No final do século XIX e início do século XX, os Estados Unidos testemunharam a consolidação de um movimento que procurava moldar o destino da população com base em princípios pseudocientíficos: a eugenia. Surgido com o pretexto de proteger a "qualidade genética" da nação, esse movimento passou rapidamente de uma teoria supostamente benigna de aprimoramento humano para uma ideologia sistemática de exclusão, controle e eliminação.

Com o declínio da taxa de natalidade entre os brancos anglo-americanos e o aumento da imigração de grupos considerados "inferiores", o medo da degeneração racial ganhou força. Presidentes como Theodore Roosevelt não hesitavam em falar sobre “suicídio racial” e conclamavam as mulheres brancas a terem mais filhos, com o objetivo de preservar a hegemonia racial e cultural. Mas não bastava apenas incentivar os “mais aptos” a se reproduzirem; era preciso impedir a procriação dos considerados “inaptos”.

Assim, os eugenistas defenderam a esterilização forçada como medida necessária para conter o que percebiam como ameaça interna: pobres, alcoólatras, doentes mentais, pessoas com deficiência, criminosos, trabalhadores sexuais, dependentes químicos e outras categorias marginalizadas. A degeneração era, segundo essa lógica, hereditária — transmitida de geração em geração — e deveria ser contida antes que contaminasse o “corpo nacional”.

Mulheres passaram a ser o principal alvo desse discurso. Se no século XIX ainda se atribuía responsabilidade reprodutiva a ambos os sexos, o século XX trouxe uma nova narrativa: as mulheres, por sua capacidade de gestar, tornaram-se as principais portadoras e transmissoras da “pureza” racial. Assim, uma mulher pobre, doente ou simplesmente fora do padrão dominante tornava-se, por sua mera existência reprodutiva, uma ameaça genética. O simples ato de consumir álcool durante a gravidez era considerado um atentado contra a herança genética da nação.

A partir de 1907, com a primeira lei de esterilização compulsória em Indiana, a eugenia deixou de ser apenas discurso para se tornar política pública. Casos como o da família Kallikak, narrado em obras pseudocientíficas amplamente divulgadas, serviam para justificar a suposta degenerescência hereditária: uma linhagem originada de um breve envolvimento com uma mulher rotulada como “mentalmente débil” era apresentada como um exemplo de degradação genética em cadeia. Fotografias, árvores genealógicas e diagnósticos morais transformavam subjetividades em evidências de inferioridade biológica.

Narrativas como essas perpetuavam a ideia de que certos indivíduos, por sua origem e comportamento, eram incapazes de autorresponsabilidade, e, portanto, deviam ser eliminados da linha sucessória da nação. A eugenia oferecia uma “ciência moral” que prometia proteger a sociedade de seus próprios membros indesejáveis.

Dentro desse cenário, figuras como o Dr. Albert Priddy, à frente da Virginia Colony for Epileptics and Feeble Minded, institucionalizaram políticas não oficiais — e depois oficiais — de esterilização, baseadas na ideia de que a multiplicação dos “fracos de espírito” levaria à ruína da sociedade. A família Mallory, com sua história marcada por pobreza, sofrimento psíquico e estigmatização, exemplifica como os mecanismos estatais podiam registrar, rotular e intervir nas trajetórias de vida de forma brutal e definitiva.

A eugenia americana, embora frequentemente associada à Alemanha nazista, teve longa vida e profundas raízes nos Estados Unidos. Ela não apenas influenciou políticas públicas, como também moldou visões de mundo, estabelecendo uma hierarquia biológica baseada em raça, classe, gênero e sanidade. O poder do Estado foi instrumentalizado para decidir quem deveria viver, quem poderia se reproduzir e quem estava condenado à exclusão hereditária.

É fundamental entender que a eugenia não foi apenas um erro científico. Foi uma estrutura ideológica profundamente entrelaçada com interesses políticos, econômicos e sociais. A linguagem da ciência foi usada para legitimar preconceitos, desumanizar indivíduos e justificar violações sistemáticas de direitos humanos. A história da eugenia é, portanto, um lembrete cruel de como o saber pode ser manipulado para servir à exclusão, ao controle e à dominação.

Como o Direito Enfrenta a Questão da Reprodução e Identidade de Gênero?

No campo do direito reprodutivo, as tensões entre tratamento igualitário e reconhecimento das diferenças de gênero se manifestam de forma profunda e complexa. A abordagem tradicional, que busca a igualdade sob a premissa da “mesmice”, frequentemente ignora as particularidades históricas, sociais e biológicas que envolvem as experiências das mulheres e outras pessoas gestantes. Embora a legislação se proponha a ser neutra em relação ao gênero, essa neutralidade muitas vezes mascara desigualdades estruturais que continuam a afetar desproporcionalmente grupos marginalizados.

A ideia de tratar as pessoas “igualmente”, como se fossem “iguais”, falha em considerar que as condições e necessidades específicas de mulheres, pessoas trans, não-binárias e outras pessoas com capacidade de gestação são distintas e demandam políticas diferenciadas para promover justiça real. Por outro lado, uma ênfase exclusiva nas diferenças pode reforçar estereótipos e restringir direitos, reforçando desigualdades sob a aparência de proteção. A feminista Catherine MacKinnon alerta para os riscos de tanto a “mesmice” quanto a “diferença” serem usadas para manter relações de poder e subordinação.

A justiça reprodutiva, portanto, precisa ultrapassar esses paradigmas binários e centrar-se na desconstrução das opressões estruturais que moldam as experiências e o acesso aos direitos. Isso implica reconhecer que nem todas as mulheres têm as mesmas necessidades ou vivências, e que pessoas de diversos gêneros e identidades podem enfrentar desafios similares na questão reprodutiva. Assim, a linguagem e as políticas públicas devem ser inclusivas e refletir essa diversidade, evitando impor um único modelo de gênero ou maternidade.

Esse entendimento está alinhado com a crítica antropológica de que o sexo biológico, apesar de ser considerado uma realidade “natural”, é profundamente mediado por construções sociais. O gênero, como uma categoria social, molda e redefine o que significa ser homem, mulher ou outra identidade de gênero, especialmente no contexto da reprodução e do controle sobre os corpos.

O uso intencional de termos como “pessoa grávida” em substituição a “mulher grávida” evidencia essa busca por uma linguagem que abranja pessoas trans, não-binárias e outras que também experimentam a gravidez e são afetadas por políticas de saúde e legislação. Essa escolha linguística transcende o feminismo tradicional e busca construir uma política reprodutiva mais inclusiva, que reconheça identidades plurais e complexas.

No entanto, essa transição também desafia as normas culturais e jurídicas vigentes, que muitas vezes não estão preparadas para reconhecer essas pluralidades. A invisibilização ou a marginalização de pessoas trans e não-binárias no âmbito jurídico e médico — por meio do uso incorreto de gênero ou da recusa em reconhecer suas identidades — perpetua um sistema excludente que dificulta o acesso a direitos fundamentais, como o direito à autonomia reprodutiva e a um tratamento digno.

Além disso, é fundamental compreender que a luta pela justiça reprodutiva não é apenas uma questão de acesso a serviços médicos ou direitos legais isolados, mas um movimento que se insere em um contexto mais amplo de combate às opressões interseccionais, que envolvem raça, classe, identidade de gênero, orientação sexual e outras formas de desigualdade. Reconhecer essa interseccionalidade é crucial para formular respostas que efetivamente promovam a dignidade e a liberdade de todas as pessoas, e não apenas a igualdade formal.

O entendimento de que as políticas e leis não podem ser baseadas em generalizações homogêneas permite a construção de um arcabouço jurídico que respeite as diferenças sem perder de vista a necessidade de corrigir desigualdades históricas e sociais. A partir disso, é possível garantir que as experiências e necessidades diversas sejam ouvidas e respeitadas, sem que isso implique em uma fragmentação que enfraqueça as conquistas coletivas em direitos humanos.

Como os Promotores Transformaram a Gravidez em Crime?

A análise das detenções relacionadas à gravidez nos estados do Alabama, Carolina do Sul e Tennessee revelou mais de mil casos confirmados, embora se reconheça que esse número seja significativamente subestimado. A ausência de uma tipificação penal específica para a “criminalização da gravidez” complicou a coleta sistemática de dados. As acusações variavam amplamente — de exposição imprudente ao perigo, entrega de drogas a menores, agressão agravada, até homicídio. Essa diversidade acusatória tornou inviável qualquer solicitação pública padronizada de informações.

A investigação demandou a exploração de arquivos policiais locais, alertas automatizados na internet, boletins de ocorrência e sistemas de busca judiciária estaduais. Mesmo assim, a ausência de sistemas unificados de consulta — como no Tennessee — obrigou o contato direto com cartórios e delegacias para localizar documentos relevantes. Muitos deles exigiam pagamentos por página e taxas adicionais para acesso a arquivos digitais, tornando o processo custoso e fragmentado.

A contextualização dos dados ocorreu por meio de cruzamentos com informações demográficas dos censos estaduais e locais, além de registros nacionais sobre detenções por crimes relacionados a drogas e dados sobre internações em clínicas de reabilitação. Uma parte significativa das acusadas foi detida por uso de substâncias durante a gestação, mesmo antes de leis específicas criminalizarem essa conduta. Os promotores, operando localmente, interpretaram leis penais genéricas de maneira criativa para enquadrar comportamentos gestacionais como crimes, principalmente quando relacionados ao uso de drogas.

Essa postura proativa dos promotores foi decisiva. Antes mesmo de qualquer legislação estadual, eles agiram como mediadores entre os interesses de agências de saúde pública, departamentos de proteção infantil e o sistema judicial, moldando a narrativa de que o uso de substâncias na gravidez equivaleria a uma forma de abuso infantil. Em estados como Carolina do Sul, essas interpretações foram eventualmente ratificadas por tribunais superiores, estabelecendo precedentes jurídicos que legitimaram tais práticas.

A resistência em obter entrevistas com os principais protagonistas — promotores e representantes legais — evidencia o grau de sensibilidade política e ética envolvido. Muitos se recusaram a participar formalmente de entrevistas, embora alguns tenham fornecido declarações informais. Em contraponto, os relatos públicos das mulheres processadas só foram utilizados quando estas já haviam sido amplamente expostas pela mídia ou envolvidas em casos de relevância jurídica. A pesquisa respeitou o sigilo e o trauma dessas mulheres, evitando abordagens invasivas que pudessem reativar experiências dolorosas.

Durante entrevistas com promotores que lideraram as primeiras ações judiciais, emergiram temas recorrentes: a influência de clínicas de reabilitação voltadas a gestantes, o papel de instituições médicas na formulação de políticas de testagem sem consentimento, e a construção de estratégias legais voltadas à punição em vez do cuidado. Em particular, uma clínica especializada em reabilitação de gestantes foi apontada como centro de articulação entre o sistema judiciário e a política pública local. As fundadoras dessa clínica desempenharam papel chave na formação das estratégias de criminalização, influenciando diretamente os promotores a optarem por um caminho repressivo.

Os dados revelam que, frequentemente, as mulheres acusadas perdiam temporariamente a guarda de seus filhos, mesmo na ausência de condenações formais, com base na presunção de que o uso de substâncias durante a gravidez representaria um perigo iminente. Esse tipo de medida cautelar era legitimado pela concepção difundida de que o feto deve ser tratado como sujeito autônomo de direitos, em detrimento da gestante. A consequência prática é a criação de um regime de exceção jurídica para mulheres grávidas — um regime em que o simples fato da gestação altera radicalmente o acesso a direitos civis básicos, como privacidade, liberdade e autodeterminação corporal.

É crucial compreender que essa lógica não depende necessariamente de mudanças legislativas explícitas. Trata-se de um processo no qual a interpretação criativa da lei — quando motivada por valores morais, concepções biomédicas parciais e pressões institucionais — pode ter efeitos tão poderosos quanto qualquer nova legislação. A criminalização da gravidez é, antes de tudo, um fenômeno jurídico-político que nasce da convergência entre o ativismo penal e o controle social da maternidade.

O leitor deve reconhecer que, em contextos onde o sistema jurídico carece de normas claras sobre direitos reprodutivos, as lacunas legais não significam ausência de poder — pelo contrário, permitem que ele seja exercido de forma ainda mais arbitrária. É nesse vácuo normativo que promotores, médicos e agentes do Estado projetam seus próprios valores sobre os corpos de mulheres gestantes, especialmente daquelas mais vulneráveis socialmente. A criminalização da gravidez, portanto, não é um desvio ocasional do direito, mas uma forma de governar vidas consideradas indignas de autodeterminação.