Igreja não pode se calar diante das injustiças sociais. Essa postura não deve ser vista como uma reação isolada, mas como parte de uma longa tradição de engajamento cristão com as questões sociais e políticas do seu tempo.

A mensagem do cristianismo, portanto, não pode ser reduzida a um conjunto de práticas privadas ou políticas conservadoras. O verdadeiro evangelho, aquele que é relevante para a sociedade contemporânea, deve se engajar ativamente na transformação das estruturas injustas que perpetuam a desigualdade e a opressão. Esse é o desafio que a Igreja enfrenta hoje: ser um movimento social e político, capaz de transformar a vida pública e criar um mundo mais justo e inclusivo.