A impunidade criminal, para certas elites do século XXI, deixou de ser um lapso para se tornar uma blindagem. A esfera pública desaparece à medida que o bem comum deixa de ser prioridade entre os poderosos. Vivemos em um estado de alerta permanente: se não somos propagandistas ou protetores dos perpetradores, tornamo-nos suas presas. Vítimas de atrocidades há muito esquecidas se levantam, rompem o silêncio, esperam justiça – e logo se veem reduzidas a uma nota de rodapé ou a um aviso incômodo de que a história é algo volátil. Crimes, para existirem, precisam primeiro ser nomeados como tais. Hoje, o silêncio é mais eficiente que a censura: basta não chamar de crime o que é crime, e o problema está resolvido.
A retórica oficial, embebida de eufemismos e ameaças veladas, esboça o roteiro de horrores futuros – o colapso ambiental acelerado, o avanço metódico do autoritarismo – enquanto os comentaristas insistem que tudo não passa de exagero. Dizem que “aqui nunca acontecerá”, até que acontece. Enquanto isso, a esperança, esse sentimento geralmente celebrado, torna-se um risco. Em regimes autoritários, ela é frequentemente manipulada para adiar a ação, para comprar tempo, para esgotar o ânimo. A esperança, quando descolada da ação, é o que o autocrata deseja. É por isso que não acredito nem em esperança nem em desespero. Acredito na compaixão, no pragmatismo, no fazer o certo pelo simples fato de que é certo.
O luto, como o amor, é expansivo. Descobri isso com a maternidade e, depois, com a perda – de vidas, de expectativas, de liberdade. Existe uma dor que não busca consolo, mas sobrevivência. Em tempos como este, desejar que outros encontrem força já é uma forma de resistência.
No decorrer da minha trajetória como pesquisadora em antropologia, ainda nos anos 2000, fui confrontada com a violência de ditaduras pós-soviéticas. Quando publiquei uma denúncia sobre o massacre estatal em Andijon, no Uzbequistão, minha vida mudou. A matéria teve consequências políticas reais: ajudou solicitantes de refúgio, influenciou políticas internacionais. Mas isso também me tornou um alvo. Foi quando compreendi o imperativo moral de relatar a verdade, mesmo a um custo pessoal alto. Anna Politkovskaya, assassinada por denunciar as atrocidades do regime de Putin, era exemplo disso. Ela não apenas registrava fatos – ela sentia. E em tempos onde os sentimentos são considerados fraqueza, tornaram-se o último elo com o que nos resta de humanidade.
Não estou comparando a Rússia com os Estados Unidos, mas há paralelos que não podem ser ignorados: líderes cleptocráticos, financiadores cruéis, governos corrompidos e uma propaganda incessante que esmaga a realidade. Mentir, hoje, é um gesto de poder. É a imposição de uma nova ordem em que não há vergonha nem contestação, porque o que resta de verdade é apenas o que se consegue lembrar – e até a memória é manipulável.
A espiral do tempo se desintegra. O presente já não se fixa, o passado é reescrito, e o futuro... incerto. Viver nessa distorção temporal afeta a percepção, desestabiliza o juízo, rompe com a narrativa da própria vida. Você tenta se lembrar de quem era antes de tudo se deteriorar, mas mesmo isso começa a falhar. É por isso que escrevi uma carta aberta pedindo que as pessoas registrassem quem eram antes da consolidação autoritária: para que houvesse um traço, uma âncora, uma lembrança de que já fomos melhores.
A maioria de nós não se rendeu. Mas também não saiu ilesa. A brutalidade e o caos da era Trump já não chocam como antes. Não porque os aceitamos, mas porque nos acostumamos. O que parecia inaceitável se tornou o novo padrão. E a memória do “antes” – aquela que nos permitiria resistir com lucidez – enfraqueceu. Esta narrativa, portanto, é um esforço de resgate: recuperar a história antes que ela desapareça, contar o que muitos ignoraram na primeira vez, mostrar como a recusa em contar a verdade nos levou até aqui.
Trump não inventou a corrupção – ele apenas caminhou com ela até o centro do poder. Sua ascensão coincidiu com a erosão de décadas da integridade americana. Como repórter, estive em muitos lugares errados no momento certo, ou talvez no lugar certo no momento errado. Cresci assistindo ao futuro ser saqueado por uma estrutura que já não escondia sua decadência. Não lembro de ter me sentido segura, mas lembro de quando acreditava que um dia poderia estar.
É fundamental que o leitor compreenda que regimes autoritários não emergem do nada. Eles se alimentam do cansaço, da descrença, da banalização do mal. O primeiro sinal não é um tanque nas ruas, mas a erosão do vocabulário moral. Quando deixamos de nomear o mal, ele se prolifera. Quando esquecemos quem éramos, nos tornamos irreconhecíveis para nós mesmos. A luta contra o autoritarismo não é apenas política: é uma luta pela manutenção da própria consciência.
O que há de errado com o coração da América?
A morte de Elijah Lovejoy em 1837 não foi apenas o assassinato de um homem — foi um testemunho brutal do poder da palavra e do medo que ela causa. Ele defendeu, até seu último suspiro, a liberdade de imprensa e a dignidade humana, e pagou com a vida. Um século e meio depois, a mesma terra onde ele tombou continua carregando as marcas de divisões que jamais cicatrizaram. Alton, Illinois — uma cidade entre o heroísmo de Lincoln e a infâmia do assassino de Martin Luther King Jr. — representa em miniatura o paradoxo americano: uma nação que proclama liberdade enquanto encarcera, que celebra democracia enquanto silencia.
Ao atravessar o Mississippi em direção a St. Louis, a história se torna visível não em museus, mas nas ruínas. A cidade, palco da Feira Mundial de 1904 e outrora a quarta maior dos EUA, hoje se assemelha a uma colagem mal colada de glória imperial decadente e negligência institucionalizada. Nos bairros esquecidos, casas abandonadas vestem murais de heróis negros locais — um gesto simultaneamente de resistência e melancolia. E em gramados malcuidados, placas improvisadas imploram: "Precisamos parar de nos matar."
A decadência de St. Louis não se deve a um ataque, mas à ausência: de investimento, de cuidado, de memória. Como escreveu T.S. Eliot, nativo da cidade, o mundo aqui não terminou com um estrondo, mas com um sussurro. O passado imperial vive não apenas nas estruturas deixadas para trás, mas também no silêncio a respeito de sua importância. Missouri, o "coração da América", moldou a cultura nacional mais do que se reconhece: foi berço da expedição de Lewis e Clark, cenário das histórias de Mark Twain, solo onde nasceu Walt Disney e onde os sons de Scott Joplin e Chuck Berry transformaram o mundo. Ainda assim, seu legado é tratado como curiosidade de rodapé — uma parte da "América real" esquecida até por ela mesma.
Confrontar Missouri é confrontar os compromissos fracassados da nação. É ver a terra dividida por resquícios da escravidão e pela trilha do extermínio indígena. É ouvir o eco de um estado que não sabe se pertence ao Norte ou ao Sul, oscilando até mesmo em como pronunciar o próprio nome. Missouri é o microcosmo da ambivalência americana: uma tentativa de mediação eterna, que só produz mais fratura.
Hoje, as divisões permanecem — raciais, econômicas, geográficas. A cidade é marcada pela fuga branca: da cidade aos subúrbios, dos subúrbios aos exúrbios, deixando para trás pobreza e luto. A dor é um elo comum. St. Louis, com seus três milhões de habitantes, pode parecer uma vila onde todos estão a poucos graus de separação da tragédia. A violência já não choca, mas nunca deixa de pesar. Os corpos continuam desaparecendo no rio, como a prensa de Lovejoy. Nada parece sólido; tudo parece prestes a ruir.
Essa instabilidade é literal. A Falha de New Madrid, ao sul de Missouri, provocou, em 1811, o maior terremoto já registrado a leste das Montanhas Rochosas. O Mississippi correu ao contrário. O chão tremeu até a capital do país. Hoje, especialistas dizem que outro terremoto está por vir — é questão de tempo, não de possibilidade. E quando acontecer, avisam os militares, não haverá socorro suficiente. A América será partida ao meio exatamente aqui, no seu centro simbólico.
O que levou o autor a Missouri não foi destino, foi precariedade. Uma bolsa de estudos para um doutorado em antropologia, uma escolha pragmática diante de poucas opções. Mas o que encontrou foi um espelho da nação — rachado, mas revelador. St. Louis é, como Viena ou Istambul, uma capital de impérios perdidos. Mas ao contrário das grandes metrópoles que celebram seus vestígios, St. Louis é forçada a conviver com os seus, sem consolo, sem turismo, sem redenção.
Missouri carrega a síntese de tudo que a América tenta esquecer. É uma ferida aberta com aparência de normalidade. Uma terra onde a apatia se disfarça de paz, e onde o passado não é lembrado porque ele nunca se foi. Seu maior horror não é a violência que o atravessa, mas o silêncio que a permite.
Essa é a história que se recusa a ser enterrada. E é por isso que importa.
Como os Raios Gamma de 60Co Afetam o Cristal de CZT: Características e Modelos de Desempenho
Como o desafio à democracia americana revela riscos contemporâneos de autoritarismo
Como a Busca Avançada e a Web Semântica Estão Moldando o Futuro da Navegação Online
Como Implementar Limitação de Taxa e Tarefas em Segundo Plano Usando FastAPI e Redis

Deutsch
Francais
Nederlands
Svenska
Norsk
Dansk
Suomi
Espanol
Italiano
Portugues
Magyar
Polski
Cestina
Русский