É comum esquecermos que os grandes nomes da literatura russa não herdaram seus estilos dos predecessores de maneira linear ou sem contestação. Derzhavin só se tornou herdeiro de Lomonosov depois de derrubar as convenções do gênero lírico da época; Pushkin herdou as formas do século XVIII, mas fez isso a partir da sua capacidade de transformar o trivial das obras de Karamzin em algo essencialmente novo. A história da literatura não segue uma linha de sucessão pacífica, mas sim uma complexa luta entre formas e estilos, que muitas vezes são subvertidos e deslocados para dar lugar a novas possibilidades. Esse deslocamento não ocorre de forma simples ou previsível; é sempre uma transformação cheia de complexidades que desafiam o entendimento tradicional de evolução literária.
A crítica formalista da literatura russa, especialmente em relação ao trabalho de membros do OPOYAZ, oferece uma perspectiva interessante sobre o papel do deslocamento na arte. Para o formalismo, os grandes escritores da literatura russa, como Nekrasov, Chekhov e Blok, só alcançaram o que são hoje porque subverteram os cânones literários estabelecidos. Nekrasov, por exemplo, só se afirmou como um poeta relevante ao abandonar formas tradicionais e explorar temas populares, muitas vezes inspirados pelo folclore. O formalismo, portanto, interpreta essas mudanças como uma luta constante contra o convencional, onde a forma e a técnica se deslocam para permitir que novos significados emergem.
Entretanto, o formalismo apresenta algumas limitações quando se trata de explicar o papel da história e da ideologia na evolução literária. Embora a crítica formalista se concentre na análise de dispositivos e formas, ela muitas vezes ignora os contextos históricos e sociais mais amplos que moldam a literatura. A ideia de que a literatura pode ser explicada apenas a partir da subversão estética de formas anteriores desconsidera o impacto das questões políticas, ideológicas e culturais na criação literária. Assim, por mais que o formalismo tenha contribuído com valiosas ferramentas analíticas, ele falha ao negligenciar a complexidade histórica e a necessidade de um contexto mais amplo.
O trabalho dos formalistas como Eichenbaum, Tynyanov e outros membros do OPOYAZ é relevante não só pela sua busca de um sistema estético que permita a evolução das formas literárias, mas também pela tentativa de examinar as relações entre os dispositivos literários e os contextos históricos e culturais. Eichenbaum, por exemplo, propôs uma interpretação da prosa russa do século XIX que alterna entre formas narrativas, subjetivas e skaz. No entanto, sua visão de realismo como uma mera luta contra formas antiquadas não explica adequadamente as questões sociais e políticas que estavam em jogo. Mais tarde, em seus trabalhos sobre Tolstói, ele afastou-se de algumas de suas ideias formalistas, reconhecendo que o desenvolvimento literário não pode ser reduzido a um jogo de formas.
A paródia, uma das áreas de maior interesse para os formalistas, também desempenha um papel importante na destruição dos cânones literários. A análise de Nekrasov, especialmente suas primeiras paródias, ilustra como a paródia pode ser uma ferramenta eficaz para romper com as tradições estabelecidas. Da mesma forma, Tynyanov, em sua análise de Dostoiévski, destaca a importância da paródia como um dispositivo que questiona a continuidade das escolas literárias, embora muitas vezes negligencie o significado ideológico e moral subjacente às obras.
No entanto, a crítica formalista não foi isenta de críticas. O próprio Zhirmunsky, que teve disputas com a escola formalista, argumentava que o desenvolvimento literário não poderia ser explicado apenas através de dispositivos estéticos autônomos. A literatura é, acima de tudo, um produto de sua história, e, portanto, deve ser estudada também em relação às suas influências externas, como as ideias políticas e filosóficas que a moldam. Segundo Zhirmunsky, a obra de Nekrasov, por exemplo, deve ser compreendida no contexto das influências do círculo de Belinsky, que trouxe novos temas poéticos à tona. A crítica formalista, ao focar apenas nas mudanças estéticas, ignora essas influências externas essenciais.
Lunacharsky, por sua vez, questionava a separação rígida entre teoria literária e prática cultural proposta pelos formalistas. Para ele, essa divisão empobrecia o entendimento da literatura, afastando-a do contexto histórico mais amplo. A literatura não pode ser entendida apenas como uma sucessão de formas e dispositivos, mas como uma expressão profunda das transformações culturais e sociais de seu tempo. A crítica formalista, ao adotar uma abordagem isolada, falha em capturar a complexidade da história literária e sua relação com a sociedade.
Em última análise, a história formalista da literatura russa, ao concentrar-se nas mudanças estéticas e no deslocamento das formas literárias, oferece uma visão interessante, mas incompleta. A literatura não evolui apenas por meio da subversão de formas antigas, mas é profundamente influenciada pelas condições históricas, sociais e políticas que definem o contexto de sua criação. Para compreender a verdadeira evolução literária, é necessário considerar tanto os aspectos formais quanto os contextos históricos e ideológicos que os moldam. A história literária deve ser vista não como um ciclo fechado de formas em constante renovação, mas como um campo dinâmico onde a estética e a ideologia se entrelaçam, criando novas possibilidades de expressão artística.
A Interação entre Cultura e Política: Autonomia ou Orientação do Partido?
O papel das políticas culturais, particularmente sob regimes socialistas, sempre gerou debates intensos sobre a relação entre a arte, o artista e o poder político. A construção de uma cultura socialista exige que a arte não apenas promova uma visão estética, mas que se alinhe com os ideais políticos, ideológicos e sociais da revolução. O Partido Comunista, em suas orientações, vislumbra a arte como uma ferramenta essencial na formação e reorganização da sociedade, orientada por um projeto de transformação profunda, que não se limita à mera decoração ou entretenimento. No entanto, a maneira como essa relação deve ser estabelecida tem sido objeto de disputas, levando a reflexões complexas sobre a autonomia da cultura.
As diretrizes partidárias para a arte socialista muitas vezes exigem que o artista não apenas crie, mas que se envolva ativamente no processo de transformação política. A arte deve, segundo essas linhas, servir ao povo, apoiar a edificação de uma nova ordem social, e refletir os valores do regime. No entanto, um dos maiores desafios está em manter um equilíbrio entre a visão política e a necessidade de preservar a essência estética da produção artística. Se a política se sobrepõe à estética, corre-se o risco de vulgarizar a arte, reduzindo-a a um mero instrumento de propaganda. Por outro lado, a ênfase exclusiva na estética, desconsiderando suas implicações políticas, não só diminui a relevância da arte na revolução, como pode ser considerada uma traição aos princípios ideológicos do partido.
É essencial compreender que a autonomia da cultura, frequentemente defendida por diversos pensadores e teóricos marxistas, não implica necessariamente um isolamento completo da arte em relação à política. A autonomia não deve ser confundida com uma separação radical, mas sim com uma liberdade criativa que não seja diretamente subordinada à linha política do momento. No entanto, isso não significa que a arte deva ser desvinculada dos princípios políticos e ideológicos que orientam a construção socialista. Pelo contrário, a arte, como parte integrante da superestrutura, deve refletir e reforçar os valores da classe trabalhadora e do movimento socialista.
Uma das abordagens mais discutidas sobre esse tema é a teoria da “autonomia da cultura”, proposta por pensadores como Antonio Gramsci. Ele argumenta que a cultura e a política não são entidades opostas, mas que suas interações são complexas e multifacetadas. Para Gramsci, o papel do intelectual ou do artista não é meramente criar em isolamento, mas engajar-se com a realidade política de seu tempo. A liberdade criativa do artista, portanto, não pode ser reduzida a um mero reflexo de exigências externas; ela deve ser entendida como um processo que se articula com as condições sociais e políticas em que o criador está inserido.
Gramsci também reconhece o conflito entre o político e o artista, uma vez que as perspectivas e os objetivos desses dois tipos sociais são distintos. Enquanto o político busca a mobilização e a transformação da realidade, o artista busca fixar e consolidar um momento, explorando a complexidade da subjetividade humana. Essa diferença de foco não implica, no entanto, em uma contradição irreconciliável, mas sim em uma coexistência tensa, mas produtiva, onde o político e o artista devem encontrar formas de interagir sem que um submeta o outro.
Lenin, em seus escritos, também aborda essa questão com um olhar pragmático e realista. Embora tenha reconhecido a importância da liberdade criativa dos artistas, ele sempre enfatizou a necessidade de a arte estar alinhada com os objetivos do movimento socialista. Em suas correspondências com Maxim Gorky, por exemplo, Lenin expressa a ideia de que o escritor, embora deva ter liberdade de criação, não pode se isolar das questões políticas fundamentais. Gorky, um dos maiores nomes da literatura russa, é frequentemente citado por Lenin como alguém cujas obras devem estar em sintonia com os interesses políticos da revolução, sem que isso signifique uma subordinação direta à política do Partido.
Porém, a questão da liberdade criativa frente ao controle político continua a ser um tema polêmico. Se, por um lado, a arte não pode ser completamente subordinada à política, também não pode ser dissociada dela, já que a arte socialista tem um papel indiscutível na formação de uma nova consciência de classe. É nesse ponto que surge o debate sobre a autonomia da cultura. Para os defensores da autonomia total, a arte deve ser livre de qualquer orientação ou controle externo, inclusive do Partido. Contudo, essa posição muitas vezes é vista com ceticismo por aqueles que acreditam que a arte deve, antes de tudo, servir aos interesses políticos da classe trabalhadora.
O confronto entre a liberdade criativa do artista e as exigências políticas do Partido, portanto, não é apenas uma questão de controle ou de censura, mas de como a arte pode ser compreendida como parte de um projeto mais amplo de transformação social. A arte não é um campo isolado da política, mas um espaço em que se reflete e se confronta a realidade social. Quando a arte se torna descolada das questões políticas e sociais, perde seu papel como agente de mudança e crítica, tornando-se uma mera reprodução das estruturas existentes.
A questão da autonomia, portanto, deve ser vista de forma mais complexa. Em uma sociedade socialista, a autonomia da cultura não significa o desligamento da política, mas sim o reconhecimento de que a arte, em sua liberdade criativa, pode contribuir de maneiras únicas para o progresso da sociedade. A arte deve ser parte do processo de transformação social, mas deve também ser reconhecida como uma expressão legítima e independente das aspirações humanas. Isso implica a necessidade de um equilíbrio, onde a arte possa, sim, ser guiada por ideais políticos, mas também tenha espaço para questionar e redefinir esses próprios ideais.
A reflexão sobre a autonomia da cultura e sua relação com a política exige uma abordagem que vá além de uma simples dicotomia entre liberdade e controle. A arte e a política devem coexistir em uma relação dinâmica, onde a arte pode ser tanto um reflexo quanto um agente de mudança, sem perder sua capacidade de provocar e questionar os fundamentos do próprio regime que a orienta.

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