A dialética entre princípios morais e criativos é desvelada com precisão quase anatômica por Gogol, que expõe a relação devastadora entre o homem e o artista: quando o homem trai o artista, o artista o mata. Esse tema — a traição catastrófica dos primeiros princípios morais — atravessa a grande literatura russa, sobretudo em Dostoiévski. Nas primeiras páginas de Crime e Castigo, Raskólnikov sente-se capaz de fazer o bem para a humanidade. Contudo, para assumir esse papel grandioso, precisa eliminar “uma nulidade” — uma agiota insignificante, sem importância para ninguém. Ao decidir que esse ato é permitido, ele comete o assassinato físico dessa “nulidade”, mas, simultaneamente, assassina a si mesmo em seu aspecto espiritual e criativo. Surge, então, a figura do homem dividido, incapaz de realizar o bem nem para a humanidade, nem para qualquer indivíduo, nem sequer para aqueles que o amam.
A discussão sobre a criação artística e o moral transcende a simples associação entre bondade e imaginação. Embora seja frequentemente dito que “uma grande imaginação nasce de um grande coração”, a experiência demonstra que artistas de imensa criatividade podem não ser moralmente exemplares. Bunin, por exemplo, não era necessariamente um homem bom, mas sua imaginação brilhante é inegável. Tal constatação desmente empiricamente a ideia simplista de que bondade e criação estejam diretamente ligadas. Contudo, tais refutações empíricas revelam um entendimento superficial do ser humano, das suas relações com seu tempo e da complexidade da vida emocional e espiritual.
Artistas como François Villon, Kean, Byron e Yesenin, ainda que levassem vidas marcadas por “sacrilégios” e “loucura”, são igualmente “filhos da luz”, assim como Pheidias, Mozart e Pushkin. Para captar essa contradição, é necessário enxergar o “motor oculto” que impulsiona o artista — uma força interna complexa que transcende o comportamento externo e socialmente aceito. Qualquer refutação meramente empírica torna-se inválida diante da compreensão profunda desse fenômeno, pois é o mundo do homem que deve ser compreendido em sua totalidade, não apenas a figura isolada do indivíduo.
A arte, mais do que a ciência, revela a estrutura desse mundo espiritual humano com maior plenitude, embora se espere uma futura síntese entre ambas para desvendar os “últimos segredos” do espírito humano. Há, em cada ser humano, uma distinção fundamental entre a vida emocional e a vida espiritual. A vida emocional é turbulenta, cheia de sentimentos variados, por vezes tormentosos; entretanto, se o centro espiritual está vivo, a personalidade mantém sua integridade e dignidade. A diferença entre Mitya e Ivan Karamázov, de Dostoiévski, reside exatamente aí: enquanto o primeiro, mesmo rebelde, mantém seu núcleo espiritual vivo, o segundo sofre uma ferida profunda nesse centro, e Pyotr Verkhovensky (de Os Demônios) tem seu espírito completamente morto.
Essa distinção explica como artistas moralmente controversos, como Villon ou Michelangelo, puderam preservar seu dom criativo. A alma humana pode ser comparada a um poço artesiano — uma fonte preciosa no fundo da existência —, ou a um recanto inesperado de natureza visto através de uma brecha entre nuvens densas. Esse encontro entre luz e escuridão, vida e morte, é vivido também na realidade, não apenas na imaginação.
O caso de Claude Eatherly, piloto americano da bomba atômica lançada sobre Hiroshima, ilustra a tragédia da consciência humana diante do mal absoluto. Em 6 de agosto de 1945, as nuvens se abriram para revelar a beleza da vida abaixo, antes da destruição total que ele ordenou. Após o bombardeio, Eatherly caiu em tormentos de consciência, julgando severamente a si mesmo e aos que o enviaram. A dor de sua consciência emergiu como o nascimento de sua humanidade verdadeira, uma angústia que a sociedade e o poder militar preferiram rotular como loucura e internar em um hospital psiquiátrico.
O contraste entre as duas imagens de Eatherly — o jovem major sorridente e o homem marcado pelo sofrimento, imóvel como uma máscara — revela como a verdadeira face humana pode ser escondida sob a aparência social. A máscara inicial é a expressão da confiança cega no poder militar, enquanto a segunda é a máscara da dor do nascimento de uma consciência moral profunda. Essa dor, embora insuportável, representa a possibilidade de humanização em meio à barbárie.
Eatherly encontrou consolo e reflexão na filosofia socrática, particularmente na ideia de que o mal é cometido pela ignorância. Essa percepção indica que o despertar da consciência moral não é imediato, e muitas vezes surge tarde demais, quando os efeitos do mal já foram consumados. A tragédia do século XX revela que a verdadeira consciência moral deve nascer antes da catástrofe, e não depois, para que haja chance de reparação.
Além disso, compreender o conflito entre os aspectos criativo e moral do ser humano, e a luta interna pela integridade da personalidade, é fundamental para entender não só a arte e a literatura, mas também a própria condição humana diante da história e da responsabilidade ética. A profundidade dessa luta revela que a criação artística não está dissociada do compromisso moral; ao contrário, ela pode ser a arena na qual se manifesta o maior confronto entre o bem e o mal, entre a integridade da alma e suas rupturas.
O que significa sentir-se em dívida com o mundo e com a arte?
A alegria incomparável da cooperação, da experiência mútua, da compaixão e da participação com os outros na festa da vida é uma das imagens mais intensas que se podem conceber. Esse sentimento de pertença ao destino humano, de que o mundo inteiro é ao mesmo tempo um milagre pessoal e um espaço de responsabilidade, atravessa o testemunho dos artistas verdadeiramente comprometidos. O gesto de Maiakóvski — confessando sentir culpa diante das cerejeiras do Japão — não é apenas uma anedota, mas um detalhe sublime da ética revolucionária: a percepção de que a beleza do planeta não é um ornamento, mas uma dívida constante.
Entre aqueles que encarnaram esse senso de débito, Dmitri Filípovitch Tsaplin ocupa um dos lugares mais pungentes. No ano de 1967, quando se celebrava o cinquentenário da Revolução e, simultaneamente, o seu próprio meio século de trabalho, Tsaplin sentiu que não estava à altura. A Revolução, à qual devia tudo — como homem e artista — exigia-lhe uma obra maior. A decisão que tomou é reveladora: pediu blocos de granito numa pedreira para esculpir dez figuras humanas gigantescas, símbolos da grandeza da Revolução e da beleza espiritual da pátria. Este projeto, que pedia energia colossal, foi iniciado por um homem com mais de oitenta anos.
Mas Tsaplin não era um artista esquecido nem solitário. As autoridades mais altas do mundo das artes plásticas, de Grabar a Konenkov, reconheceram nele um talento raro e digno de respeito e afeto. Nos últimos anos, jovens estudantes, marinheiros, estudiosos reuniam-se no seu ateliê, quase sem deixá-lo vazio, a ponto de atrapalhar o seu trabalho. Dotado de um impulso quase irreprimível de doar, Tsaplin oferecia a quem o procurava a maior das alegrias — a alegria da arte — e sofria com a consciência de que poderia dar ainda mais. Sonhava com uma entrega total, em que tudo o que criasse fosse diretamente para o povo. Esse impulso sintetiza a essência da sociedade comunista: criar condições em que o desejo de dar encontre uma plenitude inédita, sem nada nem ninguém capaz de deter a mão que oferece.
Em paralelo, a memória literária guarda outras figuras, muitas vezes esquecidas, ligadas a grandes obras. As mulheres a quem poetas dedicaram versos — Lesbia para Catulo, Laura de Avinhão para Petrarca, ou a jovem a quem Blok dedicou linhas imortais — constituem um continente inexplorado do coração humano. Petrarca, já aos sessenta e cinco anos, reescreve um soneto antigo no aniversário de seu primeiro encontro com Laura, como quem entra num labirinto sem saída. Esses nomes, tantas vezes reduzidos a sombras de musas, são destinos reais, vidas concretas.
Liza Pilenko, a adolescente que em 1908 procura Alexandre Blok em São Petersburgo, traz consigo um anseio quase insuportável. Nascida no Sul, habituada ao sol, vê a cidade nórdica tingida de névoa e neve avermelhadas, sente uma saudade infantil que anos depois descreveria como a mais aguda da sua vida. Encontra num recital um Blok de rosto imóvel e indiferente, que declama versos de clausura e desafio ao absurdo do mundo. Essa poesia desperta nela um canto interior, uma alegria paradoxal, talvez a mais pungente de sua existência: estava diante de um mundo irreal, e só aquele homem poderia ajudá-la a vencer a sua ânsia.
É essencial perceber que essa cadeia de relações — o artista que se sente devedor à humanidade, a jovem que projeta num poeta a possibilidade de transcender a própria angústia, o gesto de oferecer arte como um bem coletivo — revela uma mesma matriz espiritual. A grande arte não nasce do isolamento estéril, mas de uma consciência dolorosa e jubilosa de participação no destino comum. Reconhecer as pessoas reais por trás dos mitos, reconhecer o peso da responsabilidade diante da beleza do mundo e das expectativas dos outros, é também um ato de justiça. Para o leitor, isso significa que a história da arte e da literatura não é apenas a história de obras, mas de vidas concretas, de compromissos, de dívidas assumidas e, quando possível, pagas com generosidade.
Por que os retratos de Rembrandt parecem falar diretamente conosco?
Ao contemplar um retrato de Rembrandt, surge uma sensação inquietante: a impressão de que aquele homem ou aquela mulher diante de nós não apenas “parecem vivos”, mas estão vivos – não como mera imagem, mas como presença. O mistério não está apenas na técnica pictórica, mas na forma como o artista consegue transformar cada personagem em um reflexo de quem o observa. Assim como Shakespeare ou Tolstói, que ao escreverem sobre outros estão sempre escrevendo sobre nós, Rembrandt nos pinta. E se na literatura essa identificação é considerada sinal de gênio, na pintura assume a forma de um milagre.
O que nos atinge não é um ideal abstrato de “Homem”, mas um ser de carne e osso, com rugas mínimas na testa, dobras quase invisíveis na roupa, gestos suspensos no tempo. A dificuldade de imaginar-se Hamlet não reside na impossibilidade de ver sua imagem física, mas em não conseguir, nem por um instante, confundir o próprio “eu” com aquele homem retratado, tão concreto, tão específico. Rembrandt é o único capaz de unir o singular e o universal, criando uma pessoa única que, paradoxalmente, somos nós mesmos.
Essa universalidade torna-se ainda mais intensa nos momentos em que reconhecemos nos rostos pintados por Rembrandt algo que transcende o tempo. O poeta Jeremias de Dekker, cuja obra quase esquecida permanece silenciosa há trezentos anos, tem sua face eternizada. O olhar carregado de sombra em sua testa, suavizando-se até os lábios, parece conter um pensamento prestes a resolver-se, como se pudéssemos ouvi-lo e, ouvindo-o, compreender melhor a vida. Talvez sua grande linha poética tenha permanecido apenas em seu coração, invisível ao mundo, mas visível para Rembrandt. Seu rosto nos fala da infinitude do homem, mesmo quando seu nome nada nos diz.
O “Retrato de um Judeu Idoso”, atribuído a Menasseh ben Israel, revela mais do que um retrato histórico. Nele ecoa uma ideia radical e herética para o século XVII: “o homem é deus para o homem”. Essa frase, que aproxima o pensamento de Spinoza, parece nascida de noites insones em busca da verdade. Aquele homem que perseguiu o filósofo, que tentou expulsá-lo de Deus, é pintado com um tormento que sugere arrependimento ou lucidez tardia. O retrato torna-se, assim, um testemunho silencioso das metamorfoses do espírito humano.
Mesmo no caso de seu irmão mais velho, Adriaen van Rijn – o sapateiro e moleiro que sustentou os estudos do jovem Rembrandt, mas que mais tarde o condenou por esbanjamento e invejou sua sorte –, o pintor mantém uma compreensão inabalável. No retrato que dele faz, já velho, descansando com as mãos sobre os joelhos e a cabeça levemente inclinada, não há rancor, mas uma ternura que purifica o olhar. A essência não está apenas em Adriaen ter finalmente entendido Rembrandt, mas no fato de que Rembrandt jamais deixou de entendê-lo, mesmo quando o irmão não se compreendia a si mesmo.
Essa capacidade de capturar um indivíduo no instante mais alto de sua vida – quando intui que há algo mais real do que tudo aquilo que antes lhe parecia essencial – é o núcleo da arte de Rembrandt. Essa realidade não deve ser interpretada literalmente, mas como a peculiar realidade dos valores espirituais, que o pintor torna quase tangível, tão vívida quanto árvores, corpos humanos, margens de rios ou nuvens. Ao contrário de inventar personagens, Rembrandt revela o núcleo ainda não realizado de cada pessoa, expondo-o ao mundo.
Diante dos quadros de outros grandes pintores, como Van Dyck ou Gainsborough, é comum querer “trazer de volta à vida” aquelas figuras gentis, quase etéreas. Mas diante dos retratos de Rembrandt não sentimos esse impulso, porque não parecem mortos. Parecem imortais. Não porque representem uma essência abstrata, mas porque a realidade que apresentam é ela mesma imortal.
Rembrandt, um materialista espontâneo, não via a alma como substância separada. Para ele, a alma era a vida humana em sua plenitude – experiência, destino, carne e espírito entrelaçados. O espiritual não era um reino irreal, mas seu próprio sangue vital. Talvez seja por isso que, ao contemplar seus quadros, temos a sensação de estarmos diante de retratos nossos. O que se passa no mundo espiritual do homem é o que se passa, também, no nosso próprio mundo interior.
É essa dimensão que importa compreender ao olhar suas telas. Não se trata apenas de técnica ou de biografia, mas da experiência íntima de sermos refletidos. Diante de Rembrandt, não estamos apenas observando um rosto alheio: estamos sendo observados, reconhecidos e devolvidos a nós mesmos. É por isso que seus retratos não envelhecem, não morrem, não se dissipam – porque são feitos de algo mais real do que a mera aparência.
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