A corrupção no Missouri não é apenas uma aberração moral ou legal — ela se transformou em uma estrutura invisível, porém onipresente, que molda todos os aspectos da vida pública e privada. Governado por figuras cujo compromisso com a transparência e a ética é, na melhor das hipóteses, ornamental, o estado tornou-se um microcosmo do colapso do experimento democrático americano. Em vez de ser uma exceção, o Missouri passou a ser um laboratório para o que acontece quando as instituições são capturadas por interesses obscuros, a mídia local é desmantelada e a cidadania é deixada à mercê da sorte — ou da sua ausência.

No centro deste colapso institucional está a figura de Eric Greitens, um governador que, mesmo sob acusações graves — incluindo chantagem sexual, violação de privacidade e uso ilegal de dados de uma entidade de caridade para fins eleitorais — resistiu a deixar o cargo até ser confrontado com a perspectiva de ter que revelar seus verdadeiros financiadores. O que precipitou sua renúncia não foi o escândalo sexual nem a humilhação pública, mas o medo do que poderia ser descoberto caso os documentos da sua organização, “New Missouri”, fossem submetidos a escrutínio. Seu caso não resultou em condenação ou prisão, apenas em uma saída estratégica. Em troca da renúncia, os processos desapareceram. O poder não foi confrontado pela justiça, apenas acomodado por ela.

A normalização desse tipo de impunidade produziu um efeito corrosivo sobre o senso comum da população. O sentimento dominante entre muitos habitantes do estado foi de alívio, não de justiça — como camponeses que celebram o fim do reinado de um tirano, sem jamais esperar julgamento ou prestação de contas. Essa resignação revela uma erosão profunda das expectativas cívicas, um esvaziamento da noção de que o governo deve servir ao povo e ser por ele fiscalizado.

Em paralelo, estruturas como o “Workhouse” — uma prisão de condições degradantes onde cidadãos ainda não formalmente acusados são mantidos por meses, frequentemente por delitos não violentos — simbolizam o desequilíbrio brutal entre o peso da lei sobre os pobres e sua flexibilidade diante dos poderosos. Enquanto o ex-governador acusado de múltiplos crimes se refugia em uma mansão nos arredores de St. Louis, pessoas são mantidas sob calor extremo, frio insuportável, e até forçadas a lutar entre si para entretenimento dos guardas. O contraste não poderia ser mais eloquente.

No plano político, o estado revela um paradoxo alarmante. Em 2018, os eleitores aprovaram com ampla maioria propostas progressistas como a legalização da maconha medicinal, aumento do salário mínimo e reformas anticorrupção — como a emenda conhecida como “Clean Missouri”. No entanto, esses mesmos eleitores colocaram no poder políticos republicanos que se opuseram a essas mesmas medidas. Essa dissonância entre o voto em políticas e o voto em pessoas não pode ser entendida apenas como ignorância ou incoerência. Ela aponta para algo mais profundo: uma paisagem mediática em ruínas, onde campanhas financiadas por dinheiro escuso — como as associadas à NRA e à candidatura de Josh Hawley — manipulam a percepção pública sem contraponto jornalístico local capaz de desmascarar essas narrativas.

A ascensão de figuras como Hawley, que após ser eleito passou a ser investigado pelos mesmos crimes que havia denunciado em outros, confirma que não há mais um compromisso estrutural com a coerência ou com a ética, mas sim com a manutenção do poder a qualquer custo. Aplicativos que apagam comunicações oficiais, manobras para esconder documentos públicos, redes de financiamento clandestinas — tudo isso não são falhas do sistema, mas o próprio sistema operando conforme foi deformado.

A realidade é que o Missouri opera hoje sob uma lógica pós-democrática, onde as instituições existem mais como vitrines do que como instrumentos de representação ou prestação de contas. A mídia local, enfraquecida, não cumpre mais seu papel de vigilância; os políticos, blindados por interesses corporativos e por redes de desinformação, não temem a reação pública; e os cidadãos, esgotados, passam a aceitar o inaceitável como norma.

O que se revela nesse cenário é uma sociedade onde a corrupção não é um desvio, mas o próprio alicerce. E viver sob esse tipo de estrutura significa aprender a carregar um peso que ninguém reconhece, a lutar contra espectros de dados apagados, verbas desaparecidas e responsabilidades diluídas em um mar de anonimato político. A corrupção, aqui, não é apenas um crime: é uma condição crônica da vida.

É fundamental entender que a verdadeira crise não é apenas de governança, mas de confiança. Quando os mecanismos de representação falham repetidamente, quando os canais de informação são distorcidos ou desmantelados, e quando o senso de agência coletiva é corroído, resta apenas o cinismo — uma condição na qual a participação cívica deixa de ser uma ferramenta de mudança e passa a ser uma simulação melancólica de democracia. E, nesse terreno árido, a semente do autoritarismo encontra solo fértil.

Como o Passado e o Presente se Entrelaçam nas Dinâmicas Políticas: O Caso de Missouri e os Desafios Contemporâneos

A situação política em Missouri revela um quadro alarmante de corrupção, manipulação e resistência a mudanças que pode ser interpretado como um reflexo de um problema maior nos Estados Unidos, e até em níveis globais. Recentemente, o senador Josh Hawley foi acusado de envolver-se em um esquema elaborado para ocultar violações nas doações de campanha, com a ajuda da National Rifle Association (NRA), que, por sua vez, teria canalizado recursos de oligarcas russos para o Partido Republicano. O escândalo alimenta chamadas pela sua renúncia, mas, em resposta, o Partido Republicano de Missouri está tentando derrubar a lei “Clean Missouri”, que obrigaria a transparência em questões financeiras de campanhas. Essa lei, que foi apoiada pelos eleitores, teria revelado as práticas corruptas e servia como uma tentativa de trazer à tona a verdade em meio ao que parece ser uma longa história de manipulação política.

O caso de Missouri não é único, mas serve como um sintoma de um problema maior nos Estados Unidos. O estado, que não é tradicionalmente considerado um reduto republicano, está se transformando em um território dominado por uma única força política, cujo poder é sustentado por doações misteriosas de grandes magnatas e pelo desrespeito flagrante pela vontade popular. Missouri está se tornando um reflexo de uma realidade onde a política é comprada e vendida, e onde o cidadão comum parece ter cada vez menos voz. Este fenômeno não é restrito aos Estados Unidos, mas está se espalhando como um sintoma de um mal global, onde as democracias estão sendo enfraquecidas por interesses externos e internos que manipulam os sistemas para manter seu controle.

Este cenário de corrupção e manipulação política é, paradoxalmente, também o cenário de resistência. Em meio a esse quadro sombrio, é possível encontrar momentos de clara resistência, como exemplificado no parque estadual Don Robinson, em Missouri. Criado por um empresário excêntrico que rejeitava a conformidade do sistema, o parque é uma metáfora para o estado: uma área inexplorada, onde a natureza não foi moldada e onde a autenticidade ainda pode ser encontrada. A criação desse parque foi uma recusa a ceder ao consumo e à uniformidade, representando uma Missouri que, no fundo, se recusa a ser simplesmente parte de um sistema podre.

O contraste entre os problemas políticos do estado e a resistência representada pelo parque é um lembrete de que as alternativas existem, mas são raras e difíceis de encontrar. Missouri, com sua corrupção exacerbada, é também um reflexo de um país maior que enfrenta as mesmas questões: a perda de autonomia e liberdade para forças externas e internas que não são completamente compreendidas, mas que exploram vulnerabilidades que parecem cada vez mais evidentes. A luta é constante, e para aqueles que permanecem, é uma luta de resistência. Não há mais um lugar para fugir, porque todos os lugares parecem afetados pela mesma doença. O que resta, então, é resistir e tentar encontrar uma maneira de mudar o que parece ser inalterável.

O momento histórico que descreve as influências políticas e financeiras, como as que envolveram figuras como Roy Cohn e Donald Trump, também traz à tona a reflexão sobre o que é realmente possível dentro de um sistema que já está profundamente corrompido. Em 1984, Donald Trump, ainda um empresário em ascensão, demonstrava um interesse em se tornar um negociador internacional, impulsionado por sua conexão com Cohn. Seu desejo de se alinhar com a Rússia, expresso em um artigo do Washington Post, parece uma fantasia daquela época, mas agora se configura como uma realidade política perigosa. A trajetória de Trump é um exemplo claro de como interesses pessoais e alianças duvidosas podem definir a política global, refletindo uma complexidade de relações que nem sempre é visível para o público.

O entendimento das complexas dinâmicas políticas não deve se limitar apenas à observação das figuras públicas ou dos escândalos específicos. É crucial perceber o contexto mais amplo que sustenta essas ações, a forma como o poder financeiro e as alianças internacionais podem moldar o destino de um país. Missouri, nesse caso, é apenas um microcosmo de uma nação que se vê à mercê de interesses que estão cada vez mais distantes das necessidades e desejos de seus cidadãos.

Como a Cultura do Entretenimento Facilitou a Corrupção e a Influência Estrangeira nos Estados Unidos

O fenômeno da popularidade do programa The Apprentice exemplifica uma transformação profunda na percepção pública americana acerca da fraude e da reputação. O reality show, que teve seu auge na década de 2000, condicionou uma geração a aceitar a desonestidade como entretenimento e a imaginar que celebridades arruinadas poderiam se reabilitar sem maiores consequências. Por trás da superfície falsa e brilhante do programa, entretanto, ocultava-se uma realidade sombria e concreta, um mapa para o que viria a ser uma cleptocracia americana. A suspensão do programa pela NBC em 2015, após os discursos de Trump contra mexicanos, não significou o fim dessa narrativa; ao contrário, o reality continuou nas emissoras de cabo, que não tinham a mesma força moral para resistir ao seu conteúdo.

Entre 2007 e 2018, uma série de compras em dinheiro vivo feitas por compradores vinculados à ex-União Soviética em propriedades de Trump indicavam claramente uma operação de lavagem de dinheiro, confirmada pelo congressista Adam Schiff e analisada pela rede de combate a crimes financeiros do Tesouro americano, a FinCEN. Essas transações em dinheiro, que escapam ao escrutínio normal de instituições financeiras quando há financiamento por hipoteca, sinalizam um padrão criminoso conhecido. Mesmo com esses indícios, o Departamento do Tesouro não agiu quando Trump se tornou candidato, situação agravada pela infiltração russa dentro da própria instituição, ocorrida em 2015, mas revelada publicamente apenas em 2018.

A falta de ação contra essa infiltração, bem como a proteção de figuras envolvidas por funcionários leais a Trump e a interesses estrangeiros, expõe uma grave ameaça interna à segurança nacional. O caso da denúncia feita por Natalie Mayflower Edwards, que revelou comunicações clandestinas entre membros do Tesouro e agentes russos, permanece sem explicação pública satisfatória, enquanto a administração Obama optou por encobrir o incidente. O envolvimento de altos funcionários, como Steven Mnuchin, que facilitou a flexibilização de sanções contra oligarcas russos, reforça o cenário de conluio e impunidade.

O relacionamento estreito entre a família Trump e o dinheiro russo foi publicamente admitido por Donald Trump Jr., que em 2008 declarou que os russos representavam uma parcela desproporcional dos compradores de seus empreendimentos imobiliários. Embora negociar com a Rússia não seja ilegal per se, desconsiderar o contexto mais amplo dessas conexões e suas implicações estratégicas equivale a ignorar um padrão preocupante. Essa dependência exacerbada por recursos estrangeiros se insere num quadro maior de desmantelamento econômico, psicológico e militar dos Estados Unidos, intensificado no período pós-11 de setembro.

A era digital, que prometia liberar o jornalismo e ampliar a transparência, acabou por concentrar o poder midiático nas mãos de uma elite que pouco se importa em expor corrupção, desigualdade ou injustiça. Com o aumento dos custos de vida nas grandes cidades e a mercantilização da mídia, reportagens independentes deram lugar a conteúdos produzidos por aqueles que têm acesso privilegiado ao capital. Isso resultou numa América fantasmal, onde a maioria dos cidadãos vive em precariedade e com sonhos frustrados, enquanto as elites se autocelebram e se blindam da crítica.

A crise financeira de 2008 simboliza um ponto de inflexão decisivo, não apenas para a economia, mas para a própria confiança social e política. Ela marcou o fim de uma era e o início de uma sucessão de eventos que consolidaram a vulnerabilidade institucional e a normalização da corrupção. Essa decadência foi acelerada por um falso senso de meritocracia, que na prática legitima a mediocridade e a captura do poder por interesses particulares. Entender o que levou ao colapso econômico e suas consequências políticas é fundamental para compreender a atual situação dos Estados Unidos como uma cleptocracia.

Além disso, é essencial que o leitor reconheça que essa história não se limita a episódios isolados de corrupção ou influência estrangeira, mas representa uma transformação sistêmica que compromete os fundamentos da democracia americana. A infiltração de atores externos em instituições chave do governo, o enfraquecimento do jornalismo investigativo e a mercantilização da cultura política criaram um ambiente propício para que o interesse privado e estrangeiro se sobreponha ao bem público. A normalização da fraude, a fragilização das instituições de controle e a conivência de elites com regimes autoritários são elementos que delineiam um futuro onde a democracia pode ser permanentemente comprometida. Compreender essa dinâmica é crucial para qualquer análise séria sobre os desafios contemporâneos dos Estados Unidos e, por extensão, sobre a estabilidade das democracias modernas.

Como se perpetua a autocracia: lições ignoradas, advertências silenciadas

Quando uma democracia começa a ruir, ela raramente o faz de forma estrondosa. A queda acontece no silêncio abafado das verdades ignoradas, nas denúncias abafadas, nas evidências enterradas em relatórios esquecidos. Foi esse o destino do documento da NSA que comprova o ataque à infraestrutura eleitoral dos Estados Unidos em 2016 — ignorado por instituições, desconsiderado pela imprensa, e conhecido do público apenas porque uma mulher, Reality Winner, ousou denunciá-lo. Por isso, foi presa sob a Lei de Espionagem e proibida de falar com a imprensa. Nenhum agente do governo, sequer Robert Mueller, se interessou em interrogá-la.

Winner não ficou sozinha. Vieram depois outras denunciantes: Natalie Mayflower Edwards, que expôs a infiltração russa no Departamento do Tesouro em 2015, e Tricia Newbold, que revelou a concessão irregular de credenciais de segurança na Casa Branca, inclusive para Jared Kushner e Ivanka Trump. Todas mulheres. Todas ignoradas. Todas colocadas à margem por um sistema político e midiático incapaz de encarar a gravidade de suas revelações. Levar essas provas a sério significaria questionar a legitimidade da eleição de Trump — e, com ela, toda a estrutura de poder construída sobre essa vitória. Seria necessário confrontar a fundação de uma cleptocracia.

Trump, ao longo de sua vida, usou o poder para calar mulheres incômodas. Como presidente, institucionalizou esse padrão. O silêncio que se seguiu à eleição de 2016 não foi passividade: foi conivência. Na madrugada do dia 9 de novembro, diante da notícia da vitória de Trump, vozes isoladas começaram a se organizar. Uma delas foi Andrea Chalupa, que, junto a jornalistas e ativistas, interpretou os sinais com clareza desde o início. A vitória não era um acidente; era o resultado de um processo cuidadosamente articulado por redes de interesse que cruzavam fronteiras e desafiavam a soberania democrática dos Estados Unidos.

A hipótese de uma vitória forjada, com interferência direta de agentes russos e manipulação da opinião pública, foi descartada como histeria. Não houve disposição para investigar os elos financeiros da campanha de Trump com figuras como Paul Manafort. A imprensa tradicional, especialmente a dos grandes centros de poder, foi lenta, cética, complacente. Manafort já era figura pública, diziam; estava nos talk shows de domingo — e, portanto, não poderia ser criminoso.

Mesmo diante da negação institucionalizada, a mobilização prosseguiu. Buscou-se uma recontagem de votos nos estados com margens apertadas — Michigan, Wisconsin e Pensilvânia. A tentativa foi sabotada. Jill Stein, candidata do Partido Verde e convidada de eventos pró-Putin, desviou parte dos fundos arrecadados para pagar seus próprios custos legais. A operação de desinformação seguiu seu curso. E com ela, a consolidação de um poder que se alimenta da paralisia alheia.

A tentativa de alertar o público não cessou. Houve textos, entrevistas, palestras. O livro The View from Flyover Country, que discutia o colapso das instituições americanas, se tornou um best-seller — não por otimismo, mas por desespero. Nenhum sucesso pessoal poderia aliviar a dor de prever o desastre e ver cada etapa se concretizar. A desilusão com o sistema não era teórica. Tinha rosto. Tinha nome. Como a mulher paquistanesa que votava pela primeira vez, com medo de ser perseguida em seu novo país. Como os imigrantes, os jornalistas, os ativistas ameaçados, vigiados, deslegitimados.

A ameaça não era mais uma possibilidade. Era realidade. Em 2017, durante uma conferência internacional na Dinamarca, medidas extraordinárias de segurança foram tomadas para proteger quem ousava criticar o novo regime. O perigo não era simbólico — era físico, real, iminente. A ascensão de Trump não foi apenas uma mudança de governo: foi a instalação deliberada de um sistema autoritário que usa a retórica do ódio como ferramenta de dominação.

Disfarçada de entretenimento, embrulhada em campanhas digitais, legitimada por uma imprensa submissa ou desacreditada, a autocracia se estabeleceu. E como toda autocracia, depende do silêncio: das vozes abafadas, das provas ignoradas, dos jornalistas desacreditados, das mulheres silenciadas. Mas depende também da negação voluntária de quem se recusa a ver o que está diante de seus olhos.

A compreensão desse processo exige reconhecer os mecanismos de normalização do autoritarismo. É fundamental observar como a credibilidade se constrói — e se destrói — nos discursos midiáticos, como o poder econômico molda a narrativa pública, como a linguagem é usada para deslegitimar a dor e a verdade. O perigo não está apenas na figura de um líder autocrático, mas no ambiente que o permite, o protege e o perpetua. Um ambiente onde denunciar a verdade pode significar prisão, e onde mentir em nome do poder é recompensado com status e visibilidade.