A ascensão de Donald Trump ao poder não foi uma aberração, mas o resultado lógico de uma história americana que foi sistematicamente enterrada por aqueles que se beneficiaram de sua ocultação. As estruturas que sustentam a corrupção política, o crime organizado e o racismo sistêmico nos Estados Unidos são antigas e profundamente entrelaçadas. O que parecia uma novidade era apenas o reaparecimento cíclico de figuras já conhecidas — homens que, por décadas, trabalharam contra o bem público, protegidos por redes silenciosas de poder e pela amnésia seletiva da sociedade. Eles ressurgem como vampiros, drenando o significado das palavras “traição”, “tragédia” e “trauma”, mantendo-se acima das consequências.

Trump não criou essa máquina; ele a herdou, a entendeu, e soube amplificá-la como nenhum outro. Sua administração não foi uma ruptura, mas uma continuação, uma espécie de reality show distorcido com personagens reciclados dos grandes escândalos políticos das últimas décadas: Watergate, Irã-Contras, 11 de Setembro, a guerra do Iraque, a crise financeira de 2008. As peças do jogo foram colocadas no tabuleiro muito antes de sua chegada. A diferença é que agora o espetáculo era transmitido em tempo real, com a audiência aplaudindo ou se indignando, mas raramente agindo.

O que conecta todas essas tragédias políticas é o oportunismo implacável de uma elite que não acredita no futuro como um bem comum, mas como uma mercadoria a ser acumulada, protegida, escondida. Diante da crise climática, da precarização econômica e da erosão institucional, essa elite se organiza para transformar a catástrofe em lucro. Um mundo despovoado é, para eles, um mundo mais fácil de controlar. A sobrevivência se torna uma aspiração vendida ao povo como privilégio, enquanto a pilhagem continua. O resultado é uma geração educada não para sonhar, mas para reagir, agarrando-se aos restos de um sistema que foi deliberadamente sabotado.

Essa sabotagem não é apenas estrutural, mas também pessoal. É impossível ignorar a reincidência dos mesmos nomes e estratégias. Os Estados Unidos entraram em um ciclo autodestrutivo de normalização da disfunção — o absurdo virou rotina, a mentira virou discurso político legítimo, e o extremismo se disfarçou de “opinião”. No coração dessa crise, está a erosão do valor da verdade. Avisos foram dados. Foram ignorados. Pior: foram compreendidos, mas não levados a sério. Há algo mais doloroso do que dizer uma verdade terrível e ver que ela não apenas foi ouvida, mas conscientemente rejeitada? Saber que o perigo é real, iminente, e mesmo assim ser desacreditado ou, pior, reconhecido e descartado?

A previsão de que Trump venceria a eleição de 2016 e corroeria as bases da democracia americana não foi baseada em intuição, mas em padrões históricos bem conhecidos: períodos de colapso institucional e desespero econômico tendem a produzir figuras autoritárias. E Trump soube usar esses dois elementos com precisão cirúrgica. Ele não apenas encarnou o ressentimento das massas; ele o alimentou. Promoveu uma retórica de ódio, prometeu destruir proteções democráticas, atacou a imprensa livre e idolatrava ditadores. Seu projeto sempre foi claro: desmantelar a democracia por dentro, enquanto entretinha o público com escândalos, insultos e promessas vazias.

Para entender plenamente essa trajetória, é fundamental observar os paralelos com outras autocracias modernas. O caso do Uzbequistão sob Islam Karimov oferece uma lente perturbadoramente precisa. Karimov, antigo oficial comunista transformado em presidente vitalício, governava com mão de ferro, reprimia minorias, censurava a imprensa, idolatrava slogans nacionalistas e cultivava um culto à personalidade. Seu governo era uma cleptocracia — literalmente, “governo de ladrões” — sustentado pela exploração do povo e pela acumulação obscena de poder e riqueza. Os paralelos com Trump são mais que coincidências: são advertências.

A diferença crucial é que os Estados Unidos, historicamente, se viam como imunes a esse tipo de colapso autoritário. Esse mito de excepcionalismo americano foi o que impediu muitos de enxergar os sinais evidentes. Quando uma nação acredita que certas tragédias “não podem acontecer aqui”, ela se torna ainda mais vulnerável à sua chegada. A democracia, afinal, é um contrato social frágil — e quando uma parte suficiente da sociedade decide que esse contrato já não lhe serve, ele pode ser rompido rapidamente, sem alarde, sem resistência eficaz.

A desintegração da confiança nas instituições não começou com Trump, mas ele a institucionalizou. Em vez de combater o cinismo cívico, ele o transformou em plataforma política. Sua presidência foi menos um mandato e mais um sintoma — a manifestação visível de décadas de degradação política, social e econômica. O verdadeiro perigo, portanto, não era apenas ele, mas o terreno fértil que permitiu sua ascensão. E esse terreno continua ali, pronto para o próximo demagogo, ainda mais preparado, ainda mais implacável.

É fundamental compreender que o autoritarismo moderno não precisa de tanques nas ruas ou censura explícita. Ele se infiltra lentamente, corroendo o significado das palavras, a confiança mútua, a memória histórica. Ele oferece entretenimento no lugar de informação, espetáculo no lugar de substância. Ele transforma o medo em identidade política e a indiferença em arma. O que começou como um aviso sobre um homem virou uma autópsia de um sistema.

Importante compreender também que o verdadeiro objetivo do autoritarismo não é apenas governar, mas sim redefinir o que significa existir como cidadão. É convencer o povo de que não há alternativas, de que o presente — por mais distorcido e brutal — é inevitável. É a renúncia coletiva à imaginação política, substituída por sobrevivência individualista e resignação. O maior crime do regime autoritário não é a repressão, mas o roubo do futuro.

Como a manipulação da mídia e o viés da normalidade escondem os verdadeiros crimes de poder

Michael Cohen, em seu testemunho federal no inverno de 2019, revelou ter feito pelo menos quinhentas ameaças sob ordens de Donald Trump ao longo de mais de uma década, descrevendo-o como uma figura que lembrava um chefe mafioso, ainda que sem utilizar essa palavra explicitamente. Reportagens importantes sobre a trajetória criminosa inicial de Trump foram silenciadas. O jornalista renomado David Cay Johnston, autor de várias obras sobre Trump, denunciou que, além da recusa da imprensa em cobrir o estupro de Ivana Trump, também não houve cobertura sobre as conexões documentadas do ex-presidente com o crime organizado. Johnston afirma que, se a população conhecesse a verdade sobre Trump e sua influência no governo, haveria mais protestos. Ele destaca, por exemplo, o caso de Joseph Weichselbaum, um traficante de drogas confesso, que viveu em Trump Plaza e depois comprou um apartamento milionário no Trump Tower com dinheiro em espécie, fato que não foi explorado pela mídia apesar dos documentos apresentados.

A estratégia principal de Trump é esconder os crimes por trás de escândalos midiáticos. Ele prefere ser visto como um homem casado que teve um caso extraconjugal do que como alguém acusado de estupro e agressões a diversas mulheres. Prefere ser um empresário arrogante com falências do que um homem poderoso ligado à máfia, envolvido em extorsões para financiadores estrangeiros. Prefere ser um presidente ridicularizado como um idiota de boné “Make America Great Again” do que ser conhecido como um traidor vingativo que desmonta os Estados Unidos para vender suas partes. Os crimes são muito mais graves que os escândalos, mas a mídia sempre se deixa atrair por eles, levando o público a aceitar o status quo e abdicar de exigir responsabilidade.

Este fenômeno é uma manifestação do chamado “viés da normalidade”, uma crença psicológica de que, diante de uma situação perigosa ou de grandes crimes à vista, alguém intervirá para detê-los. O “viés da normalidade” é o contraponto psicológico do “excepcionalismo americano”. Esses dois mitos são visíveis em tragédias americanas, como o 11 de setembro, a guerra do Iraque e a crise financeira de 2008. Apesar disso, ninguém responsabilizou Trump de forma efetiva — não nos anos 1980, nem agora — no único modo que ele e seus pares reconhecem: acusação formal e prisão. Ele permaneceu uma figura distante, um vilão folclórico da televisão e tabloides, uma ameaça fora do alcance da maioria.

George Orwell escreveu em 1984: “Quem controla o passado, controla o futuro: quem controla o presente, controla o passado.” Os eventos passados existem apenas na medida em que os registros escritos e as memórias humanas concordam. O Partido controla todos os registros e as mentes, logo o passado é aquilo que o Partido decide. Vivemos esse futuro orwelliano. Escrevo para recuperar a verdade do passado, na esperança de que seu entendimento transforme o futuro. Mas escrevo sob o domínio de um tirano tabloide, sobre um passado nova-iorquino de uma presente-missouriana, com a consciência de que minha própria memória deve ser questionada, pois testemunhei como se constrói a mídia e como se alimenta essa criatura monstruosa. Lembro-me dos mitos que absorvi na infância, encontrei os crimes ocultos pelos escândalos e me empenhei em trazê-los à luz pública, para que façam parte do registro oficial e da memória coletiva, permitindo que saibamos contra o que lutamos.

Nos anos 1990, houve uma breve era de prestação de contas, quando criminosos do escândalo Irã-Contra foram punidos e quando líderes dissidentes foram libertados para ocupar presidências. Foi um tempo de esperança e mudança, embora breve, que para muitos, inclusive eu, passou despercebido. Intelectuais afirmavam que a democracia e o capitalismo ao estilo americano triunfavam irreversivelmente, inaugurando uma nova ordem mundial sem rivais à altura. O mundo deveria se alinhar à América, vista como benevolente, mas, na verdade, dominadora. Na adolescência, lia jornais que asseguravam que países com McDonald’s jamais entrariam em guerra entre si. O futuro parecia ilimitado, impulsionado pelo boom tecnológico do Vale do Silício e previsões otimistas de crescimento econômico global.

É fundamental reconhecer que essa narrativa oculta as estruturas profundas de poder e corrupção que continuam a operar sob a superfície dos escândalos midiáticos. A complacência pública e o viés da normalidade criam um terreno fértil para a perpetuação dos abusos, já que o senso crítico é desviado para distrações superficiais. A compreensão da manipulação dos registros históricos, das memórias coletivas e das estratégias de ocultação é essencial para que a sociedade não apenas tome consciência dos fatos, mas também possa agir contra as forças que buscam moldar a realidade conforme seus interesses. A memória, portanto, não é apenas um repositório do passado, mas um campo de batalha onde se decide o futuro.

Como o jornalismo enfrentou a crise da desinformação e a ascensão do autoritarismo

O jornalismo, em sua essência, deve proteger os cidadãos mais vulneráveis, e é exatamente esse papel que muitos jornalistas têm buscado cumprir diante da crise contemporânea de desinformação e autoritarismo. Durante uma conferência em Palo Alto, onde jornalistas e funcionários de empresas de tecnologia se reuniram para discutir o problema das “fake news” após a eleição presidencial de 2016 nos Estados Unidos, a reação da audiência foi hesitante, muitos pareciam atônitos ou mesmo irritados diante da urgência com que eu tratava a questão. Essa falta de compreensão foi sintomática de um problema maior: a dificuldade que jornalistas das grandes mídias costeiras tinham em perceber a gravidade da situação no interior do país e o papel crucial que as redes sociais desempenharam na ascensão de um movimento autoritário e de supremacia branca liderado por Trump.

O evento foi apenas um dos muitos momentos em que me vi como uma espécie de representante involuntário dos “estados vermelhos”, frequentemente mal compreendido e até estigmatizado. Houve casos em que tive que explicar que minha cidade, St. Louis, não era um pequeno vilarejo rural, mas uma metrópole de milhões, e que eu não vivia em uma fazenda, apesar das suposições feitas por muitos na mídia costeira. Essa desconexão não apenas reforçava estereótipos, mas também prejudicava o entendimento mais amplo do que estava acontecendo no país.

No mesmo período, o lançamento do dossiê Steele na BuzzFeed trouxe alívio temporário para aqueles atentos aos perigos do novo governo. Apesar do teor escandaloso, que envolvia acusações graves contra o presidente eleito, não houve consequências reais ou investigações profundas. O que se manteve foi uma gravidade silenciosa: enquanto todos focavam nos detalhes sensacionalistas, a verdadeira traição — a erosão da democracia — passava despercebida. Essa cegueira coletiva foi devastadora para a resistência democrática.

No dia anterior à posse de Trump, participei de um painel em Chicago sobre mídia e democracia, onde senti a perda de Wayne Barrett, um jornalista exemplar que dedicou sua carreira a expor as ilegalidades de Trump. Seu trabalho — “Está em domínio público, esteve lá o tempo todo!” — tornou-se uma máxima que sintetiza a importância do jornalismo investigativo e a necessidade de manter a vigilância sobre o poder.

Ao retornar para casa, não pude evitar uma sensação de desolação ao testemunhar, mesmo à distância, o discurso inaugural de Trump e a atmosfera que ele criava, semelhante àquela que presenciei meses antes em um comício que rapidamente degenerou em tumulto. Essa experiência revelou o fenômeno fascista que se desenrolava, marcado pela manipulação das massas e pelo autoritarismo crescente.

Minha trajetória como uma das poucas vozes a alertar para essa crise me levou a eventos internacionais, onde a situação nos Estados Unidos era vista como um aviso e também como um fenômeno compartilhado. No Reino Unido, por exemplo, o Brexit representou um prelúdio direto da eleição americana, com os mesmos atores e métodos de manipulação através das redes sociais. Jornalistas britânicos enfrentaram ameaças ao investigar o papel da Cambridge Analytica e a influência russa sobre as instituições. De modo similar, os Estados Unidos viram a confluência de corrupção corporativa e crime organizado ganhar terreno sob leis cada vez mais frouxas, enfraquecendo as bases democráticas em ambos os países.

Em outros lugares, como na Holanda, o surgimento de figuras populistas e demagogas, semelhantes a Trump, foi acompanhado com preocupação, mas também com certo alívio graças à estrutura parlamentar que impedia um dano maior. A pergunta inevitável era se o fenômeno Trump poderia acontecer ali — a resposta, infelizmente, era afirmativa.

É fundamental entender que a ascensão desse autoritarismo não se deu por acaso ou apenas por um erro eleitoral, mas por uma série de fatores interligados: o uso indevido das redes sociais para manipulação política, o enfraquecimento das instituições democráticas, a conivência ou a omissão das autoridades diante das evidências de crimes e corrupção, e o crescimento do discurso de ódio e da supremacia branca. O papel do jornalismo é não apenas relatar, mas denunciar e investigar, desvelando os mecanismos ocultos que ameaçam a democracia.

Além disso, o leitor deve considerar que a luta contra o autoritarismo e a desinformação exige um compromisso coletivo e contínuo. O engajamento cidadão, a educação midiática e o fortalecimento das instituições independentes são essenciais para resistir à erosão dos valores democráticos. A compreensão profunda desses processos ajuda a evitar a naturalização do abuso de poder e a garantir que a verdade permaneça acessível e inquestionável, mesmo em tempos de crise.