Através da história, sempre houve a tensão entre a preservação da tradição e a adaptação às realidades de cada época. Esse dilema é especialmente relevante quando se trata das escrituras sagradas, como a Bíblia, cujos ensinamentos, embora profundamente enraizados em contextos antigos, continuam a provocar questionamentos e desafios no mundo moderno. A história de Israel, com sua aliança com Deus e os ensinamentos dos profetas, é um exemplo claro dessa interação entre o passado e o presente. A recuperação das escrituras, como aconteceu com o rei Josias ao reencontrar o Livro de Deuteronômio, ilustra a necessidade de restaurar e reviver as origens para entender o caminho a seguir. Esta dinâmica de "retorno às origens" não é exclusiva de tempos antigos; ela ressurge a cada nova geração, conforme a busca por significado e identidade se torna mais urgente.
No contexto do Antigo Testamento, a aliança feita no Sinai e renovada por Josias é um reflexo da relação entre o povo de Israel e seu Deus, um Deus que exige fidelidade e pureza no relacionamento. A renovação dessa aliança implicava uma profunda transformação social e espiritual, que deveria ser vivida em comunidade, e não apenas individualmente. O rei Josias, ao promover reformas de acordo com o Livro encontrado, não estava apenas tentando restaurar uma antiga lei, mas reconfigurar a identidade nacional, alinhando-a com os princípios divinos que haviam sido esquecidos. Essa reinvenção de um povo a partir de suas raízes perdidas oferece uma lição crucial: quando as fundações de uma nação se diluem, é necessário resgatar a sabedoria que as originou para restaurar a harmonia e o propósito.
Aos olhos de um pensador como C. S. Lewis, a queda da sociedade está inevitavelmente ligada à perda de um "capítulo perdido" no livro que todos leem. Este capítulo, que une todas as partes e traz o sentido global, é exatamente o que Israel tentou reencontrar ao retomar o Livro de Deuteronômio. Esse livro não era apenas uma série de leis, mas um manual sobre como viver em harmonia com a terra prometida, como uma nação íntegra e justa. E, de forma semelhante, o mundo moderno, que muitas vezes se vê afastado de suas próprias origens espirituais e morais, poderia se beneficiar de um retorno a esses fundamentos.
A relevância dos profetas não se limita ao passado. Eles representavam uma força disruptiva que desafiava os sistemas de poder e as convenções sociais, convocando a sociedade a refletir sobre seu comportamento e a sua relação com Deus. Se, na antiguidade, os profetas intervinham diretamente nos assuntos do governo e da vida cotidiana, sua presença na sociedade moderna levanta questões interessantes. A atual dificuldade de aceitação de figuras religiosas como profetas no espaço público reflete uma resistência mais ampla a qualquer tipo de desafio moral e espiritual às normas estabelecidas. Vivemos em um mundo que prefere a segurança da lógica materialista e secular, onde os espaços públicos são, em grande parte, livres de qualquer interferência que possa ser considerada uma "verdade absoluta". Mas, como a história nos mostra, os profetas não precisam de autorização para falar. Eles falam, e sua mensagem, se for verdadeira, encontrará espaço, seja dentro da igreja, nas praças públicas ou nas ruas.
A luta pela justiça social, como exemplificado por figuras como Martin Luther King Jr. e Mahatma Gandhi, demonstra que as figuras proféticas não desaparecem, mas se reinventam, adaptando-se ao contexto atual, ainda que mantendo seus princípios fundamentais. No entanto, sua persistência nas questões morais e sociais muitas vezes vem com um alto preço – o martírio, a marginalização, a incompreensão. O questionamento de um profeta no espaço público não deve ser visto apenas como uma irritação ou uma anomalia; muitas vezes, ele é um reflexo das falhas sistêmicas que precisamos corrigir.
A crítica ao papel das religiões no espaço público, e em especial a resistência à presença da Bíblia nas escolas e na política, é uma das questões mais controversas nos dias de hoje. No entanto, é preciso perceber que a Bíblia, como um livro sagrado para cristãos e judeus, não é apenas um manual de moralidade religiosa, mas também um importante fundamento cultural, que tem influência direta nas discussões sobre justiça, ética e comunidade. Sua presença na sociedade, longe de ser um anacoluto, é uma contribuição necessária para a construção de uma visão humana e comunitária mais ampla.
A abordagem do Antigo Testamento não deve ser vista como uma tentativa de reviver o teocrático ou o puramente religioso, mas sim como uma base para a reflexão sobre como a moralidade, a justiça e o bem-estar social podem ser orientados por princípios superiores. O Deus do Antigo Testamento não se limita a uma figura distante, mas é um Deus de ação, que desafia as estruturas sociais e políticas em nome da justiça e da dignidade humana.
Em última instância, a voz dos profetas, aqueles que desafiam o status quo e pedem um retorno ao que é verdadeiro e justo, não pode ser silenciada. A sociedade contemporânea, com sua crescente secularização e sua adesão a princípios materialistas, precisa escutar essas vozes, mesmo que de maneira desconfortável, para encontrar um caminho mais coerente e compassivo. O espaço público não deve ser visto como um território de neutralidade, mas como um campo aberto para o diálogo sobre o que é realmente importante para o bem comum e o destino final da humanidade.
O Movimento Cristão: Respostas Proféticas para o Mundo Contemporâneo
O conceito de movimento, presente tanto nas tradições judaicas quanto cristãs, remonta ao êxodo, um símbolo de libertação e resistência contra a opressão. Através dessa ótica, é possível entender o cristianismo e o judaísmo como movimentos de resistência, movimentos que se opõem às estruturas de poder e à ordem estabelecida. O movimento de Jesus, em particular, propôs uma nova maneira de entender o mundo e de viver em sociedade, desafiando as convenções políticas e sociais da época. Nesse sentido, tanto cristãos quanto judeus devem, antes de tudo, se ver como movimentos religiosos e morais, comunidades dissidentes, desconectadas das alianças políticas tradicionais. Este posicionamento não exclui a ação política, mas coloca como prioridade a resistência contra qualquer forma de opressão, guiada pela fé.
A visão cristã do mundo deve, em última análise, sempre ser "em oposição". Essa oposição não se refere a um confronto direto com outras ideologias, mas sim a uma postura de constante questionamento e transformação. O que a sociedade mais necessita da igreja não é o ativismo político imediato, mas a imaginação profética capaz de projetar novas realidades sociais. A função do cristão, então, é ser testemunha do reino de Deus, não necessariamente se engajando diretamente nas arenas políticas, mas criando um espaço alternativo de ação moral e social, onde o bem comum seja promovido. O futuro é movimento, sempre, e o que é necessário é cultivar a capacidade de se mover, de se adaptar, de resistir, mas sempre com os olhos voltados para o horizonte divino.
Os movimentos sociais são uma expressão clara dessa necessidade de transformação. Desde o movimento abolicionista até os recentes movimentos pelos direitos LGBTQ+, é possível ver como o movimento, o deslocamento, privilegia a ação e a flexibilidade, ao contrário das instituições fixas e estáticas. A mudança social raramente ocorre sem um movimento de resistência. No entanto, isso não significa que os movimentos sejam imunes a falhas ou desafios, como foi o caso do movimento Occupy, que não se organizou de maneira eficaz o suficiente para concretizar mudanças estruturais. Por outro lado, movimentos como o Tea Party, que entraram diretamente no processo político, conseguiram vitórias eleitorais significativas, demonstrando que a política direta tem sua importância, mas deve ser combinada com uma visão mais ampla de transformação social.
A religião progressista pode se apoiar em toda uma história de ações ritualísticas judaico-cristãs, nas quais a adoração se torna performática, movendo-se para fora dos limites da igreja e alcançando os campos, as ruas, as ondas do rádio. Rituais comunitários geram mitologias e histórias que se tornam práticas vividas. Na base de tudo isso está a ação pela libertação e pela formação de novas comunidades. A mudança acontece quando as pessoas se reúnem, quando as comunidades se constroem a partir da experiência comum da luta pela justiça. Exemplo disso são os momentos de luta por direitos civis, como em Seneca Falls, Selma, Stonewall e no Monumento a Washington.
Movimentos reformadores, como o movimento monástico medieval ou a Reforma Protestante, surgiram ao longo da história como respostas a momentos de crise, buscando purificar as tradições e orientar a fé em direção à ação prática. A Igreja não deveria, portanto, aspirar a criar um novo partido político, mas a ser um sinal visível de um plano divino para o mundo. A presença dos cristãos nas ruas e na vida cotidiana, trabalhando pelo bem de todos, deve ser o ponto de partida. A tarefa primordial da Igreja é manter-se fiel à sua missão de ser Igreja, de testemunhar o evangelho da salvação que Deus oferece em Cristo, e a partir disso gerar uma transformação radical da sociedade.
É nesse contexto que a noção de "colaborar com a escatologia" ganha relevância. O anúncio do reinado de Deus por Jesus não se limita a uma mudança espiritual ou pessoal; ele implica uma transformação radical das estruturas sociais, econômicas e políticas. A escatologia colaborativa, como proposta por teólogos contemporâneos, como John Dominic Crossan e Marcus Borg, é a ideia de que a humanidade, em parceria com Deus, deve trabalhar ativamente para a realização do Reino de Deus aqui na terra, não como uma utopia distante, mas como um projeto a ser realizado na história. Essa colaboração é um chamado a todos os cristãos para que se envolvam na transformação do mundo, em resposta ao tempo presente e ao futuro que Deus nos reserva.
O pecado, entendido não apenas como falhas individuais, mas como estruturas sociais e políticas que perpetuam a injustiça, precisa ser reconhecido e combatido. A noção de pecado como "desvirtuamento", como descrito por alguns teólogos, ajuda a entender como as ações humanas têm impacto nas estruturas de poder, nas relações econômicas e na saúde ambiental. As implicações sociais do reinado de Deus são profundas: o evangelho de Jesus traz boas novas para os pobres, os marginalizados, os excluídos, e propõe uma visão de shalom – de paz e harmonia para toda a criação. No entanto, essa boa nova não será bem-vinda por todos, especialmente por aqueles que se beneficiam das injustiças sociais ou que vêem na transformação uma ameaça ao seu status quo.
A resposta a esse chamado para a transformação global não é fácil, e muitos escolherão a opção da negação ou da indiferença. A tentação de se afastar da luta social e buscar uma espiritualidade individualista e desconectada da realidade social é grande, mas a verdadeira fé cristã exige compromisso com a mudança do mundo à luz do Reino de Deus. A missão da Igreja, então, é ser um farol de justiça, resistência e transformação no mundo contemporâneo.

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