A abordagem para o tratamento de deformidades severas e recorrentes de pé bot, especialmente em crianças, demanda uma compreensão profunda das opções cirúrgicas disponíveis e das implicações de cada procedimento. A deformidade de pé bot, quando não tratada adequadamente, pode levar a complicações graves que comprometem a funcionalidade do pé e a mobilidade do paciente. Em casos extremos, as intervenções mais drásticas podem ser necessárias para restaurar alguma funcionalidade ou aliviar a dor. A cirurgia, frequentemente combinando diferentes técnicas, busca corrigir a deformidade e prevenir futuras complicações.

Após uma talectomia, procedimento no qual o tálus é removido, muitos dos músculos do pé podem ainda ser funcionais. No entanto, se houver contraturas residuais de flexão, uma opção de tratamento é o alongamento na junção musculotendínea ou através do tendão, dependendo da magnitude da contratura. Se houver cicatrização severa na região posteromedial do pé, a necessidade de alongamento diminui, e a realização de tenotomias pode ser mais indicada. No caso específico do tendão flexor longo do hálux, um dos procedimentos mais comuns é a tenotomia, realizada de maneira direta, visualizando o tendão através do tornozelo, de forma posterior para anterior. Durante esse processo, é crucial garantir que o tendão flexor esteja sendo apreendido corretamente, sem envolver o nervo tibial, para evitar danos adicionais.

O momento pós-operatório é igualmente crítico, pois é necessário garantir que a circulação sanguínea para o pé seja restabelecida. A integridade do sistema neurovascular pode ser comprometida devido à magnitude da deformidade ou a trações que ocorrem durante a correção cirúrgica. A hipoplasia da artéria dorsalis pedis ou cicatrizes de cirurgias anteriores na região do tornozelo podem dificultar a perfusão adequada do pé. Se a circulação não se restabelecer rapidamente, é recomendável utilizar compressas mornas ou aplicar uma leve dependência do pé para promover a circulação. Se após 10 minutos a perfusão não melhorar, o uso de pastas de nitroglicerina pode ser necessário para induzir a vasodilatação e melhorar o retorno venoso. Em casos mais graves, a utilização do Doppler para identificar a artéria tibial pode guiar a decisão de realizar uma liberação completa do túnel tarsal para restabelecer a circulação.

A complexidade do tratamento de deformidades severas e recorrentes de pé bot torna difícil estabelecer um protocolo único de tratamento. No entanto, abordagens comuns incluem transferência de tendões, osteotomia tibial, artrodese tripla e talectomia. Cada uma dessas opções tem suas vantagens e limitações, e a escolha do tratamento deve ser feita com base nas características específicas do paciente e no grau de deformidade. Em alguns casos, a combinação de várias técnicas, incluindo osteotomias adicionais do cuboide ou do calcâneo, pode ser necessária para corrigir completamente a deformidade. Esses procedimentos podem ser ajustados dependendo do contexto clínico e da resposta individual de cada paciente.

Quando a deformidade é grave e não há acesso a um acompanhamento regular ou a técnicas mais sofisticadas, como a correção gradual com fixação externa, a abordagem cirúrgica precisa ser mais agressiva e decisiva. Isso também implica em considerar as possíveis complicações associadas ao uso de dispositivos externos e o impacto que a cirurgia pode ter na qualidade de vida do paciente a longo prazo. Cada caso deve ser analisado individualmente, considerando as condições específicas do paciente, sua resposta a tratamentos anteriores e a disponibilidade de recursos médicos.

É fundamental que, além das técnicas cirúrgicas, a reabilitação pós-operatória seja bem planejada, garantindo que o paciente tenha acesso a cuidados adequados para a recuperação e para prevenir a recidiva da deformidade. O acompanhamento contínuo permite identificar qualquer problema recorrente e adaptar o tratamento conforme necessário. As intervenções, seja por meio de técnicas mais conservadoras ou mais agressivas, exigem uma avaliação cuidadosa de todos os fatores envolvidos, garantindo que as melhores opções sejam escolhidas para cada situação.

Transferências Tendíneas no Pé e Tornozelo: Quais Fatores Determinam o Sucesso Cirúrgico?

A transferência tendínea no tratamento das deformidades do pé e tornozelo, sobretudo aquelas associadas a disfunções neuromusculares, representa uma técnica cirúrgica de elevada complexidade e resultado variável. Essa variabilidade decorre de múltiplos fatores, entre eles: espasticidade, controle motor, função sensorial e capacidade cognitiva do paciente. Não se trata, portanto, de uma técnica com previsibilidade absoluta — ao contrário, exige criteriosa avaliação pré-operatória e refinamento técnico.

Nas deformidades neurogênicas e em muitos casos de desequilíbrio muscular não neurogênico, como nas sequelas do pé torto congênito, rupturas traumáticas ou degenerativas de tendões, a transferência tendínea é frequentemente indispensável. O seu objetivo ultrapassa a simples substituição da função de um tendão danificado: busca-se realinhar vetores de força, corrigir desequilíbrios funcionais e, quando possível, retardar o processo degenerativo articular. Em várias circunstâncias, a obtenção de equilíbrio biomecânico supera em importância a potência da contração muscular após a transferência.

Condições essenciais para o sucesso incluem a estabilidade articular e a ausência de deformidades fixas na articulação sobre a qual o tendão transferido exercerá ação. Além disso, características como ação sinérgica (isto é, contração na mesma fase que o tendão substituído), preservação da função do tendão doador e função única do tendão transferido são ideais — ainda que, na prática, nem sempre plenamente atingidas. O comprometimento parcial da força original do tendão doador é tolerável, desde que a função residual permita a execução da ação desejada. Entretanto, tendões com funções essenciais não devem ser sacrificados.

A adequação das expectativas do paciente constitui elemento fundamental. É responsabilidade do cirurgião esclarecer objetivos, limites e possíveis perdas funcionais. Por exemplo, na correção do pé caído com transposição do tendão tibial posterior, há redução da força de flexão plantar — resultado do alongamento do tendão calcâneo e da transposição em si. O paciente pode esperar a recuperação da dorsiflexão e eventual dispensa da órtese, embora tal desfecho não seja garantido.

O planejamento cirúrgico inicia-se com uma anamnese detalhada, abrangendo a história da deformidade, traumatismos prévios, patologias neurológicas (paralisia cerebral, AVC, TCE), causas genéticas como a doença de Charcot-Marie-Tooth, além de doenças associadas como hanseníase ou diabetes. O exame físico deve incluir avaliação da marcha, alinhamento dos pés e membros inferiores em ortostase, inspeção de calçados, amplitude de movimento dos complexos articulares do tornozelo, subtalar e de Chopart, identificando a presença de deformidades fixas ou instabilidade. A diferenciação entre deformidades estáticas e dinâmicas pode ser sutil, exigindo em alguns casos o uso de bloqueios neurais seletivos ou toxina botulínica.

A avaliação da força muscular dos dorsiflexores, flexores plantares, inversores e eversores é indispensável. Testes específicos, como o teste do bloco de Coleman e a manobra de Silfverskjöld, oferecem subsídios objetivos à decisão cirúrgica. A análise dos reflexos (rotuliano e aquileu) também auxilia na distinção entre acometimentos do primeiro e segundo neurônio motor. A presença de úlceras plantares indica perda de sensibilidade protetora — dado crítico para planejamento cirúrgico e pós-operatório.

A fixação do tendão transferido pode ser feita diretamente ao osso ou a outro tendão. Quando há comprimento adequado, o tendão é passado por um túnel ósseo e suturado. Em casos de limitação, utilizam-se âncoras metálicas ou parafusos de interferência bioabsorvíveis (ex: ácido polilático). Estudos indicam maior resistência à tração com parafuso de interferência em comparação às âncoras metálicas, ao menos em modelos in vitro.

Nas transferências tendão-tendão, a técnica de Pulvertaft é consagrada: o tendão doador é entrelaçado sobre o receptor e suturado. Outra variante é a junção em espiral, em que o tendão doador envolve o receptor antes da fixação. Esta última é particularmente eficaz na transposição do tibial posterior para o dorso do pé. O ajuste da tensão durante a transferência é etapa crítica. Tensão insuficiente compromete a eficácia funcional; tensão excessiva pode causar efeito de tenodese, limitando a contração ativa. Em fixações tendão-tendão, recomenda-se sutura com tensão aumentada, aproveitando a elasticidade da unidade músculo-tendínea. Em fixações tendão-osso, a transferência deve ocorrer com leve supercorreção na direção do vetor desejado (por exemplo, dorsiflexão leve após PTT para pé caído).

As vantagens das fixações tendão-tendão incluem facilidade técnica, melhor controle do ajuste tensional e ausência da necessidade de implantes. A fixação óssea, embora teoricamente mais resistente, exige maior precisão técnica e apresenta limitações no ajuste intraoperatório.

É fundamental, ainda, compreender que o sucesso da transferência tendínea não reside apenas na técnica operatória, mas na integração de múltiplos elementos: biomecânica, fisiologia muscular, estado neurológico, cooperação do paciente e reabilitação pós-operatória intensiva. A ausência de sinergismo funcional ou a existência de deformidades rígidas podem anular os efeitos da transferência, mesmo quando executada com excelência técnica. A fisioterapia especializada, iniciada precocemente no pós-operatório, é determinante para reeducação motora e prevenção de recidivas ou compensações inadequadas.