A análise detalhada de discursos de campanha, cartas e outras publicações de partidos políticos nos Estados Unidos revela transformações profundas nas bases ideológicas dos partidos Democrata e Republicano ao longo de quase dois séculos. A abordagem de Gerring, que categorizou conteúdos políticos em temas amplos como ordem social, liberdade, igualdade, tirania, patriotismo e crescimento econômico, permite compreender os valores centrais e as dinâmicas internas desses partidos em diferentes períodos históricos.

O Partido Democrata, segundo essa análise, passou por três grandes “épocas” ideológicas entre 1828 e 1992. Na primeira, denominada Jeffersonianismo, prevalecia a defesa da liberdade contra a tirania, embora com uma contraditória exclusão racial que limitava a igualdade a homens brancos, mantendo a supremacia branca como um tema subjacente. A segunda fase, o Populismo, enfatizou a luta do “povo” contra os “interesses”, principalmente em termos econômicos e sociais, com foco na igualdade e no humanismo cristão. Finalmente, a era do Universalismo, a partir de 1952, destacou a inclusão contra a exclusão, integrando direitos civis, bem-estar social e redistribuição como princípios centrais. Essa última etapa assinala a adoção plena do princípio da igualdade, sem as restrições raciais das fases anteriores.

Quanto ao Partido Republicano, sua origem remonta ao período em que sucedeu o Partido Whig, sendo que a análise o divide em duas grandes fases. O período do Nacionalismo, de 1828 a 1924, caracterizou-se por um compromisso com a ordem social, crescimento econômico e patriotismo, sustentados por um governo federal forte que atuava como construtor do Estado e defensor da unidade nacional. Já a partir de 1928, inicia-se a fase do Neoliberalismo, marcada pela valorização do indivíduo sobre o Estado e pela defesa do antistatismo, alinhando-se a uma filosofia econômica de laissez-faire e ao populismo de direita que combate privilégios especiais e controle elitista.

Essas transformações revelam que os partidos políticos americanos são entidades dinâmicas, com mudanças substanciais em suas bases ideológicas ao longo do tempo, indo além das classificações simplistas de “liberal” e “conservador”. A diversidade dos princípios identificados por Gerring, ao todo dezenove temas distintos entre os dois partidos, demonstra uma complexidade que desafia interpretações reducionistas.

Ademais, o estudo sugere a necessidade de aprofundar a análise para além do período examinado até 1992, utilizando plataformas partidárias e discursos como fontes primárias para rastrear as mudanças ideológicas contemporâneas, especialmente do Partido Republicano. O crescimento das plataformas partidárias em extensão e complexidade, notadamente a partir da década de 1970, indica também um avanço nas ferramentas e estratégias de comunicação política, refletindo a adaptação dos partidos às novas realidades sociais e tecnológicas.

É fundamental compreender que a evolução dos partidos não é apenas uma questão de mudanças superficiais nas palavras ou na retórica, mas sim uma transformação profunda dos valores, princípios e objetivos que definem suas identidades políticas. Além disso, o entendimento das contradições internas — como a coexistência histórica entre temas de igualdade e supremacia racial — é essencial para uma análise crítica e contextualizada da história política americana.

Por fim, a pesquisa evidencia que os conceitos de “liberdade”, “ordem social” e “igualdade” são polissêmicos e variam em seu significado e aplicação conforme o contexto histórico e o partido em questão. Assim, o leitor deve reconhecer que as categorias políticas não são fixas nem universais, mas moldadas por processos históricos complexos e por interesses sociais em constante negociação.

Como o tribalismo político molda a identidade e a polarização nos Estados Unidos?

O comportamento tribal permeia o cenário político americano, não apenas entre conservadores, mas também entre liberais, ainda que com algumas diferenças na definição do que constitui a "tribo" e no peso atribuído a princípios morais coletivos. Ambos os grupos exibem solidariedade interna intensa e forte antagonismo em relação aos adversários ideológicos, o que reforça a divisão social e política. Historicamente, a explicação predominante para a identificação partidária baseava-se no cálculo racional do eleitor, que escolhia o partido que supostamente lhe traria mais benefícios, seja em políticas econômicas, sociais ou externas. Essa visão, popularizada por Anthony Downs em 1957, entendia o voto como um ato individual e utilitário, desvinculado de laços sociais profundos.

Entretanto, essa perspectiva racionalista contrasta com modelos europeus de organização política, nos quais partidos massivos vinculavam-se a segmentos sociais específicos e promoviam uma solidariedade sociopolítica que refletia a segmentação da sociedade em "pilares". Nos Estados Unidos do pós-guerra, os partidos foram percebidos como "catch-all", buscando atrair um eleitorado amplo e heterogêneo, tentando suavizar as divisões sociais e culturais. Essa estratégia, entretanto, tem se mostrado ineficaz nas últimas décadas, dando lugar a uma crescente polarização social que resulta na formação de verdadeiros silos culturais e sociais, onde as bases republicanas e democratas vivem em realidades paralelas.

Hoje, o Partido Republicano é composto majoritariamente por brancos cristãos autodeclarados conservadores, enquanto o Partido Democrata é mais diverso racialmente e religiosamente, reunindo liberais que, em muitos casos, rejeitam o cristianismo tradicional. Essa segregação social é evidente até nos hábitos de consumo e nos ambientes frequentados por eleitores de cada lado, evidenciando uma espécie de "pilarização" moderna, embora desprovida das conexões formais que marcaram os modelos europeus.

Essa divisão não é apenas política, mas existencial. Grupos sociais percebem uns aos outros como ameaças à sua continuidade e modo de vida. Para muitos brancos cristãos americanos, o declínio proporcional de sua presença na população representa uma perda de controle social e cultural. Pesquisas recentes mostram que a proporção de brancos cristãos na população americana vem diminuindo constantemente, sendo essa realidade interpretada por muitos como uma ameaça direta. Essa percepção está enraizada na memória coletiva de épocas em que esses grupos detinham maior domínio, e alimenta uma sensação de urgência que se traduz em mobilização política tribalista, sobretudo no apoio incondicional a líderes e causas que prometem preservar essa identidade e esse poder.

Compreender essa dinâmica tribal é essencial para interpretar não apenas o comportamento eleitoral, mas a natureza profunda da polarização atual. Não se trata apenas de preferências por políticas específicas, mas de um embate pela existência cultural e social, onde a política funciona como um campo simbólico de luta pela identidade e pela sobrevivência coletiva. Essa constatação exige que se vá além da análise superficial das disputas partidárias e se reconheça que, para muitos, a política é vivida como uma guerra cultural que toca o núcleo da identidade e do pertencimento.

Além do exposto, é importante perceber que essa polarização tribal dificulta o diálogo e a cooperação, criando um ambiente onde o compromisso é visto como traição ao grupo. A dinâmica social dos "silos" também impacta o fluxo de informações e a construção do consenso, gerando realidades paralelas e reforçando a desconfiança mútua. A fragmentação da esfera pública é tanto causa quanto consequência desse processo, exigindo uma reflexão mais profunda sobre as condições para a reconciliação social e política. Reconhecer o peso das identidades coletivas no comportamento político pode abrir caminhos para estratégias que considerem não apenas os interesses materiais, mas também as necessidades simbólicas e existenciais dos grupos envolvidos.

Por que milhares seguiram Trump rumo ao Capitólio em 6 de janeiro?

No final de 2020, Donald Trump e seus aliados iniciaram uma campanha implacável para desacreditar o resultado das eleições presidenciais. Ignorando a ausência de provas concretas, ele insistiu publicamente, em várias plataformas, que a eleição havia sido "roubada" — uma narrativa reforçada por discursos inflamados, vídeos propagandísticos e interações nas redes sociais. A retórica era simples e eficaz: “Nós vencemos substancialmente”, “Queremos apenas encontrar 11.780 votos”, “Não vamos desistir, não vamos recuar”.

Trump mobilizou sua base emocionalmente com um discurso de resistência e patriotismo, pintando os adversários como inimigos da nação — os "globalistas", a "mídia falsa", os "Democratas radicais" e até mesmo os “RINOs” (Republicanos apenas de nome). Em vez de aceitar os resultados eleitorais e recorrer unicamente ao processo judicial, ele optou por usar canais informais e simbólicos de poder: redes sociais, eventos e fóruns digitais.

No início de janeiro de 2021, a escalada retórica se transformou em mobilização prática. As redes digitais fervilhavam de mensagens organizando caravanas rumo a Washington, como se se tratasse de um chamado messiânico. Fóruns como o TheDonald.win e o Parler amplificaram esse fervor, muitos deles recheados de discursos de ódio e fantasias violentas sobre "tomar o Capitólio". As autoridades federais, cientes da mobilização, falharam em responder com a devida prontidão.

O ponto de inflexão ocorreu em 6 de janeiro. Ao meio-dia, Trump discursou diante de milhares reunidos próximo à Casa Branca. A mensagem, embora misturada a apelos superficiais pela "paz", era clara em seu subtexto: o Congresso precisava ser pressionado a invalidar os resultados, e os manifestantes eram o instrumento legítimo dessa pressão. Palavras como “lutar”, “não vamos nos render” e “marchar até o Capitólio” incendiaram uma base já em chamas.

O resultado foi uma das maiores rupturas institucionais da história americana recente. Manifestantes armados invadiram violentamente o Capitólio, interromperam a certificação eleitoral e forçaram legisladores a buscar refúgio. Cinco pessoas morreram. Horas depois, o Congresso retomou sua função constitucional e confirmou a vitória de Joe Biden.

Mesmo diante da evidência explícita de incitação e de um histórico de desinformação sistemática, Trump foi novamente absolvido pelo Senado no segundo processo de impeachment — ainda que sete senadores republicanos tenham votado pela condenação. Essa votação simbolizou uma fissura rara, porém real, dentro do partido.

O culto à personalidade de Trump não apenas desafiou normas políticas; ele redesenhou os contornos da lealdade institucional. Sua retórica sistemática de vitimização e traição, combinada com apelos diretos a uma “vontade popular” não mediada por instituições, forjou uma nova gramática política, em que a legitimidade não deriva mais de processos legais, mas de emoções partilhadas, símbolos e fidelidade pessoal.

É essencial compreender que esse fenômeno não foi isolado nem repentino. Foi o ápice de um processo de erosão institucional sustentado, onde mecanismos democráticos foram lentamente substituídos por lealdades tribais, por narrativas conspiratórias e por uma visão distorcida de patriotismo. O uso político das emoções — medo, indignação, orgulho ferido — tornou-se o motor principal da mobilização política.

O caso revela também a fragilidade das instituições quando confrontadas com líderes dispostos a corroê-las de dentro. A força do populismo contemporâneo está na sua capacidade de criar uma realidade paralela e de torná-la emocionalmente mais poderosa do que os fatos. Assim, a insurreição de 6 de janeiro não foi apenas um ato de violência: foi a expressão concreta de uma cultura política onde a verdade é opcional e a lealdade é total.

Como o Partido Republicano se Tornou Sinônimo de Donald Trump?

Desde 2015, quando uma republicana devota afirmou ter recebido uma mensagem divina para rezar por Donald Trump, o Partido Republicano vem vivendo uma transformação profunda e controversa. O apoio incondicional a Trump, mesmo após eventos traumáticos como o ataque ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021, evidencia uma facção interna que permanece fiel ao ex-presidente, enquanto outra parte luta para distanciar-se e recuperar os valores tradicionais do partido.

O Comité Nacional Republicano (RNC), apesar de inicialmente manter-se neutro, rapidamente se alinhou a Trump ao convidá-lo para liderar encontros de doadores e reafirmar sua influência sobre o partido. A resistência à mudança é visível na substituição da congressista Liz Cheney, crítica ferrenha de Trump, por Elsie Stefanik, sua apoiadora declarada. Esse episódio marca a vitória clara da ala trumpista no controle do partido e revela a dificuldade em escapar da sombra do ex-presidente.

Líderes tradicionais do partido, como John Boehner e Paul Ryan, expressaram publicamente sua preocupação com o rumo do Partido Republicano, lamentando a substituição dos princípios conservadores por uma cultura populista e uma devoção quase cega a uma única figura. Mike Pence, ao validar a eleição de Joe Biden apesar da pressão de Trump, simbolizou a tensão entre a lealdade à Constituição e a fidelidade ao líder partidário.

O fenômeno de apoio a Trump entre os republicanos não se deve apenas ao carisma do ex-presidente, mas reflete uma transformação mais profunda, onde a busca pelo poder ultrapassou valores e princípios. A fundação do movimento “Never Trump” antes das eleições de 2016 evidenciava a divisão interna, com muitos considerando Trump inapto para a presidência, tanto por sua experiência quanto por suas atitudes. No entanto, a força de seu apoio entre a base levou muitos críticos a se renderem, ilustrando a dinâmica entre a ideologia e a estratégia eleitoral.

Críticos como Stuart Stevens, ex-estrategista republicano, denunciam que Trump não é uma anomalia, mas sim a personificação extrema do partido após décadas de mudanças. Para Stevens, a raça, a autoilusão e a raiva foram cultivadas para construir o que Trump representa: o partido focado no poder acima de tudo, onde princípios e valores se tornam secundários ou mesmo irrelevantes.

É fundamental compreender que esta crise do Partido Republicano não é apenas uma questão de liderança ou personalidade, mas um reflexo da tensão entre ideais conservadores tradicionais e a realidade política contemporânea, marcada pela polarização e pela luta por hegemonia interna. A transformação do partido, que outrora se orgulhava de sua história na defesa da liberdade e da justiça, hoje enfrenta um dilema entre preservar seus princípios fundadores e adaptar-se a uma nova ordem política dominada pelo populismo e pela personalização do poder.

Compreender esta dinâmica ajuda a perceber que a política não é apenas um jogo de poder, mas um campo onde valores, história e identidade se entrelaçam, e que as escolhas feitas pelo Partido Republicano podem influenciar não apenas seu futuro, mas o curso da democracia americana como um todo.

Como as plataformas partidárias moldam a identidade política e a percepção pública nos Estados Unidos?

A análise das plataformas partidárias revela uma dimensão crucial da política norte-americana: a tensão entre o conteúdo das políticas e o apelo identitário que elas representam. A luta partidária frequentemente ultrapassa a simples discussão sobre propostas ou programas, transformando-se em uma batalha simbólica onde o triunfo ou a derrota se tornam questões de honra e identidade, mais do que de mérito das políticas apresentadas. Essa dinâmica é evidenciada no crescente distanciamento entre republicanos e democratas, especialmente em temas sensíveis como a pandemia de COVID-19, onde percepções sobre riscos e medidas sanitárias são fortemente moldadas por filiações partidárias, e não apenas por evidências científicas ou dados objetivos.

O fenômeno da politização extrema e da polarização partidária cria um cenário em que a lealdade à tribo política sobrepõe-se à análise crítica das propostas e fatos. Isso contribui para a formação de "cultos" de liderança, onde figuras carismáticas são idealizadas e recebem um apoio quase incondicional, semelhante a fenômenos históricos documentados em regimes autoritários. O estudo das personalidades e do culto à liderança ajuda a compreender como o carisma pode ser instrumentalizado para consolidar o poder político, mobilizando seguidores por meio de um controle sutil das percepções e crenças.

Historicamente, as plataformas partidárias têm servido como documentos simbólicos, mais do que como planos estritos de ação governamental. Originadas no século XIX, as plataformas expressam um conjunto de resoluções que refletem a coalizão e os interesses de cada partido, mas raramente determinam a agenda política de forma rígida. Ainda assim, essas plataformas representam a "promessa" feita aos eleitores e funcionam como ferramentas de comunicação política, importantes para legitimar o partido perante seus eleitores e a sociedade.

É crucial compreender que a plataforma política não é um documento estático, mas sim uma construção que evolui conforme as mudanças sociais, econômicas e culturais. O equilíbrio entre as reivindicações identitárias e o conteúdo programático é delicado e muitas vezes desafiador, uma vez que o público tende a se aproximar dos partidos por identificação social e emocional, mais do que por análise racional dos temas. Essa dinâmica impacta diretamente o funcionamento da democracia, pois dificulta o diálogo e a cooperação entre grupos opostos, criando ambientes de conflito onde a vitória da "tribo" se sobrepõe ao interesse público.

Além disso, é importante que o leitor perceba que as plataformas e as disputas partidárias refletem não apenas diferenças ideológicas, mas também conflitos mais profundos de valores culturais e simbólicos. O papel do discurso político e das narrativas na construção dessas identidades é determinante para entender os mecanismos pelos quais as sociedades modernas se dividem e se mantêm coesas ao mesmo tempo.

A reflexão sobre o papel das plataformas e das identidades partidárias deve incluir a análise da influência das emoções, das crenças e das percepções na política contemporânea. O entendimento das razões pelas quais grupos adotam visões tão divergentes sobre fatos objetivos, como no caso da pandemia, ajuda a decifrar os desafios do diálogo democrático e da construção de consensos. Essa perspectiva é essencial para que o leitor compreenda que a política é, acima de tudo, um fenômeno humano complexo, moldado por histórias, emoções e relações sociais que vão muito além dos textos oficiais e das promessas eleitorais.