Heather Capps, uma mulher branca de 25 anos do Alabama, deu à luz um bebê saudável por cesariana em 2011. O recém-nascido testou positivo para opioides. Heather havia desenvolvido dependência química após receber prescrição de analgésicos para tratar dores crônicas. Desempregada, vivendo com apoio do Medicaid e doações alimentares, mãe solteira de três filhos, Heather procurou ajuda. Sabia que a interrupção abrupta do uso de opioides poderia causar sérios riscos ao feto. Sabia também que, no Alabama, usar substâncias durante a gravidez era considerado abuso infantil, com base legal na acusação de "colocação química de um menor em risco".

Heather tentou controlar o uso por conta própria. Não tinha com quem deixar os filhos para se internar em uma clínica a 150 km de distância. Após o parto, foi presa. Ficou mais de um ano detida, sem poder pagar fiança de meio milhão de dólares. Mais tarde, declarou-se culpada de um crime classificado como felonia classe C – punível com até 10 anos de prisão. Condenada a três anos, poderia evitar a pena se concluísse um programa de reabilitação. Para isso, foi enviada a uma casa de apoio onde podia ver seus filhos apenas uma vez por semana. O acesso à assistência foi condicionado à punição. O tratamento tornou-se um privilégio mediado pelo Estado penal.

A história de Heather é uma entre centenas que ilustram como o sistema de justiça criminal dos EUA passou a controlar corpos de mulheres grávidas, especialmente quando essas mulheres são pobres, não brancas ou usuárias de substâncias. A criminalização da gravidez transforma o útero em cenário de vigilância, e a maternidade em objeto de punição. A narrativa jurídica dominante não vê essas mulheres como cidadãs com direitos, mas como potenciais criminosas cujo comportamento deve ser vigiado, corrigido e punido.

Sob a justificativa da "proteção do feto", estados como Alabama, Tennessee e Carolina do Sul vêm adotando leis que permitem a prisão de gestantes por uso de drogas, mesmo quando o uso é legalmente prescrito, como no caso de Heather. Os dados mostram que essas prisões aumentaram significativamente nos últimos anos, especialmente entre mulheres negras e latinas, em contextos de pobreza. A noção de "endangerment" – colocar em risco – é interpretada amplamente pelos promotores, incluindo não apenas o uso de substâncias, mas também a recusa de cesarianas, ausência a consultas médicas e até tentativas de suicídio durante a gravidez.

Essas políticas não têm respaldo científico. A Associação Médica Americana, o Colégio Americano de Obstetras e Ginecologistas e outras entidades profissionais são unânimes em afirmar que a criminalização da gravidez prejudica tanto a mãe quanto o bebê. O medo de ser presa afasta muitas mulheres dos serviços de saúde, tornando mais difícil o acesso ao pré-natal, ao tratamento para dependência química e ao apoio psicossocial. Em vez de promover saúde, essas políticas institucionalizam a violência obstétrica e o controle penal sobre a reprodução.

Há ainda um componente ideológico profundo nessas práticas. Ao definir juridicamente o feto como "pessoa" com direitos independentes da mãe, o Estado estabelece um conflito entre o corpo gestante e o ser gestado, onde o primeiro perde sua autonomia em nome da proteção do segundo. Isso não apenas reforça estigmas de gênero e classe, como também reabre debates sobre direitos reprodutivos num país onde o acesso ao aborto legal está sendo sistematicamente desmontado.

O caso de Heather revela que o problema não está na ausência de ajuda, mas na forma como essa ajuda é condicionada à disciplina, à vigilância e ao sofrimento. A sociedade americana oferece às mulheres como Heather não cuidado, mas coerção. O cárcere substitui o hospital. A sentença substitui o acolhimento. A criminalização da gestação expande o poder do Estado sobre a intimidade, sobre o corpo e sobre a vida das mulheres mais vulneráveis. A maternidade, nesse cenário, deixa de ser escolha e passa a ser destino disciplinado pelo medo.

Importante compreender que a política de criminalização da gravidez é inseparável do racismo estrutural e do neoliberalismo penal. Mulheres negras, indígenas, imigrantes e pobres são as mais afetadas. Elas são retratadas como "más reprodutoras", incapazes de exercer a maternidade de forma aceitável aos olhos do Estado. Essa narrativa legitima o afastamento de seus filhos, a esterilização forçada, a institucionalização da infância negra e indígena e a construção de prisões como resposta para a desigualdade social.

O debate sobre justiça reprodutiva precisa ir além do acesso ao aborto ou da liberdade de escolha. Trata-se de garantir que todas as pessoas possam ter filhos, não ter filhos e criar seus filhos com dignidade e liberdade, sem a ameaça constante da punição. A luta por justiça reprodutiva é, portanto, uma luta contra a criminalização da pobreza, contra o racismo institucional e contra a medicalização punitiva da maternidade.

Como as Leis de Proteção à Gravidez Criminalizam e Vulnerabilizam Gestantes?

As leis que se propõem a proteger pessoas grávidas, especialmente aquelas em situações vulneráveis à violência, frequentemente baseiam-se em um entendimento que ignora o protagonismo e os direitos das gestantes. Essas legislações, centradas no dano causado ao feto, desconsideram o impacto real e as necessidades da pessoa grávida, tratando o desenvolvimento do feto como um fim em si mesmo, muitas vezes à custa da autonomia e proteção da mulher.

Algumas dessas normas criminalizam terceiros que causam dano a óvulos fertilizados, embriões ou fetos, responsabilizando-os penalmente por atos que resultam em lesões ou morte do feto. São leis que operam num campo complexo entre a proteção do não nascido e a atribuição de personalidade jurídica ao feto, sem que haja uma definição clara ou uniforme sobre o momento a partir do qual essas proteções se aplicam. Isso gera uma variedade de interpretações, aplicadas de forma diversa em diferentes estados, e muitas vezes associadas a crimes de violência contra gestantes, como no caso dos homicídios de mulheres grávidas cujas tragédias ganharam repercussão pública e nomearam essas leis.

Essas legislações são frequentemente impulsionadas por reações emocionais da sociedade e do legislativo, especialmente quando envolvem casos de mulheres brancas e gestantes vítimas de crimes violentos, reforçando narrativas de vulnerabilidade vinculadas a identidades raciais e sociais específicas. O apelo emocional criado em torno de vítimas individuais — nomeando leis em homenagem a fetos que nunca nasceram — contribui para a consolidação de um discurso que associa valor ao feto e reduz a gestante à condição de mero ambiente ou protetora do feto, e não sujeito de direitos.

Além disso, tais leis frequentemente não ampliam as proteções jurídicas para as próprias gestantes, tampouco abordam adequadamente a questão da violência de parceiros íntimos, que é uma das causas mais comuns das lesões e mortes gestacionais. Ao criminalizar o dano ao feto, desconsideram a complexidade das relações e as múltiplas formas de violência que incidem sobre mulheres e meninas gestantes, sobretudo aquelas em contextos socioeconômicos desfavoráveis ou pertencentes a grupos racializados.

Um problema ainda mais grave está nas leis que penalizam as ações ou omissões das próprias gestantes durante a gravidez. Ao transformar comportamentos antes considerados legais em infrações criminais apenas por ocorrerem durante a gestação, essas normas violam direitos fundamentais, como o direito à privacidade, à autonomia corporal e ao devido processo legal. A criminalização do uso de substâncias durante a gravidez é um exemplo emblemático dessa dinâmica, onde gestantes são punidas por atitudes que, fora do contexto gestacional, não seriam consideradas crime.

Essas práticas de criminalização refletem uma lógica discriminatória e de controle social que recai desproporcionalmente sobre mulheres pobres e negras, configurando o que alguns estudiosos denominam “crimes de status” — infrações que só existem porque cometidas por indivíduos em uma condição específica, no caso, a gravidez. Isso aprofunda desigualdades já estruturais e contribui para a marginalização e estigmatização dessas mulheres, desviando o foco das verdadeiras causas dos riscos à saúde gestacional, como a pobreza, a falta de acesso a serviços de saúde e o ambiente social.

É fundamental compreender que a proteção real das pessoas grávidas não deve se basear na criminalização nem na instrumentalização do corpo gestante para fins políticos ou morais. A promoção da saúde e segurança durante a gravidez requer abordagens integradas, que respeitem a autonomia, garantam direitos e ofereçam suporte social e médico, além de combater as raízes da violência de gênero e as desigualdades estruturais. Compreender as implicações dessas leis é também reconhecer que a criminalização não resolve a violência, apenas a perpetua em novas formas, enquanto invisibiliza a complexidade das experiências das gestantes e seu direito à dignidade.

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Qual é o impacto das sentenças penais e das condições prisionais sobre mulheres grávidas nos Estados Unidos?

As sentenças impostas a mulheres grávidas nos Estados Unidos, especialmente em estados como Alabama e Carolina do Sul, revelam não apenas disparidades raciais persistentes, mas também uma estrutura punitiva que frequentemente ignora as necessidades físicas e psicológicas de gestantes e puérperas. As penas variam desde a liberdade condicional de um ano até vinte anos, e sentenças divididas (split sentences) que combinam períodos de reclusão com liberdade vigiada, podendo se estender por décadas. A não observância das condições impostas pode resultar em longas penas de reclusão. A média das sentenças diretas de prisão é de 66 meses, com variações raciais significativas: mulheres negras frequentemente recebem penas mais longas do que mulheres brancas pelos mesmos delitos.

Casos de mulheres que passaram por julgamentos após natimortos ilustram um rigor punitivo desproporcional. Sentenças de até 216 meses de prisão foram aplicadas, mesmo quando os resultados de nascimento não indicavam negligência intencional. Em um caso, uma mulher condenada a dez anos de prisão teve ainda mais 36 meses de liberdade condicional, e se violasse suas condições, teria de cumprir mais 18 meses de reclusão. O sistema penal, nesse contexto, parece mais orientado à punição exemplar do que à reabilitação ou à proteção da saúde materno-infantil.

Muitas dessas mulheres foram enviadas à Prisão Julia Tutwiler para Mulheres, o único estabelecimento feminino de segurança máxima no Alabama. A prisão, construída em 1942 para 364 pessoas, frequentemente abriga centenas a mais do que sua capacidade. Reconhecida por décadas de violações de direitos humanos, a Tutwiler foi denunciada por condições degradantes e violência institucionalizada. Um relatório federal de 2002 apontou superlotação, vigilância inadequada, acesso fácil a armas, e uma cultura generalizada de abuso físico e sexual. As internas viviam sob constante ameaça de violência, sem garantias básicas de segurança ou dignidade.

Em 2013, o Departamento de Justiça dos EUA investigou oficialmente a prisão após denúncias de estupros e abusos sexuais sistemáticos por parte de funcionários. Mais de um terço dos empregados foram implicados, com um funcionário registrando 38 episódios documentados de abuso. Como o poder dos agentes sobre as detentas torna impossível o consentimento verdadeiro, esses atos constituem coerção sexual institucionalizada. Internas relataram ter que “negociar” produtos de higiene e roupas com favores sexuais ou subornos. O medo era constante, inclusive de tomar banho ou dormir, dependendo do agente de plantão.

Após a intervenção federal, algumas mudanças foram implementadas: aumento do número de funcionárias, instalação de mais de trezentas câmeras de vigilância e regras mais restritivas sobre a presença de homens em áreas íntimas. Apesar disso, a superlotação persiste, e o controle estrutural sobre os abusos permanece frágil. As condições que propiciam a violência continuam intactas.

A magnitude dos abusos em Tutwiler pode parecer excepcional, mas refletem práticas amplamente disseminadas. Aproximadamente 4% das mulheres em prisões estaduais e 3% em prisões federais estão grávidas no momento da admissão. No entanto, pouco mais da metade recebe cuidados pré-natais. A ausência de acompanhamento médico adequado, somada ao isolamento e ao estresse carcerário, agrava os riscos de complicações gestacionais, abortos espontâneos e nascimentos de natimortos.

A médica e especialista em ginecologia obstétrica Carolyn Sufrin destaca que o ambiente carcerário é profundamente nocivo para gestantes: a ausência de contato com a família, as condições físicas degradantes e o estresse psicológico afetam diretamente a saúde da mulher e do bebê. Em inúmeros casos analisados como perita judicial, Sufrin relata episódios em que sangramentos gestacionais foram ignorados, resultando em abortos espontâneos ou partos prematuros dentro das celas.

As mulheres descreveram situações absolutamente inumanas: celas imundas, sem aquecimento, sem acesso a produtos menstruais, sem assistência mínima de saúde. Uma das entrevistadas relatou ter sido colocada em uma cela com dez a quinze outras mulheres, dormindo em um colchão no chão, em condições de higiene tão precárias que preferia passar frio a usar cobertores que pareciam já usados como papel higiênico. Outra mulher descreveu como o vaso sanitário da cela estava coberto com sangue e fezes de outras internas.

Esse cenário revela mais do que falhas pontuais: trata-se de uma política penal estruturada para controlar e punir, sem considerar a dignidade, os direitos reprodutivos ou a saúde das mulheres. A criminalização da gravidez — especialmente quando associada à pobreza, raça e uso de substâncias — reforça um sistema que marginaliza, silencia e desumaniza. A lógica punitiva aplicada às mulheres grávidas revela uma moralidade seletiva, onde a vida do feto é instrumentalizada para justificar punições extremas, mesmo à custa da saúde ou da vida da mãe.

A leitura desse panorama exige compreender que não se trata apenas de um problema carcerário, mas de uma construção social e política que escolhe punir a vulnerabilidade em vez de acolhê-la com cuidados e políticas públicas adequadas. É crucial reconhecer que, além das sentenças, as condições em que essas mulheres cumprem suas penas equivalem a uma forma contínua de violência institucional.